quarta-feira, abril 23, 2008

A HORA RIVETTE (7): Por vezes, tentam fazer-nos crer que tal acontecimento será "único", ou que a oportunidade de o viver dificilmente se repetirá. Estamos todos saturados de hipérboles deste jaez. Travestir o corriqueiro em qualquer coisa de excepcional e irrepetível é algo que desespera a gente de bem.

Mas há que admitir que, de longe em longe, surgem oportunidades genuinamente irrepetíveis, e assinalam-se eventos cuja reprodução no lapso de tempo correspondente à vida média de um cidadão está longe de ser garantida.

Nos próximos dias 28 e 29, na Cinemateca, será exibida a versão integral de "Out 1", de Jacques Rivette. Esta versão, também chamada "Noli Me Tangere" (para a distinguir da versão abreviada, "Spectre"), com uma duração de mais de 12 horas, nunca foi vista em Portugal. Não me admiraria que os dedos das mãos chegassem para contar o número de exibições que este filme conheceu em todo o mundo.

Instrumentos persas de percussão, Ésquilo, Paris, Jean-Pierre Léaud, Michael Lonsdale, Bernadette Lafont, Bulle Ogier, Rohmer discursando sobre Balzac, conspirações tenebrosas, Lewis Carroll, tudo isto desfilará perante o olhar pasmado de quem aceitar o desafio e se dirigir às simpáticas instalações da Barata Salgueiro, de preferência munido de farnel.



(Atenção, o filme é colorido, mas na Internet só encontrei fotogramas a preto e branco.)

domingo, abril 20, 2008

A HORA RIVETTE (6): Citando de memória algumas das ideias/devaneios/argumentos trocados entre Serge Daney e Jacques Rivette ("Jacques Rivette, le Veilleur", de Claire Denis, Cinemateca, no passado dia 11):



  • Rivette pouco dado a close-ups por atribuir prioridade à interacção entre as personagens, à presença física dos corpos influenciando-se mutuamente. Os close-ups de Godard seriam válidos porque se continua a sentir o resto do corpo fora de campo, o prolongamento orgânico dos rostos.


    Eddie Constantine e Anna Karina em "Alphaville" (1965)


  • A chegada a Paris do jovem Rivette. Um encontro numa livraria de Saint-Sulpice, e a ida, nessa mesma noite, a uma sessão onde um certo Maurice Schérer (que ainda não era Éric Rohmer) apresentava "Les Dames du Bois de Boulogne", de Bresson.

  • Já não é possível começar uma história sabendo de antemão como essa história se irá terminar. "Não existem mais desenlaces." ("La Bande des Quatre" e "Haut Bas Fragile" são excelentes exemplos de filmes que parecem conduzir a desenlaces, mas que acabam por recusá-los, de forma discreta mas categórica.)

  • Um encontro com Fritz Lang em que este falou apenas e só de moral.

  • Rivette manifesta contentamento por sentir que os seus filmes são vistos e amados em paragens remotas. Uma vez, uma rapariga da Califórnia escreveu-lhe uma carta. A impressão vermelha da palma de uma mão, no exterior do envelope, revelava que a carta tinha a ver com o filme "Céline et Julie Vont en Bateau".

  • As filmagens de "La Bande des Quatre", marcadas pela recordação da filha de Bulle Ogier.

sábado, abril 19, 2008

EM TORNO DE "A NOITE": Antonioni possui um apelo sobre as massas nitidamente superior ao de Jacques Rivette. Ao passo que, nos filmes deste realizador recentemente mostrados na Cinemateca, raras vezes contei mais de uma dúzia de espectadores, a sala Dr. Félix Ribeiro registou bem mais de meia casa para a exibição de "A Noite". Um dos espectadores era um comentador desportivo sobejamente conhecido, cujo nome não revelo por uma questão de discrição. Posso apenas dizer que se trata de um household name de todos aqueles que, no último par de décadas, assistiram com regularidade a transmissões de futebol na televisão. Na bilheteira, um cavalheiro limitou-se a dizer "Antonioni", enquanto depositava o dinheiro sobre o balcão, com o ar mais solene deste mundo. Como se fosse uma espécie de senha. Nos lavabos dos homens da Cinemateca podem ler-se numerosas referências a realizadores famosos, da autoria (presumo) de frequentadores para quem a escatologia é indissociável da cinefilia. Exemplos: Antonioni, Pasolini, Jarman, Wilder, Bresson, Lynch. É ver para crer. Ou, no caso das senhoras, é pedir a um acompanhante masculino para ir lá ver para crer, e depois contar-lhe o que viu.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na linha verde do metropolitano, uma senhora lia "A Enfermaria nº 6 e outros contos", de Chekhov, numa edição de bolso da colecção "livros RTP". Por falar em leituras: no filme "A Noite", de Antonioni, Monica Vitti está a ler "Os Sonâmbulos", de Broch, coisa que parece deixar Marcello Mastroianni deveras impressionado.

