terça-feira, maio 31, 2005

PAS DE REPOS POUR LES BRAVES (4): Congratulo-me por verificar que este filme sumptuoso não passou despercebido à crítica especializada em Portugal. Tive oportunidade de ler dois artigos francamente elogiosos da autoria de Luís Miguel Oliveira e Augusto M. Seabra no "Público" (penso que nenhum deles está online). Este último chamou-me a atenção por mencionar dois outros nomes que causaram forte impacto no cinema francês dos últimos anos: Arnaud Desplechin ("Esther Kahn", e outros filmes infelizmente ainda por estrear entre nós) e Eugène Green ("Le Monde Vivant" e "Le Pont des Arts", que marcaram as duas primeiras edições do IndieLisboa). Tenho algumas reservas quanto às propostas de Green, mas não duvido que Guiraudie tem todas as condições para se içar ao nível destes dois autores, em vista da inteligência, originalidade e consistência estética das suas primeiras obras. Notei, em contrapartida, uma crítica manifestamente negativa de João Miguel Tavares no "DN". JMT parece colocar a questão em termos de "ame-o ou deixe-o, e eu deixo-o". Tratando-se de afinidade pessoal, ou falta dela, qualquer discussão perde razão de ser. Pelo que conheço de escritos anteriores de JMT, quer-me parecer que, não sendo um crítico reticente a acolher novidades, carece de benevolência para com incursões por veredas menos batidas das cinematografias actuais. Sobretudo se essas incursões se fizerem sob o signo da metanarratividade ou da desconstrução. Daí que a estrelinha singular com que brinda o filme de Guiraudie não constitua grossa surpresa.
LINGUAGEM: «(...) j'ai compris que tout le malheur des hommes venait de ce qu'ils ne tenaient pas un langage clair.» (Albert Camus, "La Peste") Há muito tempo que eu não me sentia tão profundamente de acordo com uma personagem de ficção (Jean Tarrou, neste caso).

segunda-feira, maio 30, 2005

MITOS: Leio, no posfácio à edição de Fernando Cabral Martins da "Mensagem", que Pessoa escreveu: «Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade.» (in "Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação"). Um mais alto grau da ambição humana corresponde (parece-me) ao ensejo de forjar historietas urbanas que se auto-promovam ao estatuto de lendas. De ser o autor daqueles pedaços de imaginário popular que se transformam em património comum, por definição supostos desprovidos de criador, fruto do génio nacional no seu modo mais corriqueiro. Escrevinhar nas costas de um prospecto aquilo que será repetido em paragens de autocarro de Campolide, uma semana mais tarde, ou nos barcos que partem do Terreiro do Paço. Talvez por desfastio, num fim de tarde acabrunhado de outono, num rés-do-chão do bairro dos Actores, em Lisboa. Numa oficina onde cheira a escape de automóvel e a graxa para calçado. Entre uma e outra escapadela à pastelaria do outro lado da rua. Fabrico próprio de madalenas, queques, croissants, palmiers, jesuítas, pastéis de feijão, bolos de arroz, éclairs, mil-folhas, tartes de maçã, pastéis de nata, quindins, pães-de-Deus, tíbias, queijadas, babás, caracóis, e doçaria sazonal.
DENSAS COMO FRUTOS: Breves histórias de mãos, vistas em quadros de mestres da pintura contemporâneos ou antigos. Histórias de mãos aflitas.
SE É CERTO QUE A NOITE: A sombra nos olhos. A sombra da mortalidade nos olhos, depois de um trajecto de quilómetros através da noite litoral, pairando sem intrigar. A sombra.
DA CONTIGUIDADE: Na Feira do Livro de Lisboa, escassos metros separam a Sociedade Bíblica do quiosque dos cientologistas. Quaisquer que sejam as minhas opiniões acerca da Igreja Católica e do seu papel na sociedade contemporânea, prefiro uma página dos evangelhos à obra completa de L. Ron Hubbard. E a homilia de um qualquer padre de província é-me mais agradável do que as discursatas do inefável Tom Cruise, do alto do seu púlpito, pregando urbi et orbi, com abundância de requebros hollywoodescos, as virtudes da dianética. (Excepto se dessa homilia constarem referências a «corpos esquartejados de bebés [que] vão aparecer em lixeiras de toda a espécie ao olhar horrorizado ou faminto de pessoas e animais».)
O SEGREDO ESTÁ NO ARTIGO DEFINIDO: Hoje chegou-me aos ouvidos uma conversa de teor cinéfilo. Discutiam-se os méritos e insuficiências dos filmes quase homónimos "O Pianista", "A Pianista" e "O Piano", que um cidadão desprevenido se arrisca seriamente a confundir. Da conversa resultou que: 1 - "O Pianista" é um dos melhores filmes dos últimos anos. 2 - "A Pianista" é uma porcaria. 3 - "A Pianista" é um filme tipicamente francês: demasiado sexo, e no fim não se percebe nada. E ainda há quem diga que André Bazin não deixou herança.

