sexta-feira, dezembro 30, 2005
CINEMA: Não tenciono fechar a minha lista dos melhores de 2005 antes de ver "Odete", que acaba de estrear. Gostei muito da entrevista que João Pedro Rodrigues deu ao "DN". Dela destaco esta passagem:
«Depois de Parabéns e Fantasma, este filme começa a revelar claras marcas autorais. O rigor na imagem, nas formas, luz, enquadramentos, o gosto pela cor... Exigências técnicas...
Isso vem do cinema de que gosto. É claro que fiz a escola de cinema, mas aprendi a fazer filmes a ver filmes. Acredito que uma imagem não é indiferente. O que se escolhe enquadrar, e o que se deixa de fora, faz sentido. E acredito que os filmes só podem ser assim.»
Uma imagem não é indiferente.
Seria talvez esta a frase que eu colocaria à cabeça de um eventual credo pessoal enquanto espectador de cinema.
quinta-feira, dezembro 29, 2005
CINEMA: "Broken Flowers", de Jim Jarmusch. Há um momento de transição em "Broken Flowers" cuja localização exacta depende mais da atenção e das expectativas do espectador do que de qualquer dinâmica intrínseca do filme. Falo do momento em que, independentemente da personagem principal (mas com plena consciência da parte desta), as pistas em que a lógica do filme parecia repousar (o papel de carta cor-de rosa, a máquina de escrever...) passam da parcimónia a uma inquietante superabundância. Durante um lapso de tempo considerável, mesmo sem se deixar conquistar pelo enlevo detectivesco do filme, o espectador é tentado a não abandonar a sua fé naqueles indícios que revelarão a Don (Bill Murray) a identidade da antiga amante que lhe escreveu a anunciar que teve um filho dele, dezanove anos atrás. Mas que fazer de sinais que, em lugar de se assumirem como ajuizados aglutinadores da tensão narrativa, assumem uma cadência própria, ocupando o espaço e tempo como que sobrepondo-se a qualquer coerência? Desinvestidos da sua carga, abdicando alegremente da sua capacidade de significar, precipitam um enorme absurdo, que a câmara de Jarmusch tem a arte de transformar em algo de terno e tranquilo.
"Broken Flowers" é um filme sobre a perda da fé numa legibilidade do mundo que o redima da sua implacável contingência. Não sabemos ao certo até que ponto Don chega a albergar essa fé, ou de quão alto cai aquando do desenlace. Mas a viagem que com ele empreendemos emula o trajecto que todos os seres humanos parecem condenados a cumprir, alguns mais do que uma vez. Felizmente, o humanismo que perpassa por "Broken Flowers" nunca roça a grandiloquência (e haverá cineasta menos grandiloquente do que Jarmusch?).
O resto é um road-movie que adopta um registo deliberadamente disfórico, em completa oposição de fase com a aura libertadora que esse sub-género se habituou a adoptar. O resto são as aparições meteóricas de tantas grandes actrizes, que dispensam os ademanes pueris frequentemente exigidos pela lógica do cameo. O resto, claro, é também Bill Murray. Não pretendo destoar do coro laudatório com que foi mais uma vez brindado este seu desempenho. Permito-me, somente, manifestar algum receio perante a perspectiva de acabar por ver Bill Murray encurralado nesse papel de palhaço triste fleumático e minimalista. Por mais que esse papel sirva o seu estilo e o seu corpo, deixá-lo petrificar-se nesse registo seria uma afronta à sua versatilidade.
quarta-feira, dezembro 28, 2005
UN CERTAIN AR DE FAMILLE ou ROIS ET REINE (5): Em "Rois et Reine" (não sei se já terá dado para perceber que este filme não me desagradou completamente!) são abundantes as ramificações e alusões a genealogias reais e cinéfilas. Lista não exaustiva:
- Mathieu Amalric e Emmanuelle Devos formavam já o par central de "Comment Je Me Suis Disputé... (Ma Vie Sexuelle)", film-fleuve que revelou em definitivo o talento e a originalidade de Arnaud Desplechin.
