quinta-feira, setembro 15, 2005

MEDO DO ESCURO: Não daquilo que se esconde no escuro. Do escuro.
NEM MENSAGEM NEM GARRAFA: Este blog aproxima-se cada vez mais do seu espírito original: absolutamente nada para dizer, e a embaraçosa necessidade de reunir um punhado de testemunhas para constatar isso mesmo.
IDEIA PARA UM CONTO: Lançar para o mundo personagens que, para além do T2 partilhado em Queluz e do apetite fortuito pelo teatro amador, sejam prodigiosos produtores de literatura, por vezes fantástica, por vezes virtual, quase sempre supérflua. (Dotá-los de meios de locomoção, de sentido gregário e de um pudor que ninguém acredite não ser simulado.)

quarta-feira, setembro 14, 2005

XADREZ: Vai ter lugar, entre os dias 27 de Setembro e 16 de Outubro, o campeonato mundial de xadrez, em San Luis, na Argentina. Espero, ao longo dos próximos dias, ir fazendo apresentações dos 8 grandes-mestres que disputarão a coroa mundial neste torneio. Para já, impõe-se uma breve contextualização do panorama actual do xadrez mundial, sem o qual o leitor menos informado não terá possibilidades de compreender a relevância deste acontecimento. Desde 1993 que o título mundial de xadrez se encontra cindido em dois. Nessa data, Garry Kasparov e Nigel Short optaram por romper com a FIDE (Federação Internacional de Xadrez, que atribuía o título desde os anos 40), e por disputar o seu encontro relativo à final do campeonato do mundo sob a égide de uma outra organização criada para o efeito. A partir de então, têm coexistido dois títulos mundiais: o oficial, sob a responsabilidade da FIDE, e o oficioso, que tem vindo a ser organizado por diversas entidades, e é directamente herdeiro desse encontro Kasparov-Short. A comunidade escaquística tem sido terreno fértil para debates (geralmente tão estéreis quanto repetitivos) sobre quem é o "verdadeiro" campeão do mundo. Os "legitimistas" afirmam que só a FIDE tem o direito de outorgar um título mundial, à falta de outra organização com um mínimo de solidez; aceitar o contrário seria regressar aos tempos da arbitrariedade total, em que o campeão do mundo era o proprietário do título, e, basicamente, só o punha em jogo quando e nas condições que lhe apetecesse. Do outro lado da barricada estão aqueles que defendem ser o título oficioso (ou "clássico") aquele que melhor respeita a tradição e a verdade desportiva, porque representa a continuidade relativamente ao historial de campeões que teve início com Wilhelm Steinitz, em 1886; afirmam também que a FIDE, ao mudar por completo os moldes em que o campeonato do mundo é disputado, lhe retirou credibilidade. Como se compreenderá, esta situação lamentável tem contribuído para transmitir uma imagem pouco lisonjeira da modalidade, o que, segundo muitos comentadores, tem dificultado a sua evolução enquanto actividade profissional, nomeadamente ao nível da obtenção de patrocínios. A primeira tentativa consistente de reunificação, o chamado "acordo de Praga", abortou quando o encontro previsto entre Garry Kasparov e Rustan Kasimdzhanov (actual campeão FIDE), após vários adiamentos, foi finalmente cancelado. (A integração de Kasparov neste processo, diga-se a talhe de foice, tinha representado uma profunda injustiça e um grosseiro privilégio, justificável apenas pelo prestígio, peso mediático e influência negocial da personagem. Kasparov, entretanto, anunciou o abandono completo da modalidade, no princípio deste ano.) Decidida a retomar o domínio da situação, a FIDE anunciou um torneio para a atribuição do título mundial, integrando o actual campeão e 7 outros jogadores. Tanto Kasparov como Vladimir Kramnik (actual campeão do mundo oficioso) declinaram o convite, sendo substituídos por outros dois grandes-mestres. Ao contrário do que sucedeu com outros anúncios da FIDE, tudo indica que este se irá concretizar. O vencedor do torneio de San Luis não será o campeão unificado. Porém, é de prever que Kramnik, sem o peso nem a fama de Kasparov, e fragilizado por uma série de fracas actuações em torneios recentes, verá a credibilidade do seu título muito afectada. Tudo dependerá, a meu ver, da prontidão com que colocar o seu próprio título em jogo, e da capacidade demonstrada pela Association of Chess Professionals, que o apoia. Mas chega de política. Esperemos pelo xadrez, e que este seja de puríssimo quilate, capaz de planar bem acima do nível rasteiro das querelas humanas.