domingo, maio 29, 2005

PAS DE REPOS POUR LES BRAVES (3): "Os Bravos Não Têm Descanso" (título português do filme "Pas de repos pour les braves") não pode deixar de ser visto no contexto do actual cinema francês, onde predomina o naturalismo de pendor psicologista ou sociológico, e cujo inamovível centro de gravidade continua a ser Paris, hoje assim como no dia em que Jean Seberg gritava "New York Herald Tribune!" em plenos Champs-Elysées. Tanto este como os restantes filmes de Alain Guiraudie rejeitam esta tendência, para se situarem numa gloriosa "Terra do Nunca" cinematográfica, pejada de referências e citações mas dotada de contornos fortemente originais, arrancada à província francesa (mais concretamente ao sul-sudoeste, de onde o realizador é natural), transfigurada, atravessada por dimensões paralelas que deixam coexistir o sórdido e o magnífico, o mítico e o proletário. O registo é eufórico, de um onirismo a mil léguas de Freud, dotado de lógicas próprias que se encavalitam e fazem negaças umas às outras. E, contudo, o mundo real dir-se-ia mais presente do que em qualquer produto da escola realista, se bem que filtrado, distorcido, transitoriamente do avesso. Felizmente, esta atitude de ruptura com a estética dominante não redunda em mero esforço de provocação. Todos os filmes de Guiraudie, e notavelmente esta sua primeira longa-metragem, transportam consigo uma proposta forte e coerente. Todos eles constituem momentos de uma visão cinematográfica movida por um desejo permanente de reinvenção, e de um talento fecundo que, felizmente para todos nós, promete continuar a dar que falar nos tempos mais próximos. Guiraudie parece-me ser daqueles cuja vitalidade criativa não se compadece com pausas de 5 anos entre cada filme, à espera das condições perfeitas ou da visita inopinada da inspiração.
KISUN TALO VALAISEE KOKO TIENOON: Pelo andar da carruagem, ser-me-á complicado (ou mesmo impossível) visitar as exposições no âmbito do 6º Salão Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada, como por exemplo este "ABC do Gatinho", de Katja Tukiainen. Para os interessados, esta exposição estará patente até ao próximo dia 5, na Estufa Fria. Ideal para acoplar a uma surtida pela Feira do Livro, que é mesmo ali ao lado.
VIER LETZTE: É verdade, Dissoluto Punito, é verdade! Duas récitas das "Quatro Últimas Canções" de Strauss. A primeira delas, se não erro, pela Soile Isokoski, e a segunda, ali no São Carlos, pela "diva" Cheryl Studer. Ambas memoráveis, cada uma à sua maneira. (PS - Diverte-te em Paris!)
NORTE CONTRA SUL: Para além de ser pouco espessa, a separatória que divide a vida pública da vida privada possui marcas verticais nos pontos onde devem incidir as catanas.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Nas escadas rolantes da estação de metro da Alameda, um cavalheiro lia "Pedro Páramo", de Juan Rulfo, denotando a concentração que esta obra-prima da literatura mexicana exige.