- Joachim Salinger, que desempenha o papel de Pierre em "Rois et Reine" (marido e pai depois de morto), é irmão de Emmanuel Salinger, que fazia parte do núcleo inicial de actores próximos de Desplechin, tendo assumido o papel principal em "La Sentinelle" e feito parte do elenco de "Comment Je Me Suis Disputé...". Os espectadores portugueses viram recentemente Emmanuel Salinger em "Triple Agent" de Rohmer (ele era o jovem comunista vizinho do "triplo agente" Fiodor).
- Noémie Lvovsky, que desempenha o papel da irmã de Mathieu Amalric (a que acaba por ser responsável pelo seu internamento) foi colega de curso de cinema de Arnaud Desplechin, tendo sido argumentista dos dois primeiros filmes deste: "La Vie des Morts" e "La Sentinelle". Tem conduzido uma carreira paralela como actriz e realizadora.
- Magali Woch, a Arielle ("chinesinha") de "Rois et Reine", protagonizou dois filmes de Noémie Lvovsky: "Petites" e "La Vie Ne Me Fait Pas Peur" (o primeiro para TV). Ambos notáveis, diga-se de passagem. Este papel no filme de Desplechin pode representar uma transição coroada de sucesso de curiosidade adolescente para jovem esperança do cinema francês, e, aliás, valeu-lhe uma nomeação para o César de melhor revelação.
- Por fim, Maurice Garrel é o pai de Emmanuelle Devos no filme, e o pai do realizador Philippe Garrel na vida real. (Deste último, aguardo ansiosamente "Les Amants Réguliers", que tem sido coberto de elogios por onde passa.)
«Pourtant il faut insister sur la démarche initiale et fondamentale: la République, en fin de compte, repose sur le refus conscient de toute forme de transcendance. En tant que régime politique, sans doute; mais elle n'est pas seulement un régime, puisqu'elle construit et détermine elle-même l'individu comme la société. Ce refus de la transcendance sera donc aussi large et aussi complet que possible, et débordera la politique au sens étroit do mot. (...) Il ne s'agit pas, bien entendu, de prendre parti autoritairement sur les problèmes religieux, sur l'existence ou la nature de Dieu: des républicains ont le droit de croire ou de ne pas croire. Il s'agit de définir une démarche mentale et politique qui rende inutiles ou inadéquates les questions de ce genre, de trouver un terrain nouveau sur lequel elles n'ont pas de compétence.»
(Claude Nicolet, "L'idée républicaine en France (1789-1924)".)
MENSAGEM: O que pode justificar a transmissão televisiva da tradicional mensagem natalícia do cardeal-patriarca de Lisboa?
Ou bem que a mensagem se destina aos católicos; e, nesse caso, por mais louvável e compreensível que seja José Policarpo dirigir-se às consciências dos membros do seu rebanho, compreende-se mal o que pode levar uma estação de televisão pública a dar o seu beneplácito hertziano a uma comunicação pastoral exclusivamente dedicada a uma comunidade religiosa.
Ou bem que a mensagem se destina aos portugueses em geral; e, nesse caso, existe legitimidade para perguntar ao senhor cardeal que tipo de mandato ou autoridade possui para dirigir exortações ao povo de um país soberano, que possui os seus magistrados eleitos democraticamente.
A situação seria menos abusiva se o senhor cardeal se confinasse à esfera espiritual; mas só os cândidos podem esperar de um alto membro do clero católico, se lhe for dada a oportunidade, que este enjeite a ocasião de plantar foice em seara alheia, e de dar largas a essa antiga propensão para traçar as fronteiras da conveniência e da integridade moral de todos aqueles que julga abarcados pela sua alçada.
terça-feira, dezembro 27, 2005
ROIS ET REINE (4): Há uma entrada relativa à expressão "fou à lier" (que consta do poema de Michel Leiris de onde deriva o título do filme) no "Dictionnaire des Expressions et Locutions", de Alain Rey e Sophie Chantreau, da colecção "Les Usuels du Robert" (um dos mais úteis e preciosos livros que adquiri durante a minha estadia em terras parisienses). Segue um extracto:
«Dans l'usage courant, la valeur coercitive de l'expression n'est plus sentie avec son intensité première: elle a été en grande partie démotivée, à lier ne conservant que la notion superlative de "complètement, totalement". En effet l'idée de violence attachée à fou s'est effacée devant celle d'extravagance (cf. les locutions voisines, courantes au XVIIIe s.: fou à courir dans les rues ou les champs).»
