segunda-feira, outubro 31, 2011

SOMOS TODOS DICKENSIANOS: Depois de assistir a uma reportagem (creio que da SIC) sobre as derivas e convoluções judiciais do caso da herança Feteira, convenci-me de que a dimensão da coisa merecia uma comparação com o monstruoso processo Jarndyce and Jarndyce, descrito no romance "Bleak House" de Dickens.

Se as semelhanças se estenderem ao desenlace, as perspectivas são negras para os legítimos herdeiros. Em Jarndyce and Jarndyce, as custas judiciais acabaram por consumir integralmente o montante da herança.

A grande literatura não cessa de nos ministrar profundas lições de vida.


(PS - Por favor, deixem de mostrar as imagens da Sra. Rosalina a arranjar-se frente ao espelho do elevador.)

terça-feira, outubro 25, 2011

CINEMA: Pascal Mérigeau (de quem li uma biografia de Maurice Pialat, um pouco a puxar para o hagiográfico e sentimental) afirma que "Pater", de Alain Cavalier, é o filme mais singular alguma vez exibido no Festival de Cannes. Eu sou mais comedido. Para não ir mais longe, podemos pensar em "O Tio Boonmee...", de Apichatpong Weerasethakul (Palma de Ouro no ano passado) como um competidor à altura, em termos de originalidade. Em todo o caso, hierarquias de singularidade despertam-me reduzido interesse. Importa não correr o risco de reduzir uma obra tão admirável como "Pater" a um gimmick, e o seu encanto ao fascínio superficial do insólito. O filme de Alain Cavalier, que se esmera há décadas a trocar as voltas aos seus detractores e aos seus admiradores, é um prodigioso exemplo de inteligência narrativa, humor e mise en scène. Mau grado o aparente amadorismo da sua confecção (câmara digital ao ombro, equipa técnica quase inexistente, tom de falso documentário, improvisação ou simulação de improvisação), revela um domínio total sobre a matéria do filme, a sua dinâmica e os seus efeitos.

As três grandes obras-primas que eu tinha visto este ano nas salas ("O Tio Boonmee...", "O Estranho Caso de Angélica" e "Road to Nowhere") tinham-se sucedido muito rapidamente, como se obedecessem a um bizarro alinhamento astral. Começava a desesperar de reencontrar nem que fosse uma amostra de excelência - mas felizmente pode sempre contar-se com Cavalier para nos encher as medidas.

Vão ver. Não se arrependerão.


Alain Cavalier, Vincent Lindon e Bernard Bureau em "Pater". Uma das cenas mais hilariantes: a da fotografia comprometedora do candidato à presidência. «Pauvre France!...»
FERIADOS: A mudança ou eliminação de feriados é como a limpeza das sarjetas ou a redução do número de deputados: um tema recorrente que vem à baila ciclicamente, como se a ele aludir satisfizesse uma necessidade colectiva, obscura e primitiva. Se o governo actual levar avante o propósito de alterar o mapa de feriados, ficarei impressionado - independentemente de concordar ou não.

Se isso acontecer, impor-se-á a escolha entre feriados de cariz histórico e religioso. Entre datas marcantes para a formação do país e datas cuja relevância se confina à minoria católica praticante, sobretudo quando associadas a dogmas obscuros (falo por exemplo da Imaculada Conceição, naturalmente que excluo Páscoa e Natal), parecer-me-ia que a escolha deveria ser óbvia para os responsáveis políticos máximos de um Estado laico. Por desgraça, a República Portuguesa encontra-se voluntariamente condicionada por um acordo (Concordata) com um pseudo-estado carente de legitimidade e de dimensão democrática, por isso tudo é possível.
MALONE MORRE: Rebaptizar o blog é um estratagema batido, usado até à exaustão. Não é por mudar de nome que este blog deixa de ser o melhor blog português. Seria demasiado fácil. Tentem outra coisa.

domingo, outubro 23, 2011

JE PEUX PARLER:


Comprei este livro porque conhecia, da autora, uma notável obra sobre o realizador Jacques Rivette, e porque gostei daquilo que vi ao folhear. Só mais tarde me apercebi de que este "L'Agent de Liaison" começa com a descrição da cena inicial do filme da minha vida, "O Espelho" de Tarkovsky. Trata-se de uma cena em que um adolescente é aparentemente curado de uma gaguez muito profunda por uma hipnotista/curandeira. Para mim, é um dos momentos mais belos e intensos da história do cinema.