«A atitude de que a natureza é caótica e de que o artista lhe traz ordem é um ponto de vista muito absurdo, julgo eu. A única coisa que podemos pretender é trazer alguma ordem a nós mesmos.» (Willem de Kooning)




Willem de Kooning, "Untitled XX"

domingo, abril 13, 2008

DEDICATÓRIAS: Thea von Harbou dedicou o argumento de "Metropolis" a Fritz Lang, nos seguintes termos: "Para Ti, e para a Alemanha". Philip Larkin dedicou "The Less Deceived" à sua companheira Monica Jones. Foi a única recolha de poemas que ele dedicou a alguém. (*) (*) Fonte: Andrew Motion, in "Lives For Sale - Biographers' Tales", edited by Mark Bostridge, Continuum, 2004.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na linha verde (?) do metropolitano, uma senhora sentada à minha frente lia "Une Mort Très Douce", de Simone de Beauvoir. Trata-se de um curto relato, de natureza autobiográfica, onde a autora conta os momentos passados à cabeceira da sua mãe moribunda. Ao meu lado, uma senhora lia um livro da escritora moçambicana Paulina Chiziane. Eu lia o meu Balzac ("La Peau de Chagrin").

domingo, abril 06, 2008

INTO MY ARMS, O LORD, INTO MY ARMS, O LORD: Nessa noite, o pianista do centro comercial Atrium Saldanha tocava versões muito suas de temas de Nick Cave, intercalados com melodias vivaças de Jerry Lee Lewis. Não escutava uma música ambiente tão despropositada desde que, em escala no aeroporto de Barajas (Madrid), reconheci, com compreensível surpresa, duas canções de Leonard Cohen: "Bird On a Wire" e "Last Year's Man".
FILMES QUE EU GOSTARIA DE VER EM SALAS PORTUGUESAS:
Em pelo menos um destes casos, o filme ainda nem sequer teve estreia mundial. Noutros, a sua estreia em Portugal já está anunciada. Há até um (Rivette) que já pude ver. O que une estes filmes é o meu desejo de os ver, um dia, num ecrã perto de mim. Nos dias que correm, isso pode ser pedir demais. Hoje em dia, a divisa do Maio de 68 confunde-se com a aspiração do cinéfilo médio: ser realista e pedir o impossível.



"Voici Venu le Temps", de Alain Guiraudie










"Ne Touchez Pas la Hache", de Jacques Rivette








"Un Conte de Noël", de Arnaud Desplechin








"Aleksandra", de Aleksandr Sokurov






"Yella", de Christian Petzold






"Nightwatching", de Peter Greenaway







"Takeshis'", de Takeshi Kitano
O MEU PAI ESTÁ PRESO: Na opinião de Q., a música do "Filho do Recluso" é muito parecida com a de uma canção da Lhasa. Eu ainda tenho as minhas dúvidas.

quinta-feira, abril 03, 2008

O QUE DIRÁ DE TUDO ISTO O MARCANTONIO DEL CARLO?: Num momento de elevada intensidade dramática do episódio de hoje dos "Morangos com Açúcar", o Pulga revelou ao irmão que gosta de rapazes. Pergunto-me se o argumentista se terá inspirado nestes versos dos Belle and Sebastian: My brother had confessed that he was gay It took the heat off me for a while Se assim foi, a continuação da canção fornece excelentes ideias para os próximos desenvolvimentos da situação: He stood up with a sailor friend Made it known upon my sister's wedding day Todos os dias úteis, na TVI, entre as 18h e as 20h.