segunda-feira, dezembro 26, 2005
ROIS ET REINE(3): Escreve Jorge Mourinha, no "Público", a propósito do último filme de Arnaud Desplechin:
«(...)é nesse metódica acumulação de pormenores ao longo de uma narrativa toda construída em tangentes, bem como nas irrepreensíveis interpretações, que o filme justifica o interesse, sem nunca conseguir erguer-se acima de um certo cinema francês palavroso, literário, teatral, incapaz de conquistar do espectador envolvimento emocional.»
Não espero que todos alinhem no mesmo entusiástico diapasão com que me tenho vindo a referir a "Rois et Reine", para mim um dos filmes maiores do ano que agora acaba. Mas julgava-me no direito de contar com um pouco mais de penetração crítica da parte de alguém que escreve para um jornal com uma curta, mas sólida, tradição de tratamento da coisa cinematográfica.
Com efeito, afirmar deste filme que ele é incapaz de se erguer "acima de um certo cinema francês" é incompatível com a tensão, que a ele preside, entre ruptura formal com tendências contemporâneas e um desejo de continuidade e manifesto respeito por antecessores. É esta coexistência entre o pendor classicista e um apetite pela invenção que é responsável por uma larga parte do fascínio que emana de "Rois et Reine".
É, pois, decepcionante que um filme que tão exuberantemente exibe a sua vontade (conseguida) de fazer diferente acabe remetido ao tristonho estatuto de "mais do mesmo".
É caso também para perguntar a que "certo cinema francês" se refere Jorge Mourinha. "Palavroso"? Nem todos os cineastas franceses são Rohmer. A suposta preponderância do diálogo no cinema francês parece-me ser da ordem do mito ou do lugar-comum. "Literário"? Em nenhuma outra cinematografia se tem sentido com tanta intensidade a urgência da busca de uma linguagem própria para o cinema, independente de modelos literários ou outros. Não é preciso procurar muito longe para se encontrar um cinema onde as preocupações com a caução literária se sentem com muito maior premência - basta cruzar o canal da Mancha. "Teatral"? Desde a Nouvelle Vague que o cinema francês é predominantemente anti-teatral, com predominância de um naturalismo radical pouco devedor das artes cénicas. Quando o teatro é abordado (por exemplo pelo próprio Desplechin na sua anterior longa-metragem, "Léo, en Jouant Dans la Compagnie des Hommes", infelizmente inédito entre nós), é-o quase sempre de forma explícita e crítica.
Quanto à incapacidade de "conquistar do espectador envolvimento emocional", candidato-me a contra-exemplo vivo disto mesmo. Mas fico-me por aqui. Ça me regarde. E, em todo o caso, já saímos do domínio dos argumentos críticos.
domingo, dezembro 25, 2005
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: No comboio Alfa Pendular, uma senhora de idade, viajando a meu lado, lia um livrinho de orações ao Doutor Sousa Martins.
Jamais me senti a tal ponto irmanado com um companheiro de viagem desconhecido.
Não ousava admitir que pessoas que liam orações ao Divino Doutor em público existissem fora das minhas fantasias mais desvairadas. E, porém, aquela senhora estava ali. A meu lado. Reflectia luz e emitia som. Até falou comigo. Não repliquei. Pretenderia converter-me? Inútil. Não existe discípulo mais fervoroso do ilustre médico de Alhandra do que este vosso criado.
SEGUNDA REPÚBLICA: Tal como o autor deste post no blog Ponte Europa, também sou da opinião de que devemos designar o regime em que vivemos actualmente por "Segunda República", e não "Terceira República".
Não basta que seja eleito um Presidente de tantos e tantos anos, não basta que a palavra "República" apareça em moedas e papel de carta dirigido a potências estrangeiras para que um regime possa ser considerado republicano.