segunda-feira, setembro 12, 2005

O SEU A SEU DONO: Celebrar-se-á, dentro de poucos meses, o centenário da lei que, em França, determinou a separação entre Igreja e Estado. Neste blog, daremos o devido destaque a este momento decisivo da história contemporânea. Em 2 de Dezembro de 1905, lia-se, no jornal católico "La Croix": «La loi veut faire de notre pays une exception unique et monstrueuse, inconnue de l'histoire, inconnue de la géographie: un pays sans Dieu.» Paradoxalmente (desde que se substitua "país" por "Estado"), até subscrevo estas palavras, a cem anos de distância. Mas em tom de exaltação, e não de consternação. É por estas e outras excepcionalidades que sou francófilo, e que o sou também retroactivamente.
ANÚNCIOS DE GATO PERDIDO INVENTADOS (12):
Perdeu-se lindo gato,
ó passantes,
ficai sabendo que esse lindo gato sou eu que vos escrevo
em rectângulos A4, à míngua de arauto garboso
que proclamasse o meu sonoro drama
!
Perdi-me do meu dono,
esse que uma espiritualidade mal dirigida
e o consumo compulsivo de Xanax transformaram
numa sombra daquilo que foi.
Os nossos afectos eram como laços,
como laços levou-os um zéfiro falso e cálido,
assistido por esse escultor cego, o
tempo.
Erro por travessas indiferentes
à minha dor.
Perdi-me do meu dono, mas apenas
simbolicamente, pois conheço o caminho para casa,
aliás estou agora junto à soleira,
saciado com o conteúdo de uma lata de sardinhas,
por sinal com molho de tomate picante.
Perdi-o enquanto bússola moral,
dedicado titilador da minha vaidade felina,
intermediário entre a minha insignificância
e o Mundo maiúsculo, bojudo,
pejado de leis e de ícones.
Bocejo, faz-se tarde.
Onde ia eu?
Bem, é um drama, aquilo que eu vivo.
Sem uma figura de dono, um bichano
não passa de um farrapo.
Gato por conta própria: eis coisa que não se admite!
Tende, pois, piedade de mim, passantes!
Dedicai a este felino albípede pelo menos um
dos vossos milhentos pensamentos
efémeros.
Apoiai o meu dono nesta hora ingrata.
À falta do que, definharei.
KAK-40: Leia o 1bsk, um blog que nunca será apanhado em contraciclo com as principais praças financeiras europeias!
LATIN'AMÉRICA: A Mostra de Cinema da América Latina já tem um site. Ainda não me debrucei com um pouco de calma sobre a programação. Entre os realizadores, não há nenhum nome que eu conheça. Espero vir a falar novamente sobre esta iniciativa. As hostilidades abrem na próxima quinta-feira.

