quinta-feira, março 30, 2006

CINEMA E OBSESSÃO: Não concebo a cinefilia sem uma componente obsessiva. Ao longo dos anos, têm sido em número considerável os filmes com os quais entabulo uma relação que pula alegremente para lá das fronteiras da paixão e da afinidade, para se instalar nos terrenos da obsessão. De entre os mais recentes, poderia citar "Pulp Fiction", "Mulholland Drive" e "Éloge de l'Amour". Durante anos, a minha mais cintilante obsessão tinha por nome "Rumble Fish", filme de Coppola que chegou a ser o meu filme da vida. E tenho sustentado igualmente obsessões de mais minúscula magnitude, por vezes só por uma cena (o beijo em "Shakespeare Wallah", de James Ivory, alguém se lembra?), ou por um filme visto a preto-e-branco nos gloriosos tempos das noites cinéfilas frente ao minúsculo televisor do quarto (dois exemplos entre vários, "Palermo oder Wolfsbourg", de Schroeter, e "Jonas qui aura 25 ans en l'an 2000", de Alain Tanner). Quando vivi em França, compreendi que Jacques Rivette era o realizador cujas obras mais facilmente suscitavam obsessões no meu espírito influenciável. A larga distância dos adversários. Y' a pas photo. Alguns dos seus filmes, como "Céline et Julie Vont en Bateau" e "La Bande des Quatre", extravasaram do domínio cinematográfico, a ponto de hoje os ver como parte integrante do meu processo de assimilação da cidade de Paris e da minha vida na altura. Porém, nenhum filme de Rivette me obcecou como "Out One", que tive a felicidade de ver quer na versão curta (de 4 horas e meia...), "Spectre", quer na versão longa, "Noli Me Tangere", de 12 horas e meia repartidas por 4 cassetes VHS, acessíveis, por um golpe de felicidade, na mediateca Jean-Pierre Melville, situada nas proximidades do meu bairro. "Out One Spectre" vai ser exibido na Cinemateca, na próxima 2ª feira. Ao contrário do que sucedeu com "L'Amour Fou", tenciono estar presente. O ócio é o mais eficaz caldo de cultura para as ambições desmedidas: tenho vindo a alimentar a ambição de criar um site dedicado apenas a este filme, e a todas as suas ramificações: a "Histoire des Treize" de Balzac, Lewis Carroll, os actores, o "Prometeu Agrilhoado", e Paris, Paris, sempre Paris... Provavelmente, nunca o farei, mas a vontade é muita, e agudiza-se quando constato o pouco que existe na Internet sobre Rivette, e, em particular, sobre este filme. Tentarei, em ocasiões próximas, espremer ao máximo o Google e outros motores de busca, e prometo partilhar algumas das minhas descobertas.
ANÚNCIOS DE GATO PERDIDO INVENTADOS (15):
Perdeu-se lindo gato,
em boa verdade por razões que pouco devem ao mistério;
chama-se Cambremer (nome que os rústicos achavam pretensioso,
e os pretensiosos, rústico), tem espírito livre e alma de filósofo;
pinta branca solitária na nuca felpuda.
Fugiu do lar (dá para crer?) em protesto
contra a prevalência de gatos no imaginário icónico ocidental
no papel de encarnações mefistofélicas!
De que serviriam os meus apelos ao bom-senso?
Desapareceu, devorou-o um lusco-fusco húmido e
desde então dias ingratos sucedem-se a dias
vazios.
(Conservas de cavala picante são engodo eficaz.)
Julguei vê-lo há dias,
numa foto incompetente de jornal de bairro
numa cerimónia de inauguração de centro de dia.
Juraria que era ele, roçando a calça do presidente
da Junta!
Mas não acreditei em tamanha sorte,
porque a sorte nunca me ofereceu
alguma coisa que se visse.
E agora a minha vida é como um mau poema
em verso branco,
sem o meu inacreditavelmente belo e
teimoso gato.