Podem visionar o filme aqui.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Uma leitora lia "Aparição", de Vergílio Ferreira, num banco ao ar livre na Faculdade de Ciências de Lisboa. Estava descalça, o que, apesar de não dar pontos de bónus, merece ser mencionado.

domingo, outubro 16, 2011

FESTA DO CINEMA FRANCÊS: Na noite do Dinamarca-Portugal, fui à Festa do Cinema Francês ver um filme de uma realizadora com ascendência dinamarquesa, ("Un Amour de Jeunesse", Mia Hansen-Løve). O filme era interessante, sem ser uma obra-prima. Já vira recentemente, na Cinemateca, uma outra longa-metragem da realizadora ("Tout Est Pardonné"), de que também gostei moderadamente, embora fosse copiosamente fustigada por Antonio Rodrigues na folha que acompanhava o filme.

Tendo em conta os relatos que ouvi sobre a exibição de Paulo Bento y sus muchachos, não me arrependo da escolha.

Sebastian Urzendowsky e Lola Créton em "Un Amour de Jeunesse"

quinta-feira, outubro 06, 2011

EUROPEAN BOOK COMPANY: Será que já prestei a devida homenagem à livraria "European Book Company", em San Francisco?

Acho que não prestei. Limitei-me, aquando da visita que a ela fiz, a registar uma nota mental para o fazer, que me anda a roer o juízo desde então.

A EBC é uma livraria muito especial. Fica situada num bairro de San Francisco (próximo do infame "Tenderloin") que, de forma gentil, poderia ser descrito como "pouco recomendável". O tipo de lugar onde o instinto e o bom senso mandam vigiar os pertences, estugar o passo e evitar contacto visual. Uma livraria independente especializada em livros franceses, como a EBC, seria um dos estabelecimentos que menos se esperaria encontrar neste sítio. Neste caso, a violação da lei das probabilidade é motivo de regozijo.

A EBC é uma livraria de dimensão média. Pouco deve à arrumação; a primeira impressão é de algum desmazelo. Domina a literatura francesa, incluindo uma selecção muito substancial de livros de bolso usados. Livros noutras línguas, em particular alemão, também se encontram. A representação de géneros é muito generosa, da filosofia à culinária. O atendimento não me pareceu um primor de simpatia, e o facto de os preços não estarem marcados nos livros é claramente um ponto contra. Mas não apetece perder tempo com estas ninharias, perante um diamante do tamanho do Ritz como é a EBC.

Acabei por me limitar a comprar 3 livros:


"Le Chaos et la Nuit", de Henry de Montherlant,




"L'Envers de l'Histoire Contemporaine" (grande título), de Honoré de Balzac (mas não foi esta a edição que comprei),




"Poèmes à Lou suivi de Il y a", de Guillaume Apollinaire.



Se ainda não está convencido, leia algumas reacções de clientes.


quarta-feira, outubro 05, 2011

5 DE OUTUBRO: Há quem se entretenha, talvez por ausência de outras maneiras mais produtivas de ocupar o seu tempo, a discutir a legitimidade histórica da República. Raras vezes faltam, nessas virtuosas argumentações, referências à representatividade parlamentar do Partido Republicano nos anos que precederam a Instauração, ao carácter bondoso de El-Rei D. Carlos, à natureza facínora do regicídio, aos 7 ou 8 séculos de história que fizeram de Portugal aquilo que é (ou aquilo que era circa 1910), aos egrégios avós, e à aleivosia suprema, que perdura até hoje, de a Constituição republicana negar a possibilidade de referendar a natureza do regime.

Nutro um interesse muito ténue por tais debates. A legitimidade da República não depende de acidentes históricos. A monarquia portuguesa e todas as restantes monarquias configuram uma usurpação do poder por uma família, perpetuada por linhas dinásticas mais ou menos tortuosas. Por maior que tenha sido a grandeza de vistas, os feitos, a sapiência dos monarcas, esse lastro histórico perdurou, intacto. A tendência das sociedades tem sido a da restituição do poder às populações e a da perda de confiança em soberanos legitimados pelo sangue, pela tradição ou por qualquer variante patusca da "graça divina". O percurso seguido por esse processo de restituição, o número de avanços e recuos, a quantidade de sangue vertido, são detalhes relevantes para o discurso histórico, é certo. Porém, fazer depender desses detalhes uma eventual discussão sobre a razão de ser da República implica cair numa armadilha; implica a possibilidade de uma República manca, diminuída, condicionada eternamente pela natureza dos eventos que a ela conduziram.