O corporativismo, o conúbio com a Igreja e os atropelos constantes às liberdades democráticas que caracterizaram o Estado Novo são incompatíveis com a noção de "República".
Os regimes genuinamente republicanos que brotaram, desde as Revoluções Americana e Francesa, mas essencialmente a partir do século XX, caracterizaram-se por ser fortemente teorizados, lançados em bases doutrinárias sólidas. Muitas das mais brilhantes mentes políticas dos últimos dois ou três séculos estiveram implicadas na sua formulação. Essa foi uma condição necessária à sua sobrevivência num ambiente hostil, sob a permanente ameaça de correntes legitimistas e ultramontanistas que esmagariam sem piedade uma República deficientemente consolidada.
Não façamos a todos aqueles que participaram dessa continuada aventura intelectual a desfeita de tomar a nuvem por Juno, chamando "República" a um regime que não passou de uma sórdida caricatura disso mesmo.
UM, DOIS, ESQUERDO, DIREITO: Ribeiro e Castro, esse eminente benfiquista, afirmou recentemente ser o terrorismo essencialmente (ou exclusivamente) uma tara cuja origem está na esquerda.
Tal asserção é tão válida ou absurda como defender que toda a xenofobia é de direita.
Igualmente absurdo, mas também ocioso, mas também perfeitamente dentro da mesma lógica de irresponsabilidade demagógica, seria cotejar o número de vítimas do terrorismo com o número de vítimas da xenofobia e anti-semitismo.
Nestas coisas da retórica, nem sempre o contexto é devidamente tido em conta, e, no presente caso, o contexto era um encontro da Juventude Popular. Entende-se, assim, o excesso de zelo de Ribeiro e Castro. Quando se trata de incutir em mentes frescas e jovens a solene urgência do combate político, não convém ser nem demasiado moderado nem demasido subtil.
Nesse mesmo encontro, João Almeida afirmou querer conquistar a geração «que vê o 'Morangos com Açúcar' [série televisiva], que saca mais músicas da Internet do que os CD que compra, do messenger e do HI5», tarefa que se me afigura espinhosa se ele não adoptar um penteado semelhante ao do Tó Pê dos D'ZRT.
IMPERDÍVEL: Os Blogues Imaginários n'"A Invenção de Morel" e a série São Sebastião Revisitado no "Welcome to Elsinore".
SEASON'S GREETINGS: Desejo um Bom Natal a todos aqueles que continuam a visitar este espaço, ignorando decerto a existência de carradas de outros blogs muito mais interessantes, e nos quais é bem menos insensato perder o seu tempo (o tempo que Santo Agostinho não sabia o que era, quando lho perguntavam).
quinta-feira, dezembro 22, 2005
AH, SILOGISTA!: Tento falar o menos possível de futebol, mas desta vez não resisti.
O virtuoso presidente da agremiação portista, de sua graça Jorge Nuno, protagonizou recentemente um episódio em que a sua celebrada lábia se voltou contra ele, com uma elegância lógica tão impressionante que levanta suspeitas de premeditação.
1) (A propósito das declarações de Luiz Felipe Scolari acerca das razões que o terão levado a nunca convocar Vítor Baía e João Pinto.) «Não vou responder às últimas polémicas, porque, por princípio, não respondo a cobardes. Considero cobarde todo aquele que lança suspeitas, diz coisas e depois diz que não disse.»
2) (A respeito da arbitragem no jogo Benfica-Nacional.) «Não sei se isso pode ser considerado uma fraude ou se alguém tem necessidade de ir ao oftalmologista. Não sei... Estou só a referir o que toda a gente viu.»
(Tudo isto no mesmo artigo de jornal.)
3) A conclusão, parece-me, decorre de 1) e 2) com uma naturalidade que dispensa conhecimentos aprofundados sobre lógica silogística.
MEMÓRIA DILETANTE E NÃO DE ELEFANTE: Existe um livro (Miguel Delibes, "Os Santos Inocentes", Teorema, 1991), que li há uma porção de anos, e de que só me recordo de um pormenor: uma das personagens costumava urinar nas mãos para as aquecer.
Já ouvi falar em memória selectiva, mas isto é ridículo.