terça-feira, maio 24, 2005

PAS DE REPOS POUR LES BRAVES: Começaria por transcrever um excerto da crítica de Jean-Michel Frodon para os "Cahiers du Cinéma", onde é levantado um ponto que me parece crucial relativamente a este filme de Alain Guiraudie: «Guiraudie rêve ses films éveillé, mais il est un sacré bon rêveur. Dans la joie alerte des assonances de couleur, des rebonds, des péripéties, des échos de récits anciens, de films aimés, de moments intimes, voici que se déploie, souveraine et modeste, l'épopée de Basile (...) Guiraudie est un farceur insolent, un styliste doué, un graphiste méridional (...) Mais surtout, Alain Guiraudie est un cinéaste. Quand il fait un plan, c'est un véritable plan de cinéma.» Independemente da história (hilariante, por sinal), do seu universo pessoal, das suas obsessões, é precisamente isso que impressiona em Guiraudie (e não só neste filme, aliás): em cada plano, existe uma lógica na disposição dos elementos, não a lógica fria de uma demonstração, mas a lógica levemente anárquica, dinâmica e celebratória de um filme transbordante de criatividade e de confiança na sua capacidade de transmitir algo mais para além de uma simples construção narrativa ou de um cambiante emocional de uma personagem. Ou, misturando duas famosas citações de Rivette e de Godard: uma ideia de cinema 24 vezes por segundo. (NOTA: Ao escrever de forma tão ditirâmbica sobre um filme que, tanto quanto sei, só está em exibição em Lisboa, peço desculpa aos meus leitores de fora da capital. É triste constatá-lo, mas, neste país culturalmente centralizado, falar de bom cinema equivale muitas vezes a excluir quem está fora dos grandes centros. Esperemos que este filme tenha a difusão que merece por outras salas mais periféricas.)
O MEU MOMENTO ZEN (*): As crónicas semanais de João César das Neves oscilam entre ponderadas lucubrações sobre aquilo de que ele realmente percebe (economia) e hilariantes desvarios sobre temas "de sociedade" ditos "fracturantes" (para empregar um termo em voga), como sejam a homossexualidade, a degradação dos costumes, o aborto, etc. São raras as suas intervenções que se situam a meio caminho entre estes dois extremos, mas são também, a meu ver, as mais interessantes. Eivadas de inconsistências e vícios de raciocínio, generalizações apressadas e analogias mancas, sucede-lhes escapar à inanidade absoluta. Na sua coluna de ontem, JCN traça um cenário futurista aparentemente inquietante (mas que, entende-se implicitamente, não seria mais do que um juste retour des choses, uma vingança irónica da história sobre a secularização galopante do nosso tempo): «Imagine que dentro de décadas toda a gente pense que a ciência é uma actividade sinistra, enganadora, perigosa. O uso de tecnologias por terroristas, os infindáveis debates académicos, as dúvidas sobre teorias estabelecidas irão minando a confiança absoluta que temos no conhecimento científico.» Este cenário não é difícil de imaginar, pois a ciência já é desprezada e olhada com irada desconfiança por muitos sectores, e por largas faixas da opinião pública. O próprio JCN admite prontamente, aliás, que esta sua especulação conceptual não prima pela ousadia: «Este cenário nem é bizarro. Basta lembrar as suspeitas pós-modernas e a popularidade crescente de ideias esotéricas e mágicas para que se torne bastante plausível.» Com a extrapolação que se segue, começa a derrapagem: «Se extrapolarmos tais tendências, não faltará muito para a cultura vir a pensar da ciência e técnica aquilo que hoje pensa da religião e fé.» Seguindo a estratégia da vitimização adoptada por 9 em cada 10 colunistas do nosso burgo, JCN parece querer-nos fazer acreditar que a religião é hoje unanimemente espezinhada e desacreditada, ao passo que a ciência é universalmente exaltada como a única e infalível fonte de verdade. Bastam umas migalhitas de atenção e boa fé para constatar que este quadro distorce grotescamente a realidade. E a realidade é esta: da RTP a transmitir a procissão das velas em directo até aos escapulários oferecidos por um jornal de grande tiragem, a religião continua a ter um peso esmagador na nossa sociedade (refiro-me à portuguesa), que a ciência está longe de poder contrabalançar. Ou então escapou-me o que JCN entende por "a cultura", essa cultura fantasma que menoriza e achincalha a religião. Pressinto que isto nos faria enveredar por indesejáveis labirintos argumentativos colaterais. Adiante. «Parece impossível que alguém ponha em dúvida a certeza demonstrada da ciência.» Falso. Não só não parece impossível, como a isso obriga a boa prática científica. Não existem "certezas demonstradas" na ciência, mas sim modelos, hipóteses e teorias que podem e devem ser constantemente confrontados com a experiência, e que devem ser abandonados ou reformulados quando se demonstre a sua incoerência ou incompatibilidade com observações empíricas. JCN procura conferir à ciência uma natureza dogmática, quiçá se para a fazer assemelhar-se à religião, e assim polir a sua duvidosa analogia. «Nesse cenário fictício, os habitantes do futuro julgarão que nós, por acreditarmos na ciência, somos parolos ignorantes e boçais, vítimas de superstição. [...] Se for verdade essa possibilidade, os nossos descendentes vão achar que os investigadores de hoje são todos interesseiros e corruptos, usando a sua actividade só para encher os bolsos. Precisamente como os filmes de Hollywood costumam representar os clérigos.» Claramente, JCN e eu não andamos a ver os mesmos filmes. Talvez o cine-clube da Universidade Católica esteja a passar uns ciclos interessantes. A conferir. «Existe um abismo que nos separa das nossas fontes culturais. Este é o terrível drama actual deitámos fogo às nossas raízes.» Leia-se "às nossas raízes cristãs", bem entendido. Não se leia "às nossas raízes humanistas e ao legado iluminista", coisa que seria de somenos importância na óptica de JCN. «O homem de hoje continua a confrontar-se com o mistério da sua origem e do seu destino. Os modernos esforços científicos nada conseguem dizer quanto ao sentido da existência humana.» Nem é esse o seu objectivo. O "sentido da vida", entendido na sua acepção maximalista, como resposta a perguntas como "Quem somos? Para onde vamos?" e outros sucessos do género, não passa de um abuso linguístico, uma ficção que tem sido sequestrada e prostituída por ideologias e religiões de todos os quadrantes, ao longo da história. «Os que hoje ridicularizam a religião não têm nada que a substitua e perderam o rumo e orientação.» Mais uma glosa do popular tema segundo o qual não existe "rumo" nem "orientação", ou seja "moral", sem religião. Também isto é um dogma. Em resumo: JCN baseia-se num cenário que pouco deve à realidade (religião oprimida e substituída pela ciência triunfante na sociedade de hoje), e daí projecta uma fantasia histórica (a ciência, por sua vez, desacreditada pela mesma "cultura" que a aclamou) que, por se fundar em terreno tão movediço, tem um interesse nulo. A ciência não se veio substituir à religião (a não ser no terreno particular da explicação dos fenómenos naturais, onde a religião nunca deveria ter interferido), nem veio trazer um sucedâneo de sentido e de moral susceptíveis de serem postos em causa pelos vindouros. Muito pragmaticamente, limita-se a classificar e enquadrar em modelos a realidade do Mundo, e apenas entra em conflito com a religião quando esta tenta impor a sua Verdade revelada, absoluta e eterna (e de natureza assaz vaga, diga-se de passagem) às verdades (sublinho o plural e a minúscula) provisórias e de alcance circunscrito, mas fecundas, que a actividade científica produz. (Mas gostei muito da parábola de Kierkegaard.) (*) Título surripiado aos mais incisivos e incansáveis exegetas cesarnevesianos da blogosfera e arredores, o Diário Ateísta.
TÃO LONGE, TÃO PERTO: Fiquei a par da escolha de António Guterres como novo Alto Comissário para os refugiados graças a um jornal esloveno, o Vecer. (Don't ask...) Confirmei a notícia no Expresso, que (e isto até os seus detractores admitirão) possui a suprema vantagem de estar escrito em português.
CINEMA:
Estreou finalmente o filme "Pas de Repos pour les Braves", evento que em muito contribuiu para o meu bem estar geral, já para não falar da minha fé na providência e na humanidade em geral. Espero falar com algum detalhe deste filme. De momento, limito-me a afirmar que, instado a explicar em duas ou três frases o que me entusiasmou neste filme de Alain Guiraudie, eu balbuciaria uma vacuidade relacionada com o facto de ser esta uma obra que faz plena justiça ao cinema enquanto arte autónoma e maior, dotada de especificidade, e que apaixona tanto mais quanto afirma e explora essa especificidade, em vez de se remeter ao deprimente e bem comportado papel de parente pobre.

