quarta-feira, novembro 30, 2005

BREVIDADE: É possível que a verdade seja triste, como no filme de Godard. E é inevitável que a brevidade a que tudo me obriga seja frágil e desolada.

domingo, novembro 27, 2005

É SEMPRE A MESMA CANÇÃO: A Cinemateca irá apresentar, no próximo mês, um ciclo intitulado "Tema e Variações". Neste ciclo serão apresentados filmes relacionados entre si pela história que desenvolvem, pela obra em que se baseiam ou por um outro aspecto menos óbvio. (Exemplos: "Tempest", de Paul Mazursky e "Prospero's Books", de Peter Greenaway; "Die Marquise von O...", de Éric Rohmer e "Benilde ou a Virgem Mãe", de Manoel de Oliveira; "India Song" e "Son Nom de Venise Dans Calcutta Désert", de Marguerite Duras.) Curiosamente, tal como é observado no programa, outros dois filmes deste mês poderiam também ter entrado neste jogo de correspondências: "Breakfast at Tiffany's" (apresentado na rubrica "O Que Quero Ver"), de Blake Edwards, e o novo filme de João Pedro Rodrigues apresentado em ante-estreia, "Odete". Ponto em comum: "Moon River", a canção que Henry Mancini compôs para o filme de Edwards. Aliás, esta canção parece exercer um fascínio cinéfilo duradouro sobre as gerações recentes de realizadores. Em "La Mala Educación", de Pedro Almodóvar, era uma versão de "Moon River", cantada pelo pequeno Ignacio, que comovia até às lágrimas o padre Manolo. E, no novo filme de Arnaud Desplechin, existe um tema musical recorrente baseado na mesma canção.

sexta-feira, novembro 25, 2005

ÁGUAS DE MARÇO: Desde as suas primeiras palavras (em Março e à chuva) que este blog, parece-me, tem vivido assombrado pelo desejo de exprimir num só troço de frase, agudo e elíptico, uma melancolia gélida que fosse ao mesmo tempo sentimento pessoal e latejante de universalidade. Não se trata de reconhecer o falhanço. Trata-se de ponderar quantas vezes a decência tolera a repetição de um tal falhanço.
DUAS PALAVRITAS APENAS: Duas palavritas apenas sobre o fim anunciado do Blogue de Esquerda (porque o meu estado de espírito presente não é compatível com epitáfios efusivos). O Blogue de Esquerda nunca deixou de ser um dos mais bem escritos e interessantes de Portugal. Contudo, e porque me parece supérfluo estar a cobrir de elogios um espaço que mereceu reconhecimento tão amplo e generalizado, por parte de tantos quadrantes diferentes, limito-me a esboçar uma nota pessoal. Foi o Blogue de Esquerda que me trouxe para a blogosfera. (Não directamente, é certo. Mas é como se o fosse.) E isso, que podia ser um quase nada, representou e representa muita coisa. Pelo menos para mim. Mas eu avisei de que isto era uma nota pessoal. Adeus e obrigado.
QUANTUM: A Quantum é uma revista on-line criada por alunos do Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Iniciativas como esta são extremamente louváveis, sobretudo numa altura em que parece estar cada vez mais na moda insistir no estereótipo do estudante universitário irresponsável e mimado, mais amigo dos shots do que dos livros. E mais não digo, por receio de cair num paternalismo tão detestável como os mais detestáveis lugares comuns. Dêem uma olhada na Quantum. Vale a pena.
SUMIÇO: A não perder, este elegante lipograma do Luís.

quinta-feira, novembro 24, 2005

SURSUM CORDA: O meu coração rejubila, e se o meu coração rejubila é porque está anunciada, já para a próxima quinta-feira, a estreia em Lisboa do filme "Rois et Reine" (Arnaud Desplechin). Tenho muita vontade de o rever, depois de uma sessão memorável na última Festa do Cinema Francês, e posso já garantir que ele saltará dos alforges da Atalanta para a minha lista dos melhores do ano. O filme de Desplechin suscitou uma rara quase-unanimidade entusiasta por parte da crítica especializada francesa. Isto, só por sim, nada quer dizer, e poderia até ser sinal preocupante. Neste caso, porém, julgo tratar-se do simples reflexo do modo como o autor do também genial "Esther Kahn" conjuga uma componente popular com um apelo cúmplice à inteligência e à ousadia do espectador. Espero voltar a falar deste filme.