quarta-feira, março 29, 2006

O PRÍNCIPE DE HOMBURGO: Ou de como até o preto e branco pode ser verde. Obrigado, Cristina! (Gérard Philipe tomou parte numa famosa encenação do "Príncipe", no Festival de Avignon, em 1951, sob a direcção de Jean Vilar. Uma muito jovem Jeanne Moreau também fazia parte do elenco.)
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: (1) Na linha verde do metropolitano, um cavalheiro folheava aquilo que me pareceu ser uma edição omnibus da "Recherche". Saiu em Telheiras. Proust em Telheiras... Porque não Walter Benjamin em Massamá? (A propósito deste post: é certo que a estação de Telheiras fica bastante perto da do Campo Grande: não 300 metros, mas aí uns 700 ou 800. Porém, é de ter em conta que a presença obstrutiva da 2ª Circular, e da Avenida Padre Cruz transformam esses 700-800 metros numa missão quase impossível para o pedestre, o que pode ajudar a subtrair esta extensão da linha verde à categoria de aberração.) (2) Também na linha verde, um jovem, envergando óculos escuros (pormenor irrelevante, mas que me pareceu adequado à situação) lia "Saturday", de Ian McEwan. Em versão original. De pé. 20 pontos de bónus.

segunda-feira, março 27, 2006

NA ROÇA COM EUSTACHE: Bem, na verdade não foi na roça, mas sim na Cinemateca Portuguesa (Av. Barata Salgueiro) que se exibiu hoje o emblemático "La Maman et la Putain", obra de referência da nouvelle vague tardia, da autoria de Jean Eustache. Nunca o vi, e também não foi desta que o descobri, assim como amanhã, à mesma hora (19h30), não tenciono marcar encontro com "L'Amour Fou", um dos mais empolgantes Rivettes de sempre. O problema com este ciclo "Longuíssimas Metragens" tem precisamente a ver com o adjectivo e respectivo superlativo: quanto mais longa é a sessão, mais espinhoso se torna acomodá-la num emprego de tempo já de si saturado.

quinta-feira, março 23, 2006

O SOL TEM UM ENCONTRO COM A LUA: Perante a indiferença chocante das forças vivas bem pensantes deste país, Maria José Costa Félix, na sua página "Outra Porta" do suplemento "Xis" do "Público", continua a partilhar a sua sabedoria, e a recordar-nos verdades simples que, se fôssemos capazes de as escutar, talvez tornassem as nossas vidas um bocadinho melhores. Na semana passada, por exemplo, ficámos a saber que todos temos um Sol e uma Lua interiores. Esta afirmação ficará, quiçá, mais bem contextualizada, se nos recordarmos que, algumas semanas atrás, Maria José Costa Félix nos anunciara a realização de um workshop de xamanismo. Quem de entre nós será capaz de dizer, sem desviar os olhos, que nunca se sentiu tentado a frequentar um workshop de xamanismo?
COISAS QUE NÃO EXISTEM EM QUANTIDADE SUFICIENTE NESTE MUNDO: Fotografias de gatinhos bebés!!!