segunda-feira, maio 23, 2005

ANÚNCIOS DE GATO PERDIDO INVENTADOS (10): Hoje temos uma enorme surpresa para todos os nossos leitores. O anúncio de gato perdido inventado "númaro" 10 é nada mais nada menos do que um poema de João Luís Barreto Guimarães, extraído do seu livro "3" (Gótica, 2001). um gato assim era quase um sítio perdido entre o pêlo e o acordar (pequena fábula sonhada por entre as patas) quem o enviou quis ensinar ao mundo o sentimentos da inveja. a mãe tirava da boca para lhe dar assim mesmo o lorde mentia na hora a que chegava das sete vidas paralelas. um dia fugiu pela manhã o (in)g(r)ato mesmo sem se despedir ou pagar o que levou: a coleira nova e o guizo.............................150$00 duas latas de comida.................................395$00 um saco de areia higiénica.......................200$00 dá notícias pedaço de deus se acordares desse intrigante sono repousando de (qual?) cansaço que pensas tu afinal de Ivan Petrovich Pavlov?
PEQUENO E NEGRO É COMO O QUEREMOS: Parabéns (tragicamente atrasados) e obrigado ao Little Black Spot por 2 anos que valeram a pena seguir. E as minhas desculpas a todos os blogs porreiros cujos aniversários me vou esquecendo de assinalar por desleixo. Deus quer, o homem sonha, e eu procrastino como gente grande.
RIDENDO CASTIGAT DÉFICE: Na revista "Visão" do passado dia 19 de Maio, alguns economistas nacionais de graúda reputação opinam sobre as medidas a tomar perante a aflitiva derrapagem das contas públicas. O rol de medidas raramente sai do previsível: com mais ou menos cambiantes, andam à volta dos cortes nas despesas, do aumento dos impostos, emagrecimento do sector público, et caetera. Não deixa, contudo, de ser fascinante apreciar, de proposta em proposta, as pequenas diferenças, que (como dizia John Travolta em "Pulp Fiction") é onde reside o verdadeiro interesse. Por exemplo, Miguel Cadilhe preconiza a "Autoproibição do Estado de recair em grandiosos eventos/equipamentos caríssimos e desproporcionados (estádios de futebol, submarinos), e não serei eu quem discordará. Já Miguel Beleza, esse, escolhe outro alvo, com uma precisão pragmática de cortar o fôlego: defende "mais rigor nas despesas supérfluas, como, por exemplo, na atribuição de alguns subsídios à Cultura". A cultura e a sua vocação para bombo da festa. A cultura e a sua fama de capricho, vistoso mas inútil, de uma sociedade. Eleger a cultura como vítima prioritária de cortes e medidas de contenção em tempo de crise pode dever mais ao filistinismo do que à sagacidade. Admitir que tal possa contribuir significativamente para reduzir o défice é certamente de mau economista. (Como, mais adiante, Miguel Beleza aponta o regresso de José Mourinho como outra das medidas que urge tomar, talvez não passe tudo isto de uma longa e sofisticada chalaça.)