terça-feira, novembro 22, 2005

MORE REPÚBLICA BLOGOSFÉRICA: O Boina Frígia é um muito interessante blog onde os temas republicanos merecem lugar de destaque. Parabéns aos autores!
IDEIA PARA UM CONTO: Eu tinha uma ideia para um conto baseado num poema de António Franco Alexandre, aquele poema dos "Quatro Caprichos" em que há uma pessoa que está a dirigir a equipa de basquetebol do liceu e o grupo de teatro do mesmo liceu. Mas o livro está numa estante demasiado alta para lá chegar sem me levantar, por isso fica para outro dia.

quinta-feira, novembro 17, 2005

Estou farto de não ter tempo para escrever no blog. Estou farto de não poder fazer deste blog mais do que uma ridícula sombra daquilo que eu gostaria que ele fosse. Estou farto.
PARIS E O SOBRESSALTO (4): Nestes tempos em que uma constelação inteira de fazedores de opinião é, a propósito dos motins em França, apanhada todos os dias em flagrante delito de superficialidade e má fé, não se deve deixar de exaltar os oásis de lucidez que subsistem, e a Esquerda Republicana é um deles. Isto é válido tanto para os artigos que aí são enlaçados como para aquilo que o próprio Ricardo vai escrevendo. O nível intelectual (e o estilo, já agora) dos artigos de Olivier Roy e Jason Burke nada tem a ver com aquilo que o leitor português se arrisca a ler quando folheia um qualquer órgão da imprensa escrita portuguesa. Não me falta vontade para rebater os trôpegos argumentos que tenho lido em jornais e blogs, os raciocínios adulterados e as generalizações abusivas, assim como as desavergonhadas tiradas francófobas. O que me falta é o tempo.
SAÚDE PÚBLICA: Não alimente os pombos, nem dê dinheiro aos músicos ambulantes do metropolitano! Desencorajar a cacofonia nossa de cada dia é tão importante como prevenir a gripe das aves.

terça-feira, novembro 15, 2005

CINEMA: "Last Days", de Gus Van Sant. Este filme partilha com o anterior de Van Sant (o magnífico "Elephant") uma recusa de qualquer reflexo interpretativo, mas também uma fé, quase absurda mas desprovida de qualquer ingenuidade, no poder da imagem para superar e dominar o desejo de explicar, possivelmente o mais humano de todos. Os últimos dias de Blake, estrela rock implodida no seu autismo lunático, decalcado de forma óbvia (e assumida) em Kurt Cobain, são-nos dados por meio de vinhetas, episódios aleatórios, encontros, comentários de terceiros. Van Sant situa qualquer nexo causal que pudesse ter existido num passado que é deixado resolutamente hors-champ. Aquilo a que nos é dado assistir é um lento, quase sonâmbulo, desfilar de uma personagem em direcção ao seu fim. Sobre os corpos em movimento (admiravelmente filmados, com uma franqueza quase incómoda), sobre os eventos, sobre o simples e inócuo correr do tempo, recai a reponsabilidade de ocupar o tempo que a verosimilhança, a psicologia, ou o pathos mais ou menos tradicional deixaram vago. Um teledisco dos Boyz II Men (transmitido por uma televisão e prolongado para lá de tudo o que pareceria razoável), um périplo pelos bosques, uma refeição ou uma canção assumem igual importância. Não existem cenas cruciais, é inútil procurar um fulcro. Gus Van Sant é, indubitavelmente, um