quinta-feira, setembro 08, 2005

UM ENIGMA EM CAMADAS: Acalorados protestos de honestos pasteleiros indignados por verem reprimida a sua veia de críticos musicais... Uma prestigiada empresa de confeitaria em profunda crise... Manifestações de consumidores frustrados dispostos a tudo... E se a verdade por detrás deste caso tão delicado fosse muito mais profunda e sinistra do que parecem sugerir as aparências? A quem aproveita a instabilidade social? E se... (Atenção, trata-se apenas de suposições, meros feixes de conjecturas lançados à atmosfera ventosa de um fim de verão.) E se tamanho rebuliço se destinasse a esconder uma situação cem vezes mais embaraçosa? Terão algum fundo de verdade os rumores segundo os quais a fábrica de chocolates Mirabell encerra o segredo mais bem guardado da história da música ocidental? Poucos eruditos o admitem, com medo de serem ridicularizados pelos seus pares... Porém, à boca fechada, reconhece-se serem cada vez mais sólidos os indícios segundo os quais a grande maioria das obras atribuídas a Wolfgang Amadeus Mozart terão sido compostas pela irmã, Nannerl. Para citar apenas um exemplo, a ópera "Così Fan Tutte" chamava-se originalmente "Così Fan Tutti" (o que vem na linha, aliás, desta sugestão do Dissoluto Punito). A esse libelo dirigido por Nannerl contra a inconstância masculina, contudo, Wolfgang, com a cumplicidade do amigalhaço Lorenzo Da Ponte, aplicou uma simples mudança de género, tendo-a apresentado como obra sua, valendo-se da credibilidade que lhe grangeara a sua reputação de criança-prodígio. No seu leito de morte, instigado pelo remorso, e pelo inevitável visitante misterioso, Wolfgang acabou por redigir uma confissão. Guardada num baú pertencente ao seu último senhorio, e esquecido durante décadas, este documento foi encontrado por fim por Paul Fürst, um modesto confeiteiro de Salzburgo. Reconhecendo imediatamente a importância e gravidade da sua descoberta, Fürst dispôs-se a revelá-la, mas as reacções de choque e indignação persuadiram-no a adoptar um perfil mais discreto. Para financiar as suas investigações (com o fim de dar mais solidez aos argumentos favoráveis à sua tese), fundou a sua casa de chocolates, a Mirabell, e inventou a especialidade que lhe trouxe fama: uma bola de maçapão envolvida numa camada de praline e numa camada exterior de chocolate. O sucesso extraordinário desta guloseima subverteu as prioridades de Fürst: de melómano com uma missão, transformou-se num industrial preocupado apenas com a expansão do seu negócio. O segredo foi sendo transmitido através das gerações, e transformando-se num risco para a prosperidade de um negócio sólido e dinâmico. Por mais ciosos que fossem da inviolabilidade do segredo, os proprietários da Mirabell não conseguiram impedir por completo as fugas (que, diga-se o que disser, não são exclusivas da Procuradoria Geral da República Portuguesa). O segredo da autoria das obras de Mozart é, cada vez mais, um segredo de polichinelo. Mas os últimos a admiti-lo serão os que se recusam a admitir que fundaram um império chocolateiro sobre a supressão da verdade histórica. Será que esta instabilidade social súbita não passa de poeira para os olhos, tentativa de adiar o momento em que toda a verdade virá à superfície? Mas tudo isto, como eu digo, não passam de conjecturas... Assim como não passa de um rumor, isso que se diz por aí, de que, por detrás desta onda de revisionismo na história da música, se encontram grupos económicos poderosos, cuja face visível ao grande público são os licores Nannerl... Disponíveis em todas as lojas de recordações de Viena.
UM ESTUDO EM PÚRPURA: Nunca fui tão sincero neste blog como quando omiti a adjectivação associável à voz de Michael Lonsdale no filme "India Song".
PERGUNTAS SOBRE VIENA À ESPERA DE RESPOSTA (8/10): Uma sex-shop num aeroporto e uma montra com propaganda anti-aborto extremamente gráfica chegam para que se possa empregar a expressão "cidade de contradições"?
AGENDA: Os cinéfilos, nomeadamente os da região de Lisboa, não terão mãos a medir nos próximos tempos! Se não, vejamos.
  • De 15 a 24 de Setembro, Mostra de Cinema da América Latina, no Fórum Lisboa.

  • De 24 a 27 de Setembro, o Programa Designmatography IV, na Culturgest, com selecções das obras de quatro realizadores de cinema experimental norte-americanos: Morgan Fisher, Thom Andersen, Bruce Conner e Owen Land.
  • De 6 a 16 de Outubro, a sempre muito esperada Festa do Cinema Francês, no Fórum Lisboa (com extensões a outras cidades do país).
  • De 15 a 23 de Outubro, o festival DocLisboa, na Culturgest.

Tanto quanto pude descobrir, nem a Mostra de Cinema da América Latina nem a Festa do Cinema Francês têm programa ou site disponível na Internet, pelo menos para já. Limito-me, assim, a remeter para a página da EGEAC, que geria o Fórum Lisboa até à pouco. A propósito, espero ardentemente que os recentes quiproquós em torno desta empresa municipal não ponham em causa a realização destas (e de outras) iniciativas! Cruzemos os nossos dedos cinéfilos, e invoquemos São Carl Theodor, Santo Andrei...

ISTO ANDA TUDO LIGADO: Esta era a divisa dos tempos idos do 1bsk. E continua a sê-lo, embora de maneira latente. A falha transversal que recorta Lisboa, do zénite às catacumbas, dá-se bem com uma condição de semi-clandestinidade. Adoptamos a famosa táctica do grande republicano Léon Gambetta: Y penser toujours, n'en parler jamais! Acreditar nas causas e consequências que ligam as coisas, as pessoas, os factos, as leis, as paixões. Flutuar nas torrentes de ternura e desespero que essa crença segrega.