«Mais, par rapport aux autres pays du même type, l'Angleterre, l'Amérique et l'Allemagne essentiellement, l'idéologie républicaine, on l'a vu, apporte quelque chose de plus: le sentiment affirmé d'être une forme d'organisation politique qui non seulement favorise la science, mais, en grande partie, dépend d'elle. Elle en dépend pour achever d'abord de se libérer des dernières prétentions du dogmatisme religieux à régler la vie civile et intelectuelle des citoyens.»
(in "L'Idée Républicaine en France (1789-1924)", de Claude Nicolet, Gallimard)
quarta-feira, dezembro 21, 2005
SURPRESAS POSTAIS: Nas séries e nos filmes, sempre que uma personagem, ao vasculhar distraidamente o correio recém-chegado, diz que "devem ser só contas para pagar", é certo e sabido que vai topar com uma carta ou postal inesperado, capaz de mudar a sua vida (ou, em todo o caso, de fornecer matéria para mais uma vintena de episódios).
sexta-feira, dezembro 16, 2005
ROIS ET REINE (2): O título do filme foi, segundo as palavras do próprio Desplechin, inspirado nos seguintes versos de Michel Leiris:
Rois sans arroi,
Reine sans arène,
Tour trouée,
Fou à lier,
Cavalier seul.
Trata-se, obviamente, de uma sequência de imagens xadrezísticas. As menções a "rois" e "reine" explicam-se a si próprias (se bem que, em francês como em português, "rainha" seja um termo familiar e informal para designar a "dama", esta sim a designação correcta da peça). "Cavalier" é o termo francês com que se designa a peça "cavalo"; "Cavalier seul" (título do último livro do pai de Emmanuelle Devos, interpretado com uma sublime e austera contenção por Maurice Garrel) é uma locução que se aplica àqueles que escolhem uma atitude de contestação, ou que enveredam por caminhos ou opiniões pouco batidas. A "tour" é a "torre".
Resta-nos o "fou", que mais não é do que o nosso "bispo". Na jacobina França, esta peça perde as suas conotações clericais, e assume os atavios de um "louco", ou talvez, mais exactamente, de um bobo da corte. A deliciosa expressão "fou à lier" equivale ao nosso "doido varrido". Traduzida a letra, sugere que o indivíduo em questão, de tão louco, precisa de ser amarrado.
No filme de Rohmer "Conte d'Hiver" existe um memorável diálogo onde intervém esta expressão:
FÉLICIE: J'ai été conne, conne. Conne à lier.
MAXENCE: «Folle à lier». On ne dit pas «conne à lier». On dit «Folle à lier».
FÉLICIE: Tu vois, je ne sais même pas parler français.
quarta-feira, dezembro 14, 2005
NÃO É ESSE AMARANTE: Certas fontes dignas de crédito garantem-me que, para minha desilusão, o novo CD da cantora Enya intitulado "Amarantine" não é uma homenagem a Agustina Bessa-Luís.
ROIS ET REINE: Depois de "Pas de Repos pour les Braves", eis que estreou entre nós "Rois et Reine", de Arnaud Desplechin, mais um argumento para o arsenal daqueles, entre os quais me conto, que defendem ser o cinema francês o mais interessante da actualidade.
Existe um aspecto curioso nas reacções da crítica (mais ou menos especializada) a este filme. Poucas foram, de entre aquelas que li, as que omitiram essa coexistência entre registos antagónicos: o burlesco (de que o desventurado Mathieu Amalric assume a parte leonina) e o extremamente trágico.
Poucos são, no entanto, aqueles que aprofundam esta (inegável) natureza híbrida. Será que, só por si, fazer caber tanto o cómico como o pungente na mesma longa-metragem é façanha digna de encómio? Parece-me que não. O valor de um cineasta não se mede em função de acrobacias a que se entregue, nem meramente em função da amplitude da paleta de emoções que emprega.