dos mais interessantes realizadores americanos contemporâneos. Mas esta é uma constatação que não faz jus à verdadeira singularidade deste realizador. Coloquemos as coisas de outra maneira. Gus Van Sant é dos poucos criadores de cinema que tem vindo, de maneira continuada, a investir numa linguagem própria, pouco dada a rupturas ou subversões espectaculares, mas especificamente cinematográfica. Tanto em "Elephant" como em "Last Days" abundam os exemplos de soluções que passam por uma agudíssima perspicácia na composição do plano, e que transmitem algo que nos leva muito além da função narrativa ou da estética pictórica: aquilo que se presencia é uma inteligência da imagem em movimento, fecunda e aliciante. (Não resisto a contrastar a secura explícita e literal do título deste filme com a aforismo oblíquo que levou Van Sant a chamar ao seu filme anterior "Elephant". Mas não quero ver nisto mais do que uma curiosidade, vagamente intrigante.)
RATOS COM ASAS: Ninguém é perfeito, eu também não, e para a minha imperfeição contribui sobremaneira o facto de receber na minha caixa de correio o "Jornal da Região". (De Lisboa, no caso vertente.) Numa das suas últimas edições, este valoroso órgão da comunicação social informava-nos de que Romana "ficou satisfeita com o quartel", acrescentando, para nosso gáudio, uma declaração bombástica em discurso directo: "FIZ TUDO DIANTE DAS CÂMARAS". Esta frontalidade desarmante é desenvolvida logo na página 3: «Tudo o que fiz foi diante das câmaras, não desliguei microfones, nem me escondi na casa de banho para conversar fora das câmaras, como a Diana, a Vânia e a Valentina, e depois dizem que é por causa de um penso higiénico mas, 30 minutos? Isso é uma falta de respeito» Haverá limites para a perfídia? O habitante da região, depois disto, passa a ter razões concretas para duvidar. Logo na página 4, um naco de castiça antropologia alfacinha poderá (ou não) contribuir para desanuviar a má impressão deixada pelas ignomínias clandestinas da Diana, da Vânia e da Valentina. Directamente do jardim do Campo Santana (pelo qual vela, nunca é de mais relembrar, o divino Doutor Sousa Martins), relata-se que «o gesto de alimentar os pombos parece estar agora a ser mais condenado socialmente», por via, bem entendido, da ameaça da gripe das aves. Dois octogenários, JM e JS (os nomes por extenso são devidamente indicados no artigo, pois o "Jornal da Região" não brinca em serviço quando se trata de informar os seus leitores), insurgiram-se quando a senhora ML, de 70 anos, fez menção de distribuir milho às muitas aves ali existentes. «São ratos com asas, só trazem doenças e agora, com essa gripe à solta, ainda pior». Às almas sensíveis será grato ficar a saber que a senhora ML levou a sua avante, tendo esvaziado o seu saco depois de "invectivar" os contestatários. Dá prazer viver numa região na qual as pessoas se invectivam por causa de assuntos de saúde pública, a um lançamento de pedra da efígie de um antigo médico com fama de milagreiro.
ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS: A revista "Ficções" publicou um conto de Kleist, "O Órfão", numa tradução de José Maria Vieira Mendes.