terça-feira, setembro 06, 2005

CINEMA: "De Battre Mon Cœur S'Est Arrêté", de Jacques Audiard. Atendendo à sua delicada premissa nuclear (um semi-rufia amoral, com apetite pelas conquistas amorosas, que decide reinvestir tempo na sua antiga paixão pelo piano), não mais do que duas bóias de salvação se ofereciam a este filme: ou glosar com derisão e distância o tema do "duro com talento", que aflora as teclas com mãos feridas por lacerações de refregas várias, ou então elevá-lo a um expoente máximo de violência expressionista, dinamitando, ao mesmo tempo, a verosimilhança e o sentimentalismo. Audiard, assim como o co-argumentista Tonino Benacquista, evitam ambas estas alternativas. Ao longo de todo o filme, parecem hesitar entre uma compaixão pudica pela personagem de Thomas e uma dimensão trágica que, francamente, nunca logra deixar para trás o seu lastro de lugares comuns. Pior ainda: com demasiada frequência, todo o esforço criativo que subjaz ao filme parece subordinado ao mero conflito entre as realidades imiscíveis da brutalidade física e da sensibilidade artística; e a abdicação que isto representa (como se um filme se movesse apenas à força de sucessivos e abruptos conflitos entre naturezas contrárias) é tanto mais frustrante quanto deixa por explorar numerosíssimas ocasiões potencialmente propiciadoras de intensidade dramática. O que de melhor tem "De Battre Mon Cœur S'Est Arrêté", para além do confronto entre filho e pai (espantoso, subtil Niels Arestrup), dessa cumplicidade ressentida, entre ternura e feroz indiferença, é, sem dúvida, o magnetismo que se desprende da personagem principal: Thomas Seyr, ex-virtuoso, convertido em elemento de um triúnviro de agentes imobiliários despidos de escrúpulos. A interpretação de Romain Duris (um actor ao qual, até ao momento, eu estaria longe de atribuir talento ao nível dos melhores da sua geração) é, a todos os títulos, notável. Dei por mim a desejar que o filme tivesse sabido acompanhar aquele histrionismo controlado, todo ele impulsos e arestas, aquela inconstante mistura de extroversão e de recalcamento; numa palavra, aquele corpo. Corpo ora falho de jeito, ríspido e incongruente, ora milimetricamente controlado. Na linha de Belmondo ou de Delon, Duris supera a dicotomia superficialidade/profundidade, compondo um "duro" cujo impacto visual imediato e insolente (eficazmente suscitado pela câmara de Audiard) sugere oceanos de conflito íntimo. Pudesse o filme ter feito jus a esta sublime dimensão corpórea da personagem, poupando-nos a certas desastradas guinadas do argumento e às "histoires de cul" enfadonhas, e teríamos algo um pouco mais próximo de uma obra-prima do que de um "polar" medíocre e rotineiro. (Evitei, propositadamente, falar sobre a maravilhosa Emmanuelle Devos, que tem um papel menor, e a quem espero dedicar post separado.)

domingo, setembro 04, 2005

BLOGAVANTE, MARCHE!: O Rui, que co-protagonizou uma aventura mineralógica ainda de fresca e grata memória, entrou como novo inquilino neste espaço, de onde nos passará a enviar notícias sobre fundo negro e sob título beckettiano. Nestes trilhos, já conhecidos, as bermas passam a conter novos motivos de interesse para encher as medidas ao peregrino. Se isto não é uma esplêndida notícia, então façam o favor de me mostrar uma esplêndida notícia, para eu aprender o que é.
PERGUNTAS SOBRE VIENA À ESPERA DE RESPOSTA (7/10): Como explicar a extraordinária profusão de cadernos Moleskine nas montras dos estabelecimentos de papelaria (e não só) vienenses? Admiração ou afinidade de todo um povo para com o escritor Bruce Chatwin, frenético consumidor destes blocos de notas (a acreditar na lenda que se apregoa)? Necessidade, partilhada por um generoso quinhão dos cidadãos, de apontar por escrito factos do quotidiano, pensamentos, inspirações fugidias, etc., para os quais a memória de curto prazo não se afigura suficiente? Política comercial agressiva da empresa fabricante? Ou uma quarta razão, ainda mais inverosímil, menos vulnerável às especulações do turista ocasional?
"JOURS LE JOUR" (5 E FIM): São estas as palavras finais do livro de Michelle Grangaud: «Le temps qui passe, le tank y passe, le sang qui tape, que sent-il passe, le temps qui sape, le tas qui pense, lent petit sac, que scie la tempe, lente qui passe, pâle temps kiss, kiss tend le pas. Car aujourd'hui n'est pas fini. Demain, après-demain, l'année prochaine ou dans mille ans, il y aura quelqu'un, ou du moins quelque chose, pour être encore aujourd'hui.
FOR USE AND DOSAGE IN THE ABSENCE OF DATA»
Este tributo final ao deíctico "hoje" encapsula a essência da obra: uma manifestação de discreta euforia pela capacidade indestrutível de se referir a um "agora", a um "este dia" que pressupõe a existência de um referencial temporal. Como se triunfar sobre a tirania do tempo passasse, não por projectar a soma dos anseios humanos num limbo intemporal, mas sim, bem pelo contrário, por abraçar com sofreguidão o decurso do tempo, conviver com a finitude e com ela dialogar por meio dos gestos e frases do quotidiano; ou seja, inscrever a vida, com deliberação, paixão e lucidez, no sulco moroso da cronologia. Contando sempre com o mais precioso garante da existência, e do devir de onde brotam tanto o amor como o desgosto: o poder de dizer "HOJE". A morte da eternidade. Parece ser isto que prefigura "Jours les Jour".