domingo, maio 22, 2005

DOIS ANOS DE PETAS: O Almocreve das Petas fez dois anos. 365x2 dias (mais um por causa do bissexto) de prosa inspirada e certeira, a espaços gongórica mas límpida nas intenções, nas embirrações, mas também na generosidade com que explora os seus temas predilectos. Kleist sopra os seus parabéns!
QUERELA DOS ROMÂNTICOS E DOS CLÁSSICOS NUMA SÓ PESSOA: Stendhal dizia querer ser romântico nas ideias e clássico nos meios de expressão. Não posso senão simpatizar com este propósito - tão abundante e genialmente vertido em obras por este autor. Aplicado a uma cidade como Lisboa, um tal princípio equivaleria a insuflar paixões inverosímeis nas estátuas públicas sobriamente proporcionadas, e a dissimular segredos atrozes por detrás das regras de ouro que regem as medidas das fachadas dos edifícios.

quinta-feira, maio 19, 2005

POR ESTA ORDEM: Por exigência do seu novo filme, Natalie Portman rapou inteiramente o cabelo. Falando do seu novo visual, a actriz declarou: «Alguns vão provavelmente pensar que eu sou neo-nazi, que tenho um cancro, ou que sou lésbica.». Ou seja, um crescendo de horrores.
O QUE HÁ NUM NOME? (3 E FIM): Hipótese 7: Talvez Bento XVI tenha escolhido o nome "Bento" por ser apreciador do licor Bénédictine. Hipótese 8: Testemunho de admiração pela obra poética de José Bento. Hipótese 9: Recordação (voluntária ou não) da inesquecível personagem de Bento Pertunhas, imortalizada por Júlio Dinis em "A Morgadinha dos Canaviais". E, finalmente, a décima e perturbadora hipótese: Ao escolher o nome "Bento", o pastor alemão associou ao trono pontifício o número XVI. Ora, 16 é o número atómico do enxofre. Será este um sinal oculto relativo à verdadeira origem de Ratzinger?
UMA PAUSA SEM KITKAT: O Zé Mário desafiou, e a gente aqui gosta de desafios. 1- Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser? Gostava de ser o "Crime e Castigo" em versão de livro para banho. Com um Raskolnikov em versão popup insuflável. 2- Já alguma vez ficaste perturbado/apanhado por uma personagem de ficção? As personagens de ficção perturbam-me invariavelmente, sobretudo as que colocam anúncios no jornal para descobrir o homem que as engravidou, as que se evadem da prisão graças a um sismo na América do Sul, e as que se revoltam contra os poderes instituídos quando medíocres sicários devolvem os seus cavalos num estado deplorável. 3- O último livro que compraste? O último livro que comprei deve ter sido um livro de poemas de Charles Simic, mas parece-me que este é o momento ideal para me queixar por não me terem dado o livro sobre cozinha italiana que deveria vir hoje com o "Público". 4- Os últimos livros que leste? Ler, ler, ler, ler, aquilo que se chama ler, terá sido "The Woman in White", de Wilkie Collins. Há uma personagem do "Ulysses" de Joyce que lê este livro. Melhor do que leituras em lugares públicos, só leituras dentro de leituras! 5- Que livros estás a ler? "Comment Une Figue de Paroles et Pourquoi", de Francis Ponge, onde se fala de poeira açucarada depositada nos lábios, de dulcíssima polpa pastosa e de interiores de fruto que brilham como altares em igrejas abandonadas. 6- Que livros levarias para uma ilha deserta? A Constituição da República Portuguesa, a Cartilha Maternal e o Tesouro das Cozinheiras. 7 – Quatro pessoas a quem vais passar este testemunho e porquê? Por me encontrar numa fase da vida em que a ficção supera em interesse a realidade, passo este inquérito a quatro irmãs solteironas de Friburgo, cuja literacia não supera o nível da "TV Guia", mas que guardam no seu sótão a maior colecção de notas falsas do mundo.