sexta-feira, novembro 11, 2005

PERGUNTAS SOBRE VIENA À ESPERA DE RESPOSTA (10/10): E isto leva-nos à última pergunta sobre Viena à espera de resposta, desta vez formulada por outra pessoa. Viena será mesmo a cidade mais melancólica do mundo?

On a bed where the moon has been sweating, in a cry filled with footsteps and sand

(Leonard Cohen)

quinta-feira, novembro 10, 2005

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: A carreira de observador de leituras em lugares públicos é um longo e árido deserto, interrompido por raros oásis repletos de árvores e de suculentas tâmaras. Hoje, na linha vermelha do metropolitano, e para meu pasmo e deleite, sentou-se a meu lado um cavalheiro que lia a revista "Magazine Littéraire", número especial sobre a melancolia. A revista estava aberta numa entrevista de Pierre Assouline a Jean Clair, na qual, a dada altura, se pergunta se Viena é a cidade mais melancólica do mundo.
DA PÚBLICA À PRIVADA, ELES TÊM A ESCOLA TODA: Hoje, em pleno zapping rumo aos "Morangos com Açúcar", sofri um encontro imediato com o tal segundo canal aberto à sociedade civil coiso e tal, sob a forma de um programa de sua graça "Causas Comuns". A emissão era, hoje, patrocinada por uma tal Associação Cristã de Empresários e Gestores, e o seu tema era qualquer coisa como "a espiritualidade no meio laboral". Um dos convidados era o inefável João César das Neves, sem o qual, provavelmente, eu teria prosseguido o meu caminho alegre e célere através dos canais hertzianos. Em dois ou três minutos de discursata, JCN logrou debitar duas inverdades flagrantes, coisa que, para ele, é proeza corriqueira (dir-se-ia até que fica aquém da sua performance habitual): 1) JCN afirmou que todas as pessoas se questionam sobre o sentido da vida. Eu não me questiono sobre o sentido da vida. O "sentido" é uma construção cognitiva humana, cuja extensão ao mundo natural me parece falaciosa. Não é mais do que um recurso a que a cognição do ser humano lançou mão, na sua história evolutiva, no âmbito do seu esforço para assimilar os dados do Mundo exterior. Extrapolar esse conceito para um domínio transcendental é um logro pernicioso. 2) JCN afirmou que até as pessoas que dizem não ter religião têm uma: a religião da democracia ou da ciência, por exemplo. Eu não tenho qualquer religião. Admiro e defendo a democracia e a ciência especulativa, enquanto soluções para a organização das sociedades e para a aquisição e ordenamento de conhecimentos sobre o Mundo. Mas nem uma nem outra são uma religião. Bem pelo contrário: tanto uma como a outra se situam nos antípodas do dogma e da verdade revelada, que são coisas que eu repudio veementemente. Com tudo isto, já não fui a tempo de perceber se o Zé Milho e o Tó Pê se reconciliaram, e se os D'ZRT têm algum futuro.
AGUASFURTADAS: O número 8 da revista "Aguasfurtadas" estará em breve disponível. Este número inclui textos de Affonso Romano de Sant’anna, Margarida Ferra, João Luís Barreto Guimarães, William Blake (com tradução de Manuel Portela), Forugh Farrokhzad, Moshe Ha-Elion (com tradução de M.V. Andrade), Lourenço Bray, Paulinho Assunção, Valério Romão, António Tavares Lopes, Regina Guimarães, Saguenail e Jorge Mantas, para além de inúmeros trabalhos de artes visuais e o habitual CD Audio com obras de autores contemporâneos, que, neste número, inclui ainda uma verdadeira preciosidade: duas "Ostras", de Pedro Coelho. (Do "presse-rilize" que o Rui Amaral nos facultou.) Esteja atento às bancas e quiosques! Exija a "Aguasfurtadas"! Escarneça dos estabeleciementos que ignorem a sua existência!
PARIS E O SOBRESSALTO (3): Numa crónica recente do jornal "Público", Vasco Pulido Valente referiu-se aos distúrbios em França (que nessa altura ainda se confinavam à região parisiense) como sendo originados por bandos de "muçulmanos". Pelos vistos, VPV possui um conhecimento privilegiado relativamente à confissão religiosa dos fautores dos desacatos. O que tem transparecido, até ao momento, é que se trata de jovens maioritariamente oriundos de bairros desfavorecidos dos subúrbios. Mesmo o facto de serem, na sua maioria, provenientes de famílias com origem no maghreb ou África sub-sahariana não deveria ser tomado como indício certo e seguro da sua religião. Mas, para alguém como VPV, este tipo de extrapolações abusivas é o tipo de coisa nas quais já nem se repara. Brotam espontaneamente, a qualquer hora do dia. Não duvido de que VPV só por modéstia não revelou tudo aquilo que sabe sobre os energúmenos incendiários, incluindo nomes, moradas, idades, preferências musicais e habilitações literárias. VPV seria ofensivo se não fosse tão irrelevante.

terça-feira, novembro 08, 2005

CAUÇÃO LITERÁRIA: Depois da caução científica, eis uma caução literária para os meus gatinhos perdidos: «Mas depois existem estas raparigas desbotadas e envelhecidas que se vão incessantemente abandonando sem resistência, raparigas fortes, cujo íntimo nunca foi usado, que nunca foram amadas. (...) Nunca caíram de muito alto de uma esperança, por isso não se quebraram; mas estão amachucadas e já demasiado estragadas para a vida. Apenas gatos perdidos vêm ter com elas à noite ao seu quarto e secretamente as arranham e dormem sobre elas.» (Rainer Maria Rilke, "As Anotações de Malte Laurids Brigge", 60. Tradução de Maria Teresa Dias Furtado.) (A propósito, Cristina, resta saber se o teu método é invariante relativamente ao número de lados do polígono, distância em relação ao centro, altura a que o cartaz é afixado, condições meteorológicas, altura do mês e orientação relativamente ao campo magnético terrestre. Ah, e o verdadeiro Bergotte é aquele que ostenta no interior da orelha esquerda uma zona mais clara, que faz lembrar uma folha de tília.)