Esquecer a história da República é um erro tão grave como nela esgravatar incessantemente, em busca de legitimidade ou de um eventual "pecado original" que a debilite. Hoje, a República é um facto consumado. É o regime em que vivemos, um contexto de cidadania, um sistema de valores. É o presente e o futuro.

VIVA A REPÚBLICA!

domingo, outubro 02, 2011

O SANEAMENTO LAICO É UMA CENA QUE NÃO ME ASSISTE:

«(...) Desta autoria tripartida nascerá este acto de higiene espiritual numa altura em que os fantasmas de Richard Dawkins ou Christopher Hitchens assomam aos altares da vida pública e onde o simples facto de se dizer Deus abertamente e com maiúscula nos pode pôr no limbo do saneamento laico. Este espectáculo é uma oração. Este espectáculo é um acto militante. Este espectáculo devia ser uma leve brisa.» Miguel Loureiro, direcção.

(Excerto do texto de apresentação do espectáculo "A Vida de Maria", de Rainer Maria Rilke, Teatro São Luiz, 16-22 Dezembro.)

A minha primeira pergunta, ao ler este texto, foi: «Quem escreveu isto?» A segunda pergunta foi: «De que nação ou planeta aterrou ele?»

Valorizo muito o intercâmbio de culturas, pelo que teria o maior prazer em trocar dois dedos de conversa com este emissário de uma civilização distante. Nessa conversa, o director deste espectáculo (espectáculo que, aliás parece supremamente recomendável) poderia testemunhar sobre essas paragens remotas onde os fantasmas de Dawkins e Hitchens pairam, mais ameaçadores do que erínias, e onde "dizer Deus abertamente e com maiúscula" expõe o imprudente ao "limbo do saneamento laico", que eu ignoro o que seja mas que parece ser um destino consideravelmente pior do que a morte.

Pelo meu lado, eu poderia descrever a situação do país onde vivo, não muito diferente, mais cambiante menos cambiante, da que vigora na maior parte dos países limítrofes: uma sociedade onde, durante séculos, o laicismo, a luta pela separação Igreja/Estado e o ateísmo foram quase universalmente pretexto para o ostracismo, a incompreensão e a perseguição; e onde as últimas gerações puderam por fim (mas muito a custo, e não em toda a parte) pôr abertamente em causa os totalitarismos clericais, as conivências entre o poder público e a religião, o dogmatismo.

O meu interlocutor ficaria certamente encantado ao saber que as ruas deste país onde vivo não são patrulhadas por milícias sanguinárias de laicistas e ateístas, prontas a sanear quem se atreva a "dizer Deus", com ou sem maiúscula; e que, muito pelo contrário, são ainda aqueles que se atrevem a fazer sugestões tão sensatas e razoáveis como respeitar a lei no que toca à presença de crucifixos nas escolas públicas, deixar de remunerar os capelães pelo erário público ou fazer reflectir a neutralidade confessional do Estado no protocolo das cerimónias oficiais, que se expõem às acusações de intolerância e de "militância laicista".

Uma vez escalpelizadas estas interessantes clivagens culturais, poderíamos então falar sobre Rilke e Hindemith.
O EXCESSO DE DOUTORES, ESSA CHAGA NACIONAL: Este blog tem vivido num estado de agradável e puríssima letargia, mas isso não é desculpa para deixar de saudar exemplos de prosa bem escrita e certeira. Este post do Rui é um portento, e uma das melhores desmontagens que alguma vez li do velho mito de que Portugal tem licenciados a mais, independentemente de se tratar da versão medinista ou de outro flavor, mais ou menos requentado.

Hesito, porém, em insistir na crítica a Medina Carreira. A partir do momento em que a comunicação social se desunha para garantir o exclusivo das suas inanidades e lhe oferece uma tribuna, em horário nobre e com pouco mais do que uma amostra de contraditório, seria cruel negar-lhe esta satisfação. A tentação de atribuir às suas opiniões uma importância proporcional ao tempo de antena que lhe concedem é demasiado forte.