domingo, março 30, 2008

WIDMARK, BATTER YOUR CONK: Sobre o recentemente falecido Richard Widmark, duvido que algum obituário tenha sido mais eloquente do que este discurso saído da boca de uma personagem de Donald Barthelme (do conto "Visitors", in "40 Stories"): Richard Widmark was one of his favorite actors in the whole world, he told her, because of the way in which Richard Widmark was able to convey, what was the word, resilience. You could knock Richard Widmark down, he said, you could even knock Richard Widmark down repeatedly, but you had better bear in mind while knocking Richard Widmark down that Richard Widmark was pretty damn sure going to bounce back up and batter your conk-
A HORA RIVETTE (4): "O Segredo por Trás do Segredo" é o nome do ciclo que a Cinemateca está a dedicar a Jacques Rivette. Só um qualquer segredo obscuro, a estultice ou um capricho levariam alguém a escolher este lance como o primeiro de um jogo de xadrez. A base de dados ChessGames só regista 11 partidas (de um total de mais de 400 000) cujo primeiro lance foi f3 (peão do bispo de rei avança uma casa). Nunca fiz um levantamento sistemático de cenas com xadrez nos filmes de Rivette, mas ocorre-me uma cena de "Out 1" em que Juliet Berto entra na casa de Jacques Doniol-Valcroze quando este está a estudar uma posição num tabuleiro. Se bem me recordo, Doniol-Valcroze convida-a a regressar noutro dia, e oferece-se para lhe ensinar os rudimentos do jogo. Também há xadrez em "L'Amour par Terre".
FAVORITISMOS: Para quem tenha acabado de chegar ao nosso planeta, proveniente do planeta Zog, queria informar que os blogs Bibliotecário de Babel e 5 Dias são excelentes e dignos de visitas muito regulares.
LLANSOL: Raras foram as reacções ao falecimento da escritora Maria Gabriela Llansol que não afloraram questões como o "hermetismo", a "inacessibilidade" ou até um suposto carácter "místico" da prosa desta autora. A obra de Llansol presta-se, certamente, ao debate relativo às exigências, de cariz mais ou menos explicitamente contratual, que um texto deve ou pode estabelecer com o seu leitor, e sem dúvida que dicotomias como "fácil"/"difícil", ou "acessível"/"hermético" podem servir como pontos de partida, ainda que a um nível muito superficial, para uma discussão séria sobre um dado autor. Mas onde existirá, na imprensa de hoje, espaço para o aprofundamento destas discussões? Não existe, por maior que seja a boa vontade ou a preparação do crítico. Autores como Llansol, pouco mediáticos mas não obscuros, vêem as análises à sua obra confinadas a revistas da especialidade e colóquios, sendo que os fugazes episódios de exposição ao grande público (por ocasião de prémios ou do seu desaparecimento) de pouco servem senão para ajudar a cristalizar noções devidamente moldadas em chavões prontos a usar. Quase seria mais desejável um simples obituário, o mais lacónico possível, num canto de página. (Pelo menos, desta vez, não ouvi ninguém falar em "feminismo" ou em "experiência feminina".) De certa forma, acho desconcertante que se fale de uma escrita "difícil" a propósito de Maria Gabriela Llansol. É redutor encarar-se uma obra literária como um mero desafio proposto ao leitor, dotado de um prémio final, qual pote de ouro por detrás do arco-íris, chame-se ele "sentido", "moral" ou "desenlace", mais ou menos fácil de alcançar consoante os caprichos do leitor ou o seu apetite pelas armadilhas. Em Llansol, a própria construção do texto, esse labor cuja extrema complexidade e morosidade poucos autores terão compreendido e aceite tão bem como ela, é o desafio permanente, um desafio para o qual o leitor é convocado ao mesmo tempo que o autor o vive. Longe de ser rebarbativa, a prosa de Llansol é atravessada por uma vontade de acolher e envolver. A agudíssima penetração da sua inteligência não é usada para alienar um leitor incapaz de tamanhos voos; serve, isso sim, para mostrar facetas insuspeitadas em noções e entidades, num espaço que é o do quotidiano mas também o da especulação. O sentido da prosa de Llansol é um sentido aparentemente precário e transiente, até mesmo arbitrário, mas ele alicerça-se numa meticulosa exploração das associações entre seres, conceitos, sensações, e as múltiplas manifestações da História e da vivência humana. Os seus livros são um permanente convite ao leitor. A leitura atenta de um livro de Maria Gabriela Llansol é uma das experiências mais gratificantes que a literatura portuguesa dos últimos 100 anos tem para oferecer. (Não é de hoje, este conflito que eu sinto: por um lado, a certeza de que uma maior cobertura mediática de certos autores não faria mais do que acentuar o ruído de fundo de futilidades que disfarça o essencial da sua obra; por outro, o desejo de que, em Portugal, se soubesse reconhecer aquilo que aqui existe de único e irrepetível em termos de criação artística.)