terça-feira, março 21, 2006

CESARIANA: A última crónica do Prof. João César das Neves parecia, pelo seu começo cordato, ser uma daquelas em que são evitados os temas fracturantes, e em que predomina uma visão plena de bom senso sobre a economia e temáticas anexas. Sucede-me, com embaraçante frequência, concordar parcialmente com o Prof. Neves, quando ele se remete aos assuntos que conhece bem e evita incursões trapalhonas nos terrenos da moral, da sociedade e da iniquidade dos tempos que vivemos. Porém, qual diabrete ejectado de caixinha, eis que as reflexões do Prof. nos conduzem para um terreno da sua predilecção, a saber a interrupção voluntária da gravidez, questão sobre a qual ele possui opiniões que, como dizer?, não deixam demasiada margem para cambiantes de qualquer espécie. Procedendo como geralmente procedem todos aqueles que sentem como inevitável a concretização dos seus mais sombrios pesadelos, o Prof. Neves navega alegremente numa espiral de exagero e enormidade linguística, e permite-se dislates de um calibre que mais não reflecte do que o seu desespero face a um mundo que deixou de obedecer aos ditames da única moral admissível: a sua. «Aí [José Sócrates, em entrevista ao "Expresso"] afirmou: "A nossa agenda em matéria de alargamento de direitos vai começar pelo aborto." Aqui temos um homem, governante de um país moderno e civilizado, que pretende usar a melhor máquina jamais montada de criação de bem-estar, o Sistema Nacional de Saúde, para arrancar bebés do seio de suas mães.» Há muito para admirar, nesta última frase (e no resto do artigo): - o aborto reduzido a corolário huxleyano e distópico da busca desenfreada do prazer e da técnica da sociedade contemporânea, como se não se tratasse de um drama duradouro ao longo dos séculos; - a mais que fantasista sugestão de que a interrupção voluntária da gravidez é algo que não existe, que ninguém no Continente e Ilhas pratica, e que o Governo pretende aplicar por decreto, tal como o cartão único de cidadão ou o fim das progressões nas carreiras; - a ideia de que o Sistema Nacional de Saúde, esse ninho de sádicos e pervertidos, tem como um dos seus objectivos máximos "arrancar bebés do seio de suas mães"; - a suposição implícita de que o aborto, caso avance o projecto de legalização, passará a ser imposto a mães desprevenidas que, caso contrário, não hesitariam um segundo em levar a gravidez ao seu termo. É descoroçoante constatar que, poucas linhas abaixo deste sonoro arrufo de originalidade, o Prof. Neves cai na banalidade desnecessária da comparação com Hitler. Meus senhores: estaria na hora, parece-me, de escolher espantalho menos datado. Porque perco eu tempo com tamanhos desastres de argumentação? Chamaram-me a atenção estas palavras do Vasco: «As obsessões quase sempre revelam fraquezas, desejos, temores e, por arrastamento, falta de originalidade.» Talvez a explicação se resuma a isto: uma singela obsessão pessoal. Não ouso proclamar-me excepção.
UM FILME DA VIDA: (Nota: uma versão mais curta deste texto foi publicada no "Semanário" do passado dia 17 de Março.) Gosto muito da expressão “filme da vida”. Acho atraente a noção de um filme fazer parte da vida de alguém, de se transformar num pequeno novelo de afinidades e reminiscências que por vezes, e de súbito, adquire o estatuto de condição necessária para a felicidade. Não sei dizer a quantos filmes poderei aplicar estas palavras, no meu caso pessoal. Menos de cem, diria. Certamente mais de uma dezena. De entre estes, sinto-me mais compelido a falar dos menos visíveis, dos menos assíduos em ecrãs pequenos ou grandes. Não se trata de perversidade. Trata-se de apego à diversidade cinéfila, de desejo de suscitar curiosidade. “Un Étrange Voyage” é um filme realizado por Alain Cavalier em 1980. O percurso deste realizador tem também algo de estranho e raro: após um punhado de filmes num registo de thriller político, nos anos 60, entrou numa fase de maior depuração, a partir dos anos 70. A uma inesperada consagração pública com o celebrado “Thérèse” (1986) seguiu-se uma deriva cada vez mais radical na direcção de obras pessoalíssimas, no limite do solipsismo, entre o documentário e o diário íntimo. Não aprecio a expressão “este filme conta a história de...”. Direi, pois, que “Un Étrange Voyage” se constrói em torno da viagem, em jeito de busca, de uma filha e de um pai (o admirável Jean Rochefort) cuja mãe terá sofrido um acidente durante um trajecto de comboio. As razões que me levaram a aderir de forma tão intensa a este filme são diáfanas, impalpáveis. Há a luz, a maneira de filmar o pudor e a solidão, a contenção. E há essa noção de estarmos a meio caminho entre o cinema narrativo, em moldes clássicos, que era o de Cavalier no início da carreira, e esse vertiginoso ponto de fuga estético que já se vislumbrava então. Sucede-me esquecer de um filme, que não revisito há muito, as imagens, o enredo, os sons, os momentos marcantes. Mas isso não é grave. Pedura a impressão que na altura me causou: o gosto no seu estado puro, quase desmaterializado; uma cumplicidade imperecível e só nossa.

segunda-feira, março 20, 2006

ACÇÃO DE GRAÇAS: O Legendas & Etcaetera também achou por bem mencionar o aniversário deste blog sobre Kleist, e pelo facto sejam-lhe dadas graças, e que o deus dos blogs lhe dê alento, e tudo aquilo que se encontre na entrada "alento" de um bom dicionário de sinónimos.
ZEN: Declaro solenemente, com a mão sobre a Constituição, os contos de Kafka e o livro de Pantagruel, que oferecerei um milhão de euros a quem encontrar um título de autobiografia mais brilhante do que este: "What's Welsh For Zen" (John Cale).
PLAYLIST MENTAL: Por nenhuma razão aparente, não consigo libertar-me do refrão de "Elle A les Yeux Revolver", canção honestamente pirosa de Marc Lavoine (1985). Elle a les yeux revolver, elle a le regard qui tue Elle a tiré la première, m'a touché, c'est foutu. Ao frio, ao sol, à chuva, ao vento, ao granizo (deu para tudo, este fim-de-semana).