segunda-feira, novembro 07, 2005

ENTRETANTO, NO MUNDO DA FANTASIA...: A cidadã Leonor, o pequeno bocadinho de gente que vai obrigar à revisão da constituição de um país com mais de 40 milhões de habitantes (mais uma das risíveis aberrações em que as monarquias são pródigas), foi apresentada à imprensa, que inundou o seu rostozito com as primeiras de muitas dezenas de milhares de rajadas de luz flash. Numa nota um pouco mais séria, no episódio de hoje dos "Morangos", a directora da escola (superiormente interpretada por Ana Zanatti) descobriu finalmente que o Cristiano anda a dormir na Associação de Estudantes.
PARIS E O SOBRESSALTO (2): Há uma pergunta que me assalta a mente. Se as políticas musculadas de Nicolas Sarkozy tivessem tido sucesso, se a sua aposta na repressão em detrimento da prevenção e da mediação tivessem reduzido significativamente a criminalidade violenta nas "banlieues", alguma vez os suspeitos do costume (José Manuel Fernandes, Helena Matos...) se coibiriam de brandir bem alto este sucesso da "tolerância zero"? É claro que não. Mais tarde ou mais cedo, lá saltaria a exaltação desta "lufada de ar fresco" numa França demasiado tempo conivente com a marginalidade de cariz mais ou menos étnico. Seria (parece que estou a adivinhar os títulos) uma vitória do bom senso contra os desmandos do politicamente correcto, uma lição para a Europa, et caetera. Perante esta explosão de violência, algum dos suspeitos do costume se atreveu sequer a sugerir que Sarkozy e a sua atitude podem ter tido o seu quinhão de responsabilidade? Não estou sequer a afirmar que seja uma explicação legítima. Mas seria, parece-me, uma hipótese natural. Haverá maior demonstração de incompetência do que um ministro do interior se ver confrontado com uma situação de motins urbanos incontroláveis a nível nacional? Mas nada disto deve surpreender quem percebeu já quão longe são capazes de ir certas pessoas para moldar os factos do Mundo às suas mundividências tortuosas, dia após dia, semana após semana, em letra de imprensa.
PARIS E O SOBRESSALTO (1): Os tumultos na região parisiense, que recentemente alastraram a outras cidades francesas, prestam-se a uma leitura muito óbvia, que consistiria em culpar a inépcia dos sucessivos governos franceses, e a esterilidade do modelo republicano francês caracterizado pela ênfase na ideia de integração e de assimilação. Infelizmente, uma tal leitura deriva inevitavelmente para linhas de argumentação "desculpabilizadoras" e "sociológicas", a que muitos (precisamente os que mais prontos se costumam mostrar para criticar a França) opõem um anátema feroz e inflexível. De facto, se a culpa é do estado francês, da sua incapacidade para assimilar as minorias étnicas e resolver o problema do desemprego, isso fornece um esboço de explicação causal para os comportamentos violentos dos jovens vândalos. E, como sabemos, para 50 % (estimativa por baixo) dos cronistas da imprensa portuguesa, EXPLICAR (a violência, o terrorismo) equivale a JUSTIFICAR e LEGITIMAR. E contudo, com comovente desenvoltura, artigos de opinião recentes, vindos a lume recentemente na imprensa, logram, no seu conjunto, a proeza de zurzir na nação francesa E no politicamente correcto! Sem complexos nem meias medidas! Uma coisa é bem certa: todos parecem ter uma opinião bem fundada sobre o assunto. Todos se descobrem especialistas instantâneos nas problemáticas das "banlieues". Não duvido, nem por um segundo, que o presidente francês, o primeiro-ministro, o ministro do interior, quiçá o comando central da polícia da região da Île-de-France, esperam ansiosamente, todas as manhãs, pela remessa de jornais portugueses, que, devidamente traduzidos por funcionários do Instituto Camões a quem foi imposta a requisição civil, lhes proporcionam a chave para descodificar a situação.
SOBRE OS OMBROS DE GIGANTES: Mais algumas sugestões para quem nutra fantasias envolvendo imitação de hábitos de grandes homens de letras do passado: - Recusar a entrada nos seus aposentos a todo aquele que tenha socializado com uma dama que tivesse tocado numa rosa, com medo de uma crise de asma (Proust) - Percorrer meia Europa para se encontrar com uma dama ucraniana e persuadi-la a contrair matrimónio (Balzac) - Beijar um cavalo encontrado na rua (Nietzsche) - Divorciar-se ao fim de dia e meio de casamento (Katherine Mansfield) - Desaparecer (Pynchon, Salinger, Herberto Helder...)
ONDE VAIS RIO QUE EU CANTO: Rui Rio, presidente da Câmara Municipal do Porto, e frequentador da mítica cervejaria Cufra, decidiu passar a dar entrevistas apenas por escrito, emulando (deliberadamente, não o duvido) Vladimir Nabokov em pessoa! Pergunto-me se Rio levará a sua admiração mimética por esse grande homem de letras russo ao ponto de apreciar borboletas, detestar Camus e escrever com lápis que duram mais do que as borrachinhas no seu topo.