Desplechin está longe de ser um vão malabarista de imagens e argumentos. E o registo heterogéneo e inconstante que adopta em "Rois et Reine" é perfeitamente coerente com a sua riquíssima obra passada, que lhe grangeou a aura de seguidor de um cineasta popular-inteligente como Truffaut, ou de um subtil agente subversor de géneros, como Resnais. Para Desplechin, categorias e géneros não são espartilhos nem cadernos de encargos, mas sim plataformas de apoio, dotadas de memória cinéfila que urge respeitar sem subserviência.
Defendo que a componente mais fascinante do cinema de Desplechin passa precisamente por uma ancoragem num cinema clássico, devedor da narrativa e da definição de personagens com espessura psicológica, uma ancoragem flexível quanto baste para permitir vastas latitudes de exploração celebratória das possibilidades do cinema. Sem vanguardismo explícito, Desplechin distingue-se da quase totalidade dos seus pares pela vontade (e talento) de tratar cada cena como um problema de cinema, equacionável e solúvel por meio de imagens em movimento, parte de um todo mas também dotada de uma energia própria.
"Rois et Reine" é um filme deslumbrante acima de tudo devido à reverberação de inventividade cinematográfica que acompanha o desenrolar da lógica do enredo, como se todo ele estivesse banhado numa vontade de expressão, transbordante mas disciplinada. Algumas das cenas mais belas são-no muito graças a esse "algo-mais" formal, que se assume quase como um segundo filme, ou como um making of em tempo real, comentário permanente aos próprios desafios que cada cena, cada nodo do enredo, foram colocando. Nesses momentos (estou a pensar na dança de Mathieu Amalric perante os outros internados, no sonho em que Emmanuelle Devos reencontra o seu falecido primeiro marido, ou na extraordinária sequência final no Museu do Homem), é a própria presença do cinema que (dir-se-ia) irradia, de onde não se esperaria que houvesse mais do que corpos, rostos e cenários, isentos de luz própria.
terça-feira, dezembro 13, 2005
DOIS DO MELHORIO: Ainda não tinha falado neles, até porque duvido que a minha modesta acção possa fazer algo de muito significativo pela sua merecida divulgação. Mas eles aí estão. Coincidiram temporalmente com o fim do BdE, o que prova que o fim de uma boa coisa pode dar origem a duas boas coisas, por mais que isto pareça violar um qualquer princípio físico de conservação da excelência. São dois blogs, um com nome de livro, o outro com nome de medicamento seguido de consoante oclusiva labial. Merecem ser lidos todos os dias, e não apenas dia sim dia não.
ASSUNTOS: Há muitos assuntos de que normalmente não se fala, o que é uma pena, porque são assuntos que merecem ser discutidos.
E agora, uma fotografia de um gato no lavatório!
(Via "The Daily Dirt Chess Blog", de Mig Greengard.)
terça-feira, dezembro 06, 2005
FOI HÁ 100 ANOS: Para além do sorteio do Mundial de futebol, e de uma outra efeméride, o próximo dia 9 ficará marcado pela comemoração do centenário da lei que, em França, instaurou a separação entre Igreja e Estado.
Esta data, que, já de si, mereceria ser celebrada como marco na história da liberdade e emancipação política dos estados, ganha renovada ressonância (pelo menos aqui em Portugal)graças à recente "gue-guerra" dos crucifixos: refiro-me, obviamente, à decisão (em perfeita harmonia com a Constituição) de retirar os crucifixos das salas de aula deste país.
A respeito desta medida, não têm faltado as previsíveis reacções dos previsíveis sectores, parafraseáveis do seguinte modo: «A laicidade é muito bonita, mas não havia necessidade de ir tão longe.»
A maioria dessas reacções não deixou de glosar bafientos e desesperados chavões como o "fanatismo laicista" e o "ataque à religião".
Como seria de esperar, João César das Neves (que nós aqui no 1bsk adoptámos como mascote) meteu a sua colherada, na sua última crónica do "DN".
Por absoluta falta de tempo, escuso-me a comentar a prosa nevesiana com o detalhe que desejaria, limitando-me a deixar-vos com um demasiado breve florilégio.
«As pequenas coisas revelam mais que as grandes. Os jornais estão a tentar criar uma zanga à volta da retirada dos crucifixos das escolas públicas.