quinta-feira, março 16, 2006

MAS O PROBLEMA NÃO ESTÁ NA LITERATURA: Não devia angustiar-me, mas angustia-me a certeza de que, mesmo que todos os (colossais e medonhos) problemas da literatura fossem resolvidos, os verdadeiros problemas da vida não teriam sido sequer aflorados. Quando resvalo para paráfrases pouco imaginativas de Wittgenstein, sei que é chegada a altura de ir dormir.
EXTENSÃO DO DOMÍNIO DO AGRADECIMENTO: Estendo os meus agradecimentos ao Alfinete d'Ama e ao Digitalis, por amáveis referências ao terceiro aniversário deste espaço. Aproveito para referir que este blog é um blog sem tabus, eterna vítima do politicamente correcto, e que não recebe lições de moral de ninguém. (Contudo, se se tratar de lições de sapateado, a preço moderado, je suis preneur.) Havia uns tabus no princípio, mas agora já não há.
EURICO, O SEMPRE FIEL: Ser igual a si mesmo é uma guapa virtude, e, neste capítulo, Eurico de Barros galga fasquias de fulgurância estética com que os meros mortais apenas podem sonhar. Recentemente, o sr. Barros adjectivou de "feministóide" o filme "North Country", de Niki Caro. Não fosse a prolongada penúria de tempo livre, e este comentário bastaria para me propulsionar para a sala de cinema mais próxima que exibisse este filme. Os tempos mudam, as vontades idem-aspas, mas certas coisas permanecem inalteráveis. A desaprovação chocarreira do sr. Barros continua a ser um dos mais fiáveis selos de qualidade.

segunda-feira, março 13, 2006

O QUE FAZ FALTA É LINKAR A MALTA: E eis que surgem do nada dois novos enlaces para a minha coluna de favoritos: o Cine-Australopitecus e o Um Amigo Pop. O primeiro é cinefilia em estado puro, e tem a suprema virtude de não confundir amor pelo cinema com vassalagem ao calendários das estreias, e submissão à voracidade dos assuntos e filmes que estão "a dar" (ou, mais exactamente, a vender). Quanto ao segundo, protagoniza um milagre ao alcance de poucos: ser heterodoxo sem procurar ser original a todo o custo. São blogs cuja leitura me dá muito prazer, e que recomendo vivamente.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Um cavalheiro lia o "Crátilo" de Platão na zona de restauração do centro comercial Acqua, na avenida de Roma. Tão súbita foi a minha euforia perante este avistamento que pouco faltou para que eu derrubasse o meu tabuleiro, onde se equilibravam precariamente, entre outros, um bacalhau com natas muito satisfatório e um copo a sério, daqueles de vidro. O que pensaria Platão se viesse a saber que, dois milénios e meio após o seu falecimento, uma obra sua guardaria no seu bojo o poder de provocar uma quase-catástrofe burlesca?

sexta-feira, março 10, 2006

JAM2: José Álvaro Morais ambicionava realizar uma adaptação de "A Corte do Norte", de Agustina Bessa-Luís. Essa ideia nunca avançou para lá da fase de projecto. Contudo, o filme existe no IMDB! Nada como o IMDB para realizar os sonhos frustrados dos cineastas por esse mundo fora. (Apetece-me deixar um comentário extravagantemente elogioso sobre esse filme inexistente.)

quinta-feira, março 09, 2006

JAM1: No livro sobre José Álvaro Morais, editado pela Faro 2005 Capital Nacional da Cultura, a dada altura descreve-se como parte da atribuladíssima rodagem de "O Bobo" ocorreu nos estúdios da Tóbis, numa altura em que, no mesmo local, também se desenrolavam as rodagens de "Silvestre" e "Francisca". Essa simultaneidade espacial e temporal na génese de três monumentos absolutos do cinema português é algo que, convenhamos, provoca titilações na medula. «no som original está praticamente toda a história da produção do cinema português daqueles anos: estão os carpinteiros do Oliveira; estão os gritos do Paulo Branco durante o 'Silvestre'. O Vasco Pimentel teve de refazer toda a banda sonora depois.» (Entrevista a M.S. Fonseca, "Expresso", 1991.) E eu sonho com essa versão de "O Bobo" contaminada por tão glorioso palimpsesto sonoro.