domingo, março 23, 2008

PUTAIN!: O acordeonista entrou numa carruagem da linha vermelha. Desabafo oriundo de um grupo de jovens francesas: "Putain! Même à Lisbonne!". É verdade: em vez dos maravilhosos jardins, das livrarias de sonho ou das padarias repletas de éclairs, pains au chocolat e tartelettes de framboesa, importamos de Paris a desoladora cacofonia acordeónica de trazer pelo metropolitano. Não existem aqui motivos de contentamento.

quarta-feira, março 19, 2008

INVESTIMENTOS NO FUTURO: Duas aquisições recentes para a DVDteca.



"Signs & Wonders", de Jonathan Nossiter. Uma das mais esplendorosas descobertas cinéfilas que tive a sorte de fazer durante a minha estadia em Paris. Um cruel conto urbano sobre as armadilhas do significado, extremamente rico do ponto de vista visual, e superiormente interpretado.


"Blissfully Yours", de Apichatpong Weerasethakul. Fiquei deveras impressionado com "Syndromes and a Century", e achei que valia a pena arriscar neste filme, de um realizador tailandês que tarda em estrear em salas portuguesas.
HAIKKUS POLÍTICOS (0-2): Na cerejeira a sombra. Amargo, o horizonte. Ribau Esteves. Gotas. Na cidade Cintilam insectos. E o comité central? Vitalino Canas. O som da maré enche Todas as janelas.
A HORA RIVETTE (3): Essa história dos títulos e das regras fez-me pensar que Rivette é o exemplo supremo do criador que não deixa as suas convicções teóricas cristalizarem-se em regras que se transformem em espartilhos. Rivette é um dos realizadores mais livres que existem, não porque careça de princípios e de ideias claras sobre o cinema, mas porque é suficientemente inteligente e subtil para, em vez de forçar os materiais com que trabalha para que se adaptem às suas maneiras de ver, criar as condições para que o cinema, tal como o entende, aconteça. Estou a falar da colaboração com argumentistas e actores, em particular, mas, de uma maneira geral, refiro-me a todas as atitudes e procedimentos que contribuem para o equilíbrio entre espontaneidade e premeditação que perpassa por toda a obra de Rivette. (Claro que eu nunca me atreveria a dizer que realizadores interventivos e manipuladores como Hitchcock ou Lynch não são "livres". Não pretendo enredar-me em excepções ou contra-exemplos, não viso uma qualquer lei. Estou apenas a falar de Rivette.)
SUGESTÕES PARA A PÁSCOA: Duas fatias de prosa da minha autoria estão agora disponíveis em todos os bons estabelecimentos. Uma delas é um conto, que se chama "Sonhos e Responsabilidade em Tondela", e que foi dado à estampa no âmbito do nº 16 da revista "Ficções". É um conto um bocado estranho, sobre um indivíduo que chega a uma cidade do interior do país para ser encenador de um grupo de teatro escolar, e que acaba por exercer também as funções de treinador de basquetebol. Acontecem muitas coisas neste conto, que se passa em Tondela (daí o título). A outra é um texto integrado no catálogo sobre Jacques Rivette editado pela Cinemateca. É um texto que se lê num instante, e que fala de vários filmes desse realizador.

domingo, março 16, 2008

A HORA RIVETTE (2): Não é essa a única excepção à regra de não pronunciar, nos diálogos, o título dos filmes de Rivette. No próprio "La Belle Noiseuse", o título (que é também o do quadro que constitui a obsessão de Frenhofer/Michel Piccoli) aparece nas falas de várias personagens. O mais curioso é que, no filme anterior ("La Bande des Quatre"), o quadro é também mencionado, pela misteriosa personagem de Benoît Régent, referindo-se a uma obscura história de tráfico de arte que (como tantas vezes sucede em Rivette) nunca saberemos se é verdade ou invenção.
OLHARES: Em Inglaterra, uma argentina revelou-me que, no seu país de origem, é comum perfeitos estranhos estabelecerem contacto visual na via pública, e que, quando isso sucede, a etiqueta obriga a que se saúdem. Manifestei-lhe a minha surpresa, mas não fiz questão de lhe explicar como, em Portugal, evitar o olhar alheio constitui actividade das mais disseminadas, e daquelas que são exercidas com maior empenho. Nos transportes públicos, por exemplo, mas não apenas aí.
BRESSON, MODO ESTÁDIO DO DRAGÃO: Segundo Q., Jesualdo Ferreira respeita as regras enunciadas nas "Notas Sobre o Cinematógrafo".