quinta-feira, setembro 01, 2005

"JOURS LE JOUR"(4): Ainda outro extracto do livro de Michelle Grangaud: «Il ne voulait pas me croire quand je lui ai dit qu'il existe à Paris une rue Lucien-Leuwen. Une rue qui porterait le nom d'un personnage de roman, impossible, dit-il. Je l'ai emmené, nous avions le temps.» Com efeito, existe em Paris (XXème arrondissement) uma rua baptizada em honra da personagem principal do romance de Stendhal. E, o que mais é, não é este um caso solitário em matéria de artérias parisienses com nomes de personagens ou títulos de romances, de peças de teatro ou de poemas. O precioso "Histoire et Mémoire du Nom des Rues de Paris", de Alfred Fierro, assinala: uma rue Monte Cristo (XXème arrondissement), uma villa Jocelyn (homenagem a um poema de Lamartine, XVIème arrondissement), uma rue d'Artagnan (XIIème arrondissement), e uma place de l'Assommoir (esta não consegui localizar na planta), próxima do local onde Émile Zola situa a acção do seu ciclo romanesco dos "Rougon-Macquart". Até onde o meu conhecimento alcança, não existe nenhuma rua de Lisboa que preste tributo explicitamente a uma personagem ou obra literária (com excepção da rua dos Lusíadas), o que é, deveras, uma lástima. À atenção das comissões de toponímia: uma Rua do Conselheiro Acácio, uma Praceta de Mofina Mendes, quiçá um Largo da Sibila, seriam como outras tantas luzidias cerejas no topo do bolo da urbe alfacinha!
TODO O MUNDO É COMPOSTO DE MUDANÇA, REMIX DO DJ DELGADO: Luís Delgado recalcou durante demasiado tempo a sua vocação de áugure: eis que ela ressurge com uma pujança que nos recorda os seus melhores dias! O DJ Delgado começa por nos revelar que «sendo o Poder efémero, passageiro, e inexistente, a nível de um Executivo, mesmo que apoiado numa maioria absoluta (que não é mais do que relativa...), como aliás se tem visto, aqui e noutros países, é sensato começar a olhar para as alternativas, construí-las, e fazer reaparecer os políticos que marcarão o nosso futuro.» Repare-se na delicada contenção com que as reticências encerram toda uma sabedoria inacessível ao não iniciado, perante a qual seria uma grotesca falta de sensatez e decoro ousar perguntar por que razão a maioria absoluta do governo PS não é mais do que relativa. O DJ Delgado prossegue o recital com a enumeração (que se pressupõe não exaustiva) de todos os temíveis escolhos que, inevitavelmente, farão soçobrar a caravela governativa, no decorrer de um ano de 2006 que se antevê "depressivo, tenso, irritante e inquietante". Sem desejar competir com Delgado no que toca à capacidade de síntese, contento-me em remeter para o texto original. À falta de clarividência, a prosa delgadiana possui sobre os oráculos délficos uma linearidade denotativa que a torna compreensível para a proverbial criança de cinco anos. Para rematar, para demonstrar que é mais do que um cronista "bota-abaixo", para provar que não é feito da mesma massa do que os demais artesãos da opinião que se limitam a maldizer sem apontar vias alternativas, o nosso esforçado DJ revela o nome do messias que está destinado a resgatar a nação ao mais tenebroso marasmo: «Querem um nome de futuro, credível, carismático e com capacidade de liderança? Nuno Morais Sarmento. E há mais, muitos mais, que já deram provas e reaparecerão, mais dia menos dia...» Delgado presta assim um inestimável serviço a todos os portugueses: ao sugerir que estamos reduzidos a esperar que alguém como Morais Sarmento ressurja, no esplendor do seu carisma, para assumir o leme da nação, mostra-nos a verdadeira profundidade do fosso em que nos encontramos. (Quanto aos "mais, muitos mais" que pedem meças a Sarmento em matéria de carisma e valor, a quem se poderá Delgado estar a referir? Eu aposto em Fernandes Thomaz e em Martins da Cruz.)