terça-feira, maio 17, 2005

ADVERSATIVA: Mas, algumas linhas mais adiante: «Je veux donc dire que "avoir perdu le silence" ne signifie rien de ce qu'on pourrait croire. Du reste, peu importe. J'ai décidé de suivre cette voie.» Se está decidido, decidido está. Prossiga-se o caminho, com um cântico de jovial optimismo nos lábios. Deixemos ao inexistente homúnculo o luxo de se calar. Acocorado no seu limbo, o silêncio mendigado ao mundo como estalactites nos seus bolsos.
LEITURAS: Lido num romance de Maurice Blanchot ("L'Arrêt de Mort"): «Avoir perdu le silence, le regret que j'en éprouve est sans mesure. Je ne puis dire quel malheur envahit l'homme qui une fois a pris la parole.» Perder o silêncio. Pouco importa se comparável à perda de uma graça, de um objecto (rugoso e resistente à pressão), ou de uma amizade. Ver-se de súbito despido e espoliado de silêncio, ainda por cima por vontade própria, uma vaga variedade de vontade própria. Abdicar do silêncio com o arrependimento desde logo cingido à garganta. Uma e outra vez. Todos os dias. Não poder dizer "a infelicidade que invade o homem", nem sequer a respectiva lucidez. O lento movimento da luta terá primazia agora e sempre sobre a pobre eloquência daquele que quis balbuciar.
XADREZ: Está a desenrolar-se em Sófia um dos torneios de xadrez mais fortes do ano, o "M-Tel Masters". Os seis participantes, que se defrontam num sistema de todos contra todos a duas voltas, são os seguintes: Viswanathan Anand (Índia, nº 2 do mundo), Veselin Topalov (Bulgária, nº 3), Vladimir Kramnik (Rússia, nº 5), Michael Adams (Inglaterra, nº 7), Judit Polgár (Hungria, nº 8) e Ruslan Ponomariov (Ucrânia, nº 20). Este torneio apresenta uma característica inovadora, que contribui para lhe conferir um interesse excepcional: os jogadores estão impedidos de acordarem empates entre si. Os empates apenas poderão resultar de decisões dos árbitros ou de situações de empate técnico óbvio, como a repetição de lances. Espera-se, com esta medida, minimizar os chamados "empates de salão", jogos com poucos lances e nenhum espírito combativo, e que infelizmente parecem ter vindo a tornar-se cada vez mais abundantes ao mais alto nível. Até ao momento, as estatísticas a este respeito não são animadoras: num momento em que se chegou a meio do torneio (hoje cumpriu-se o dia de descanso), o número de empates é de 11 em 15 partidas, ou seja, uma percentagem de 73 %, o que é francamente elevado, e decepcionante para um torneio cujas regras visam desencorajar os empates. Porém, saliente-se que muitos destes empates foram combativos, por vezes deveras emocionantes. Os empates fazem parte do xadrez, afinal de contas. Só se lamenta que certos grandes-mestres, a coberto desta evidência, procurem empates a todo o custo, com eventuais benefícios a curto prazo, mas hipotecando a possibilidade de o xadrez vir a conquistar mais fãs e atrair mais patrocínios. Ao fim de 5 rondas, Kramnik e Adams lideram. O site oficial do torneio está aqui. As partidas podem ser seguidas em directo, por exemplo na página da revista Europe Échecs.

segunda-feira, maio 16, 2005

LONGO TEMPO EU ME FUI DEITADO DE BOA HORA: Amanhã, terça, na Fnac do Chiado, Pedro Tamen debaterá com a crítica Maria da Conceição Caleiro a sua tradução de "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust. Às 18h30. Quem sempre reprimiu a vontade de se erguer e proclamar, alto e bom som, "Senhor Pedro Tamen, na página 477 o senhor confundiu um imperfeito do conjuntivo com um presente do conjuntivo!!!", que aproveite a ocasião ou se cale para sempre.
"LORD JIM" (3): Uma coisa que aprecio sobremaneira em "Lord Jim" é o seu estilo. Conrad faz justiça à apaixonante riqueza da língua inglesa, mas sem abuso de preciosismos, evitando com naturalidade os alardes de erudição vocabular que denunciam o exilado linguístico. O seu idioma é casual e eficaz, quase rude a espaços. Há um lado funcional da língua que é explorado com sobriedade, mas não necessariamente sem requinte. Não o requinte de um esteta, como Nabokov, outro anglófono por adopção; antes o requinte discreto de quem se permite um instante de volúpia verbal como minúsculo consolo perante o espectáculo vagamente degradante da natureza humana em acção; infinitamente ponderado, muito "stiff upper lip".
"A MENINA DO RÁDIO": (Título para uma biografia de Marie Curie que nunca escreverei.)

domingo, maio 15, 2005

INVENTÁRIO E DESPEDIDA: Como hoje estou com muito pouco tempo, limito-me a enumerar o nome dos doze titãs originais citados por Hesíodo: Cronos, Oceanus, Coeus, Iapetus, Hyperion, Crius, Rhea, Themis, Mnemosyne, Theia, Phoebe, Tethys. (O título deste post, como é óbvio, é o de um notável livro de poesia de Paulo Teixeira.)
O QUE HÁ NUM NOME? (2): Mais alvitres sobre as razões que levaram o cidadão Ratzinger a escolher Bento como nome papal, em vez de outros igualmente bem soantes e ricos de história como Umbelino ou Adalgiso: Hipótese 4: Discretíssima homenagem aos Ovos "Benedict", acepipe obrigatório em qualquer brunch digno desse nome, e que consiste (para os plebeus que não frequentam estas ocasiões sociais/gastronómicas) em muffins, bacon canadiano e ovos escalfados, tudo coberto por molho holandês. Hipótese 5: Tributo a Bento de Jesus Caraça, matemático, pedagogo e activista político português do século XX. Hipótese 6: Testemunho de admiração pelo actor francês Benoît Régent, falecido prematuramente em 1994, e que marcou com a sua participação, com os seus olhos ternos e com a sua reticência discreta de eterno pasmado com a vida, filmes como "La Bande des Quatre" (Rivette), "Bleu" (Kieslowski) e "J'entends plus la guitare" (Garrel).