terça-feira, março 07, 2006

I WISH I KNEW HOW TO QUIT YOU: Às vezes, é isto mesmo que me apetecia dizer ao meu blog: quem me dera deixar-te e ir viver a minha vida, de preferência numa paisagem montanhosa de parque natural, fotografada por um profissional de Hollywood. Os meus leitores parecem-me mais fiéis ao blog do que o seu próprio autor, e continuam a perder tempo por aqui, em vez de irem ao teatro, à discoteca, ou à Worten comprar electrodomésticos com aquele cartão que permite pagar em 3 meses sem juros. Talvez nutram a secreta esperança de encontrar dono para os gatinhos perdidos que vão recolhendo nas ruas da cidade. Queria deixar um grande agradecimento e um abraço XXL àqueles de entre os fiéis que assinalaram o 3º aniversário do 1bsk: o Aba de Heisenberg, o Almocreve das Petas, o Dias Felizes, o Linha dos Nodos, o Memória Inventada, o Ópera e Demais Interesses, o Seta Despedida, o Welcome to Elsinore, e o Yesterday Man. Se omiti alguém, as minhas desculpas (também XXL).
VOCÊ SABE QUE ALGUMA COISA VAI MAL QUANDO...: ...Eurico de Barros em pessoa lamenta a inexistência da «menor sombra de agitação contestatária à la Michael Moore» na cerimónia dos Óscares.
DEUS QUER, O HOMEM SONHA...: Já tardava o momento da primeira menção neste blog à escala Scoville, que mede o grau de pungência das malaguetas. Desde os primórdios da história que o Homem se esforça por medir e quantificar todos os fenómenos que presencia, desde os mais óbvios até aos mais subtis e, na aparência, incomensuráveis. Parece-me, manifestamente, ser este o caso das malaguetas. Assim se conclui que a escala de Scoville representa uma das realizações mais supremamente gloriosas do Génio Humano! Na escala de Scoville, as malaguetas mais picantes, as "Habenero" e as "Scotch Bonnet", atingem um valor que pode chegar aos 300 000. Para um palato europeu, porém, presumo que exista um fenómeno de compressão de escala para lá de um certo limiar: a capacidade para distinguir entre, digamos, 10 000 e 20 000, deve depender menos da acuidade gustativa do que da intensidade da dor sentida nas mucosas bucais e na língua. (Estou disposto a assinar compromisso de honra em como este post e este enlace não são apenas débeis pretextos para empregar o vocábulo "pungência".)
CLARO QUE NADA DISTO EXPLICA...: ... como é que as pessoas têm tempo para escrever nos blogs. Eu não tenho.
CURSO DE CHURRASCO: Chegou à minha caixa de correio uma mensagem de uma certa Luciana Souza, cujo assunto era "Curso de churrasco", e que o obtuso filtro do Yahoo! classificou levianamente como "Spam". Um curso de churrasco era talvez aquilo de que eu necessitava para colorir a minha vida. Zeus é grande, este blog é pequenino, o Jardim Ponge definha por falta de cuidados do jardineiro que sou eu, e vai sair mais um livro do Walser muito em breve. E a primavera?

segunda-feira, março 06, 2006

NEM HOLLYWOOD NEM SUNDANCE: Nem Hollywood nem Sundance, esta poderia ser uma divisa de Paul Auster, que se prepara ("Público" de 25 de Fevereiro) para rodar, perto de Lisboa, a sua nova longa-metragem. Eis uma declaração de intenções com a qual não posso deixar de simpatizar. Hollywood não passa de uma máquina de sorver e distribuir dólares (nem sempre a contento de todos), que há muito deixou de ter seja o que for a ver com qualquer coisa aparentada à criatividade ou à integridade artística. Quanto ao festival independente de Sundance, quer-me parecer, por amostras que têm atravessado o meu caminho, e por opiniões alheias, que os filmes que por lá medram e recolhem graúda soma de galardões estão demasiado próximos da órbita hollywoodesca, das suas categorias e dos seus ditames, e acima de tudo dos seus espartilhos, para se afirmarem como reais alternativas. O cinema verdadeiramente estimulante e original que nos chega dos EUA (Hartley, Lynch, Jarmusch, Van Sant...) encontra-se não apenas (e necessariamente) nos antípodas de toda a lógica mercantilista de Hollywood, mas também razoavelmente alheado dessa noção de cinema "independente" formatada e bem comportada que enche de júbilo todos aqueles que aplaudem, embevecidos, sempre que os Óscares premeiam filmes como "American Beauty" e "Brokeback Mountain", como quem diz, «Vêem? Afinal a Indústria também sabem premiar a ousadia e a inteligência. Aqui está a riqueza e a força do cinema americano.». Houve um tempo em que eu seguia com entusiasmo as entregas dos Óscares, e houve um tempo em que as repudiava de forma quase, digamos, militante. Hoje em dia, a minha reacção é de indiferença total, e tão impenetrável como a convicção de que nada do que se passa naquele auditório, naquela noite, tem a ver com cinema. (Resta-me desejar que, das excelentes intenções de Auster, admirador de Satyajit Ray, Ozu, Bresson e Bergman, nasça algo menos auto-indulgente e formalmente mais vigoroso do que aquilo que ele teve oportunidade de produzir até hoje, em matéria de sétima arte.)