quarta-feira, abril 02, 2008

A HORA RIVETTE(5): Às vezes, a leitura das folhas da Cinemateca torna-se uma experiência penosa. Por exemplo, a folha dedicada a "L'Amour par Terre", de Rivette, da autoria de Antonio Rodrigues, repleta de afirmações no mínimo contestáveis. Pascal Bonitzer será um "bom crítico"? O extraordinário livro que Bonitzer dedicou a Éric Rohmer parece-me demonstrar à saciedade que o adjectivo "bom" é, neste caso, um brutal eufemismo. Trata-se de uma questão de opinião, bem entendido. Qualquer um é livre de chamar a Bonitzer um "bom crítico", assim como qualquer um é livre de chamar a Sven Nykvist um "técnico competente". Bonitzer será "um daqueles franceses pedantes, mas com estofo, que sabe do que está a falar"? Eu diria, isso sim, que Bonitzer é um daqueles franceses (como se a nacionalidade fosse aqui relevante) suficientemente inteligente, erudito, agudo e articulado para ser apodado de "pedante" por aqueles a quem a inteligência, a erudição, a agudeza e a articulação excessivas causam escândalo. Bonitzer é "péssimo realizador"? Dos seis filmes por ele realizados, apenas vi "Rien sur Robert" e "Petites Coupures". O primeiro é uma comédia vagamente existencial, que funciona também como engenhosa sátira do meio intello parisiense, valorizada por esses actores geniais que são Sandrine Kiberlain e Fabrice Luchini. O segundo é uma exploração, densa e sombria, da fugacidade das relações humanas. Mais uma vez, trata-se de uma questão de gosto, mas diabos me carreguem se consigo conceber como é que alguém, de entre todas as combinações de adjectivo e grau que a riqueza da língua portuguesa coloca ao seu dispor, se lembra de "péssimo" para qualificar a obra de realizador de Pascal Bonitzer. Bonitzer "tornou[-se] uma espécie de superego de Rivette"? Em psicanálise não me meto, mas caramba... Rivette só utiliza, neste filme, actores que nunca tinham trabalhado com ele, à excepção de Jean-Pierre Kalfon? É falso. Já trabalhara com Geraldine Chaplin em "Noroît". O cinema de Rivette fora, até então, "terrivelmente sério, desprovido da menor gota de humor"? É caso para perguntar se o autor desta folha viu mais algum filme de Rivette. "Le Coup du Berger", "Paris Nous Appartient", "L'Amour Fou" (recorde-se a cena das matrioskas), "Out 1" (recorde-se o inenarrável monólogo de Rohmer sobre Balzac, dirigido a um Jean-Pierre Léaud pretensamente mudo) e "Noroît" são filmes onde o humor se encontra presente, e não certamente em doses homeopáticas. Quanto a "Céline et Julie Vont en Bateau", qualificá-lo de outra forma que não de "comédia" é atentar ao seu espírito de forma flagrantíssima. Felizmente, revi ontem "Haut Bas Fragile", filme que possui a virtude de atenuar todas as frustrações, contrariedades e arrelias.
HAIKKUS POLÍTICOS (3-5): Os sulcos da neve. Patinha Antão e colegas de bancada. A tarde. Os seus rumores envolvendo o sábio. Sufrágio universal. Maçãs verdes sobre a cal. Distrital de Coimbra do CDS-P.Popular.
VIVA KARL POPPER!: Recentemente, recebi uma mensagem de um indivíduo que reivindicava ter descoberto que a teoria da Relatividade de Einstein estava errada, e que solicitava uma contribuição monetária para adquirir uma peça de equipamento que lhe permitiria demonstrar a sua falsidade. Essa peça de equipamento custaria 650 euros. Parece-me uma quantia irrisória para revolucionar a Física. Seria irrealista pedir uma melhor relação preço/qualidade. Foi, enfim, uma variante refrescante, à modesta escala portuguesa, e (quem sabe?) talvez isenta de propósitos maliciosos, dessas mensagens de homens de negócios nigerianos ou de viúvas de guerra ruandesas que conquistaram o seu lugar no dia-a-dia do internauta médio. (A propósito de nigerian scams, isto merece sem dúvida os mais de 500 000 visionamentos que já registou: trapaceiros persuadidos a reproduzir um dos mais famosos momentos humorísticos do século XX, o "Parrot Sketch" dos Monty Python, por um scambaiter. É quase demasiado suculento para ser verdade.)