sábado, maio 14, 2005

NÓS, VÓS, ELES: Perante o último opus de Margarida Rebelo Pinto, "Pessoas Como Nós", cujo primeiro capítulo suportei na íntegra (graças à generosa e desinteressada divulgação que dele foi feita), sinto vontade de reagir um pouco à semelhança de Nanni Moretti, no filme "Caro Diario", perante o filme italiano que em má hora decide ver em pleno verão romano. «Vocês é que gritavam coisas absurdas, vocês é que envelheceram!» bufava Moretti. «Eu gritava coisas justíssimas, e tornei-me um esplêndido quarentão!» E eu, mais ou menos no mesmo tom: «Não, essas pessoas que a senhora Rebelo Pinto descreve no seu livrito não são como eu! Nem como ninguém que eu conheça, aliás.» Entre outros encantos e louváveis virtudes, as pessoas têm a vantagem de não se parecerem com estereótipos de literatura "light". Mas não é a futilidade e a vulgaridade das suas personagens que transforma a leitura de um romance como este num penoso exercício: é a falta de engenho e de criatividade na exposição das suas misérias. (Um bocadito de cuidado com a gramática também não faria mossa.)
O QUE HÁ NUM NOME?: Permito-me acrescentar algumas achegas às conjecturas relativas à escolha do nome do novo papa. Porquê Bento XVI? Hipótese 1: Homenagem a Benedetto Croce, intelectual e político italiano, autor de "L'Estetica come scienza dell'espressione e linguistica generale", entre outras obras de poderosa influência. Hipótese 2: Reconhecimento do peso histórico, sociológico e económico da estação ferroviária de São Bento, no Porto. A notável azulejaria do átrio principal pode ter sido factor decisivo na escolha. Hipótese 3: Tributo à actriz Benedita Pereira, que formou com João Catarré parelha inesquecível na série "Morangos com Açúcar", ícone da tê-vê-i.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Há alguns dias, no metropolitano, sentei-me em frente a uma senhora que lia um livro intitulado "Viver Com os Outros", de Isabel da Nóbrega. A princípio, cuidei tratar-se de uma obra de auto-ajuda. Bastou, porém, uma consulta breve à "História da Literatura Portuguesa" de Saraiva e Lopes para me inteirar de que se trata de um romance publicado em 1964, e que Isabel da Nóbrega foi ainda autora da novela "Já Não Há Salomão" e dos volumes de contos "Solo Para Gravador" e "Quadratim". Há lá mais nobre ambição para um escrevinhador do que desejar que os seus livros sejam lidos na rede de transportes públicos pelas gerações vindouras?

sexta-feira, maio 13, 2005

NOVISSIMUS BLOGUS: Parece nome de encíclica acabada de brotar da inspirada pluma do pastor alemão, mas não é. É apenas uma maneira latino-macarrónica de introduzir um elenco de blogs que chamaram a minha atenção durante a longa-oh-demasiado-longa ausência das últimas semanas. "Ópera e Demais Interesses", do Dissoluto Punito, cuja paixão melómana já tive ocasião de aferir ao vivo, deve passar a ser um ponto de passagem obrigatório para quem aprecia o espectáculo operático. "Educação Sentimental" é o nome do novo blog da autora do saudoso "My Moleskine". "Esquerda Republicana" é onde escreve o Ricardo Alves, que também participa no imprescindível "Diário Ateísta". "Da Literatura", cuja esfera temática se depreende limpidamente do título, tem ao leme um quarteto que tem mostrado capacidade de reflectir e discorrer sobre livros e letras furtando-se à brevidade ou negligência demasiadas vezes cultivada por essa blogosfera fora. "Marionetas a Norte" tão pouco esconde o jogo: é de bonecos e títeres que se fala neste interessante blog temático. Kleist aprecia e agradece!
A 13 DE MAIO, NA COVA DA IRIA, LÁ LÁ LÁ...: Sou laicista militante durante 364 dias do ano. A excepção é o 13 de Maio. Passo a explicar-me. As imagens que nos chegam do santuário, dos idosos progredindo penosamente de joelhos, ou arrastando-se para agradecer sabe-se lá que ilusória intercessão, de crianças entregues a absurdos pagamentos de promessas, são tão degradantes e eloquentes que me julgo dispensado de acrescentar seja o que for. Claro que muitos defenderão estarmos perante outras tantas manifestações de sublime fé. Seja. Mas também há quem defenda que o Zeppo era o mais divertido dos irmãos Marx. E, a propósito, constou-me, já não sei por que via, que tinha sido o António Botto o autor da letra da canção "A 13 de Maio na Cova da Iria". E isto para cair nas boas graças do regime que o exilara. Facto ou mito urbano? Em todo o caso, mal por mal, antes a publicidade da Coca-Cola.
OU... OU...: Hoje assisti a uma apresentação oral subordinada à temática das relações (mais ou menos conflituosas) entre as culturas das ciências exactas e das ciências humanas. Da apresentação fazia parte uma citação de Kleist. Reproduzo de memória: «A humanidade divide-se em dois grupos: aqueles que compreendem as metáforas e aqueles que compreendem as fórmulas. São pouquíssimos aqueles que compreendem tanto umas como outras.». Desconheço a origem da citação. E não sei se estou de acordo. Tudo dependerá da noção de "compreensão" que está aqui em jogo. Mas a cavalo dado (neste caso a uma referência kleistiana caída de onde nunca a esperaria) não se deve olhar o dente.
AMBIÇÃO DESMEDIDA: A minha Grande Aspiração, para falar com absoluta franqueza, era manter um blog igual a este, sem tirar nem pôr, mas em que todas as ocorrências da frase "Gosto muito de vinho branco" fossem substituídas pela frase "Gosto muito de vinho tinto". Ambição desmedida? Pode ser que sim.