sexta-feira, março 03, 2006

ANNIE AIME LES SUCETTES/LES SUCETTES À L'ANIS: E já que estamos numa de pegar em deixas do eminentemente parabemizável Memória Inventada, que com raro brio entra também no seu 4º ano, não resisto a evocar outro exemplo do apetite insaciável do público francês pelos arquivos televisivos, também este envolvendo Serge Gainsbourg. Uma das mais celebradas anedotas da história da canção francesa envolve France Gall, cantora da minha predilecção, e para quem Serge, com quem esteve romanticamente envolvida, compôs o tema de sucesso "Les Sucettes" ("Os Chupa-chupas", em tradução literal, se bem que pouco elegante). Consta que France, com toda a incorrupta candura de que era capaz uma jovem francesa dos anos 60, só muito mais tarde atingiu o segundo sentido brejeiro da canção, onde a dada altura se diz: Lorsque le sucre d'orge Parfumé à l'anis Coule dans la gorge d'Annie, Elle est au paradis. Mais tarde, Michel Berger, cantor e compositor de nomeada (precocemente desaparecido) e ulterior parceiro romântico de France Gall, reprovou a Gainsbourg ter-se tão despudoradamente aproveitado da inocência da mocita; e fê-lo no decurso de uma dessas emissões de variedades condimentadas com (nem sempre amenas) cavaqueiras, tão ao gosto francês. E posso garantir que chega a ser embaraçoso assistir a uma tão leviana evocação titubeantemente plantada nos terrenos da ética, da biografia e do puro ajuste de contas. (Quanto à interpretação que o próprio Gainsbourg faz de "Les Sucettes", o mínimo que se pode dizer é que pouco é deixado à imaginação do ouvinte. Todo o cabotinismo de que ele era capaz posto ao serviço da personificação de um velho porco e vagamente safado.)
ATRACTOR SUBURBANO: É verdade, Vasco, que Massamá funciona como incontornável atractor para as minhas incursões sociológicas fictícias. Quem me dera que as coisas se ficassem por aí. Mas sucede também que ambiciono escrever um bildungsroman cuja acção terá centro de gravidade num bar karaoke da Ramada, Odivelas. E isso, convenha-se, ameaça os limites do socialmente aceite.

quarta-feira, março 01, 2006

JÁ RESISTIMOS MAIS TEMPO DO QUE MUITOS GOVERNOS CONSTITUCIONAIS: Cumprem-se hoje 3 anos sobre o primeiro post do 1bsk. Nesses tempos, eu era jovem e inconsciente, os meus cabelos ondulavam ao vento, e ouvia Jethro Tull pela noite dentro. Hoje, quer-me parecer que um dos pouquíssimos denominadores comuns que subsistem entre a minha vida de então e a de agora é esta coisa verde e exasperante, que consumiu mais da minha atenção e tempo do que seria sensato, mas muito menos do que eu desejaria. Por mais que a minha vida dê piruetas e mortais à retaguarda, espero que o futuro próximo me traga as migalhas de tempo e ânimo necessárias para, sob o alto patrocínio de Kleist, contnuar a defender as causas de sempre: Igualdade, Liberdade, Fraternidade, o pensamento crítico, o cinema sisudo e intelectualóide, bolos de arroz, a memória do Dr. Sousa Martins, o xadrez, e todos, todos, mas mesmo todos os gatinhos perdidos do mundo! (Obrigado, leitores.)