Os jornais? Ou certos fanáticos que sentem a maré a virar contra as suas convicções?
A falta de liberdade religiosa tem gerado a perda da liberdade e até da vida.
Plenamente de acordo.
Nunca se deve esquecer que, dada a impossibilidade lógica de demonstrar a inexistência de Deus, o ateísmo é apenas a crença de que Deus não existe.
Isto é subverter completamente a questão. Eu diria que cabe aos crentes o ónus da prova, na medida em que são eles que defendem certas coisas (parte integrante da doutrina) verdadeiramente inconcebíveis: ressurreição, concepção de uma virgem, transsubstanciação, milagres... O ateísmo não é uma crença. Só defende que o ateísmo é uma crença aquele que vê na fé um estado natural ao ser humano, e no cepticismo uma bizarria que requer justificação. Contudo, se eu acreditar que a lua é feita de queijo da serra, é a mim que cabe demonstrar tão ousada asserção, e não àquele que nela não acredita (com alguma razão, acrescente-se).
A recusa da divindade é uma fé, tal como o negro está na pintura e a pausa faz parte da música.
Esta analogia está trôpega à partida, mas eu diria que o ateísmo está para a fé, não como o negro para a pintura, mas como as paredes do museu (e a bilheteira, as escadarias, o bar, os telefones públicos...) para os quadros.
Aliás, constitui uma seita das mais pequenas, que, por isso mesmo, costuma ser extremista e fanática.
Em matéria de fanatismo, o mínimo que se pode dizer é que a Igreja Católica tem (e sempre teve) lições para dar.
O Estado laico deve assumir uma posição neutra perante as religiões, tal como deve assumir uma posição neutra perante as candidaturas presidenciais.
Outra analogia infeliz. O Estado não tem nada a ver com a religião: cabe-lhe apenas assegurar a liberdade de culto aos cidadãos. Em contrapartida, embora o Estado deva assegurar igual tratamento aos candidatos presidenciais, a Presidência da República não se trata de um assunto a ele alheio, por nítida maioria de razão!
Deus está na escola, tal como a cultura está na escola, a política, a arte, o futebol e a amizade estão na escola.
(E a sexualidade também, apetece-me dizer... JCN oferece argumentos a quem defende a educação sexual nas escolas. Mas não entremos por aí.)
JCN mete demasiadas coisas no mesmo alforge. Sucede que a Igreja Católica possui uma longa história de interferência com os poderes públicos, e de reivindicação de um papel privilegiado na transmissão de valores e saberes. Foi a própria atitude da Igreja, ao longo dos séculos, que a transformou em natural alvo de desconfiança por parte dos promotores de uma escola livre, e que fez do crucifixo um símbolo que, neste contexto, é tudo menos inócuo.
O que os poderes públicos devem garantir é a autonomia para cada escola fazer o que os seus professores, pais e alunos decidam.
Livra! Podem imaginar o que resultaria de uma autonomia total, por parte das escolas e dos encarregados de educação, para decidir sobre conteúdos, modos de leccionamento, etc.? Seria uma porta aberta ao sectarismo e ao comunitarismo. É normal e desejável que matérias sensíveis para o funcionamento das escolas sejam decididas de forma centralizada, de forma a assegurar o cumprimento dos programas tal como estipulados.
Sobretudo, não são activistas ou burocratas a centenas de quilómetros que têm o direito de definir a decoração das paredes, em vez dos alunos, famílias, professores e funcionários.
Precisamente. São. E assim é que deve ser.
Num país livre pode ser-se ateu ou religioso. Mas, em nome da liberdade, os laicistas arrogam-se o direito de obrigar as escolas a seguir os seus gostos e irritações pessoais.
Ai ai, faltava ainda o lugar comum do azedume laicista. Mas JCN não nos desilude.
Um pequeno grupo arma-se em juiz de todos os cultos, só porque não segue nenhum e os considera horríveis a todos. Como odeia a religião diz-se neutro perante ela.
(Isto merecia acompanhamento musical.)
Os crucifixos na sala de aula são apenas um pequeno detalhe. Mas um detalhe revelador de uma luta crucial da Humanidade, a luta em prol da liberdade.