sexta-feira, março 14, 2008

A HORA RIVETTE: Para quê escondê-lo? (Sim, para quê?) A retrospectiva Rivette na Barata Salgueiro é uma das principais razões da minha indisponibilidade destes últimos dias. Fui ver, até agora, os seguintes filmes:
  • "L'Amour Fou" (terminou depois das 2 da manhã).
  • "Noroît"
  • "Céline et Julie Vont en Bateau"
  • "L'Amour par Terre"
  • "Merry-Go-Round"
  • "La Bande des Quatre"

No caso de "Noroît", "L'Amour par Terre" e "Merry-Go-Round", trata-se de filmes que eu não conhecia. O primeiro é uma obra extremamente bizarra, por vezes exasperante, mas de que gostei muito. O segundo é um grande filme, com um dos argumentos mais ricos de todos os filmes de Rivette. O terceiro é, de longe, o pior filme deste realizador, com muito pouca coisa que o resgate ao estatuto de falhanço colossal.

O momento mais sublime das últimas noites cinematequianas ocorreu quando, duas horas e meia depois do início de "Merry-Go-Round", um rapaz louro entrou na sala e se instalou calmamente a dois lugares do meu. Tudo na sua linguagem corporal indicava a predisposição para desfrutar de um filme na sua integralidade, com essa mistura de tensão e volúpia que distingue o cinéfilo do simples turista das salas de cinema. O filme terminou cinco minutos depois.

CÂNONE: Sucede que eu sou a favor da existência de um cânone da literatura ocidental. Mas eu também sou a favor de muitas coisas de popularidade duvidosa, como sejam a abolição da calçada à portuguesa e a elevação do bolo de arroz a património universal.
AGRADECIDO: Os meus agradecimentos vão todos, inteirinhos, sem passar pela casa Partida nem receber 2000 escudos, para o Irmaolucia e para o Pastoral Portuguesa pela menção ao primeiro lustro deste blog. Quanto ao preço da maionese, o que dizer que não tenha ainda sido dito? A especulação é, deveras, o mal do século.
TEMPO: Uma coisa é não ter tempo para escrever baboseiras sobre a vida em geral. Uma outra coisa, muito diferente. é não ter tempo para escrever algo, por pouco e inútil que seja, sobre o falecimento de Maria Gabriela Llansol.

sábado, março 01, 2008

VENHAM MAIS CINCO: O 1bsk faz hoje 5 anos. Foi inaugurado no dia do 75º aniversário do realizador Jacques Rivette, o seu patrono não oficial. Não foi deliberado, mas é o tipo de gesto que um indivíduo com queda para as efemérides, como eu, seria bem capaz de perpetrar. O segredo da longevidade do 1bsk é muito simples. Este blog não é um projecto que corra o risco de se esgotar, nem é uma empreitada susceptível de ser cumprida. A sua razão de ser nunca se desagregará porque não possui nenhuma. O seu "sentido" (palavra de que urge desconfiar) dura o tempo que duram as suas micro-erupções. O trabalho de o aniquilar implicaria atribuir-lhe uma importância manifestamente excessiva. O seu destino é o de, placidamente, perdurar. Este blog nunca mudou de template, excepção feita a modificações estéticas de pouca monta. Este blog nunca mudou de nome, nem de linha editorial, nem de tipo de letra. A mudança de plataforma foi o único evento que violou a sua natureza essencialmente conservadora. Esse conservadorismo não representa uma mentalidade nem uma convicção, mas apenas um fruto do apego à lei do menor esforço e da sensação de que neste mundo, que é o nosso, as coisas (ah, as coisas!) mudam demasiado depressa. Talvez para oferecer um contraponto ao pequeno núcleo de fel e ressentimento que o acompanha, intacto, desde o início, este blog prefere virar-se para assuntos simpáticos e aprazíveis em vez das medonhas desgraças e das ignóbeis golpadas que nunca deixam de merecer destaque na nossa imprensa de referência. Incomodámos interesses estabelecidos por colocar em plano de igualdade a literatura, o cinema, a doçaria portuguesa, o xadrez, a toponímia parisiense, a ética republicana, gatos perdidos, Demis Roussos e a estátua do Dr. Sousa Martins. Os interesses estabelecidos também nos incomodaram a nós. Os concertos ao ar livre no Jardim dos Ulmeiros (em Telheiras) incomodaram-nos a nós, aos interesses estabelecidos e a toda a vizinhança. Este é um blog ecléctico, o que quer dizer que estendemos a nossa mediocridade a vários domínios, em vez de a confinarmos a um só, como é norma. Leitores, este blog continuaria a existir sem vós, mas de forma infinitamente mais deprimente e macambúzia. Como gostaria eu de, em jeito de recompensa pela vossa fidelidade, vos oferecer um daqueles prefácios à maneira de Kierkegaard, ou, à falta disso, um magnífico chá dançante!