quarta-feira, novembro 02, 2005

SÃO FRAGMENTOS, SENHOR...: «(...)admettant alors que, de la naissance à la mort, un grand poème s'élaborait dans le subconscient du poète qui ne pouvait en révéler que des fragments arbitraires.» Robert Desnos escreveu isto no posfácio à sua recolha de poemas "Fortunes", renegando uma posição dos seus tempos do surrealismo. A ideia, contudo, seduz-me, sobretudo quando transposta para o domínio da ficção. A escrita de romances como revelação, mais ou menos parcimoniosa, mais ou menos prolixa, de facetas isoladas de um único e tremendo edifício ficcional. Instantâneos oblíquos de uma máquina pletórica, com ambições a Mundo.
SUSPENDAM AS ROTATIVAS!: Anuncia-se que a Polícia Judiciária procedeu recentemente a uma busca na residência de Jorge Coelho, aparentemente no intuito de deitar mão a um tabuleiro de xadrez precioso que lhe teria sido oferecido por um empresário! Ficou, naturalmente, desperta a minha curiosidade sobre uma eventual paixão do dirigente socialista pelo "jogo real", e sobre as suas opiniões acerca das variantes Najdorf e Scheveningen da defesa siciliana. E espero que o assentar da poeira não traga consigo a revelação de que a eventual posse do referido tabuleiro se deveu unicamente ao valor venal deste. Aproveito a ocasião para fazer referência a um aspecto cuja aparente irrelevância esconde insondáveis abismos de insalubridade social da sociedade em que vivemos. É frequente, em lojas de artigos decorativos e outras, vermos expostos belíssimos tabuleiros de xadrez. No entanto, com frequência, esses tabuleiros estão rodados de 90 graus relativamente à posição correcta. Para que não subsistam enganos, aqui está um exemplo de tabuleiro de xadrez na posição correcta.

Para servir de comparação, eis agora um outro tabuleiro, numa posição errada. (Ignorem, por favor, o insólito tolkieniano das figuras.)

A diferença, parece-me, salta à vista. Os quadrados brancos (ou de cor clara) devem situar-se no canto inferior direito e superior esquerdo, do ponto de vista dos jogadores. Não seria, de todo, inoportuna, uma série de rusgas dirigidas aos estabelecimentos comerciais que expusessem tabuleiros de xadrez sem se dar ao trabalho de consultar previamente um qualquer "Xadrez para principiantes".

terça-feira, novembro 01, 2005

ANÚNCIOS DE GATO PERDIDO INVENTADOS (13): (dedicado à Cristina, com vénia para os seus esforços de legitimação científica destas fantasias anunciadoras felinófilas)
perdeu-se lindo gato, numa rua soalheira e ingrata vizinha desta
numa rua ingrata e com nome de homem santo, perdeu-se ele
e o seu nome era Bergotte, que é nome estranho mas bem soante
e as suas manias eram as de um gato, e eis-me triste oh tão triste
aguçar garras em sofá e espreitar ciclistas através da janela
praticar acrobacias em muro de quintal, implorando atenção
cobiçar plumas de pombo tombadas no fundo de urbanas sarjetas
o homem santo da rua era, parece, um fervoroso estilita
de cuja garganta vociferante partiam apelos à penitência
parece, porque eu só tinha olhos e atenções para o meu Bergotte
perdido agora, e agora mal evocado neste anúncio trôpego
que aos cânones diz nada, por incompetência de quem redige
neste anúncio que eu espalho por ruas menos ingratas
menos aziagas para a população felina, assim o espero
ruas desta cidade conquistada aos mouros com derrame de sangue
hoje em dia com aspirações a sólida projecção europeia
neste ano da graça radiante e dotado de abismos, como um rosto
VOILÀ:
«Tiens, voilà pour l'usine, voilà pour l'amour,...
voilà pour l'argent, et voilà pour les souvenirs!»
(Do filme "Passion", de Jean-Luc Godard, que foi visível na Cinemateca na passada segunda-feira. Frase proferida por Hanna Schygulla.) (Fragmentos da "Virgem da Imaculada Conceição", de El Greco, e "3 de Maio de 1808. Execução dos Defensores de Madrid", de Goya.)