Ora não podia estar eu mais de acordo!
O Ministério da Educação, em vez do esforço baldado para tirar Deus das escolas, devia antes procurar pôr algum bom senso nelas.»
Cem anos depois, e ainda as mesmas falácias para aturar...
ROHMER MAS NÃO SÓ: Criei um blog chamado A Mulher do Aviador, onde tenho vindo a recolher (com exagerada lentidão...) os textos sobre cinema publicados no 1bsk ao longo dos seus já quase três anos de existência.
A ideia é servir-me deste blog como estímulo para escrever mais amiúde sobre cinema. Nele não serão publicados textos originais, pelo menos numa primeira fase. Trata-se, pois, de uma ferramenta essencialmente pessoal, mas quem quiser passar por lá, e talvez deixar um comentário, será muito bem-vindo!
segunda-feira, dezembro 05, 2005
MODO ACTIVO: Hoje, a impressora do meu local de trabalho mostrava no seu visor a mensagem "MODO ACTIVO INACTIVADO".
Suponho que isso seja precisamente equivalente a "Modo Inactivo Activado".
Mas quem sou eu, mero mortal analógico, para me alargar em conjecturas sobre aquilo que, em informática, é ou deixa de ser?
O TEMPO TRANSBORDA: Acabo de escutar parte de uma emissão na Antena 1, conduzida por José Nuno Martins. Quando penso em José Nuno Martins, recordo invariavelmente a resposta que ele deu, há já um ror de anos, a um inquérito efectuado por uma revista. A pergunta era "Qual era o filme da sua vida?". José Nuno Martins, fugindo às descoroçoantes mas previsíveis banalidades objecto da escolha dos demais entrevistados ("África Minha", "E Tudo o Vento Levou"...), mencionou... Jacques Rivette, "L'Amour Fou".
Por isso, por este acto de coragem, José Nuno Martins passou a ter perante mim crédito infinito. Pode até suceder que ele venha a apresentar a "1ª Companhia" ao lado de um burro que fala. Para mim, isso nada pesará face ao facto de ter escolhido para filme da vida um filme como "L'Amour Fou", essa inquietante obra-prima em que os planos do teatro e da vida, talvez ainda mais do que em qualquer outra obra de Rivette, se dilaceram e potenciam mutuamente.
domingo, dezembro 04, 2005
ANÚNCIOS DE GATO PERDIDO INVENTADOS (14):
Perdeu-se lindo gato, não hoje, nem ontem, mas há catorze anos, quando em tempos de exílio, dias insípidos de chuva sem trégua. Foi em Mannheim, cidade que faz parte do estado de Baden-Württemberg (superfície 35 750 quilómetros quadrados, capital Stuttgart). O gato era preto com focinho branco, o gato não era meu, mas apareceu na minha vida num dia que ficou também marcado por uma ferida, não uma ferida real, mas antes uma ferida metafórica. Paredes de chuva abatiam-se sobre as ruas de Mannheim, e o gato parecia conhecer os seus contornos movediços, e o seu corpo felpudo ocupava nesgas improváveis de quietude no seio dos excessos pluviométricos. Um dia perdi-o, a esse gato que era lindo e o único no mundo para mim. Esforçava-me para reter junto a mim fiapos do meu país deixado para trás, recitava expressões portuguesas em paragens de autocarro solitárias escolhidas para o efeito. Apreciava sobretudo aquelas que exibiam uma pátina absurda mas familiar. "Preso por arames", "Cair como sopa no mel", "Por dá cá aquela palha". Gato, a tua figura era mefistofélica, mas benigna porque esplendorosa e refractária à baça desolação que se confundia com o tempo. Passaram os anos, moro em Lisboa, ao Campo de Ourique, leio boa ficção portuguesa e tenho cuidado com a alimentação. Gato, pensei em escrever este anúncio que ninguém lerá, este anúncio-pedra-risco para assinalar uma desaparição com a qual fui cobarde em me conformar. Meu gato que eu prezo mais do que todos os anjos e demónios que a humanidade alguma vez foi capaz de convocar, sinto a tua falta.
Subscrever:
Mensagens (Atom)