quinta-feira, maio 12, 2005

ANÚNCIOS DE GATO PERDIDO INVENTADOS (9): Íamos no número 9, não era?
Perdeu-se lindo gato.
Foi num domingo.
O gato tinha uma coleira de cabedal verde.
Eu acabava de completar as palavras cruzadas.
3 vertical, "sempre ao nosso lado, nunca à frente, vermelhas e delicadas", 8 letras.
"PAPOILAS!"
Um vizinho pregava um prego.
Nisto olho para o parapeito, e descubro ausência do gato.
Como cantar a minha mágoa?
Talvez sob a forma de ode.
Em moça, tinha jeito para as cantorias.
Três colunas num jornal local, após vitória em concurso de orfeão.
Nesse dia a água-pé subiu-me à cabeça.
Ah ah, no pun intended.
O meu ricto transtornado diz tudo, poupar-me-ei às manifestações vocais.
Da última vez que ele desapareceu, encontrei-o dentro da embalagem da edição de coleccionador do DVD da "Boceta de Pandora" de Georg Wilhelm Pabst.
Mas desta vez já passaram três dias.
E se ele apanha uma dessas doenças que andam por aí?
Hipótese que de académica não tem nada.
Quem o encontrar, que o venha entregar à dona chorosa.
Mas resignada, com o lábio inferior mordido pelos incisivos, e os punhos devidamente cerrados.
Feito em Lisboa, pelo punho desta que assina...
"LORD JIM" (2): Quando Jim se despede de Marlow, a dada altura, parece ir falar, mas remete-se a um «No. Nothing.» Mais tarde, reflectindo sobre este momento, Marlow escreve: «That was all then - and there shall be nothing more; there shall be no message, unless such as each of us can interpret for himself from the language of facts, that are so often more enigmatic than the craftiest arrangement of words.» A linguagem dos factos. Um conceito fascinante: transmitir mensagens por meio dos actos, banais, fúteis ou corajosos, cometidos no Mundo, à revelia das verbalizações julgadas traiçoeiras. Sobretudo se a mensagem for dirigida a um único receptor inacessível. Como Lancelot, batendo-se e passando privações, vivendo as aventuras mais perigosas como quem explora uma sintaxe ingrata, substituindo pelas suas errâncias as sílabas que nunca saberia pronunciar em presença de Guenièvre, ou pelo menos nunca sem desmaiar, mordendo a terra demasiado rude.
"LORD JIM" (1): Terminei recentemente a leitura do romance "Lord Jim", de Joseph Conrad. Gostei sobretudo da maneira como neste romance coexistem o lado inglês de Conrad (a omnipresença dos escrúpulos morais por vezes indiscernível de uma preocupação pelas aparências, ou mesmo pela postura no sentido físico do termo) e o seu lado eslavo (manifesto no pessimismo céptico e crepuscular que permeia o livro, que seria talvez apocalíptico se o autor reconhecesse à humanidade uma relevância que lhe conferisse verdadeira dimensão trágica). Mas o aspecto que considero mais interessante em "Lord Jim" é a sobreposição da história do jovem Jim, grumete caído em desgraça devido a um acto de cobardia que o assombrará o resto da vida, com a história da opinião que o narrador (Marlow) vai formando desse mesmo Jim. Oitenta ou noventa por cento do livro é ocupado pela narrativa de Marlow (dirigido, diga-se, a uma plateia escassamente interessada), e, com muita frequência, a urgência de contar é vencida pela urgência de exprimir o que ele via de excepcional em Jim. Interesso-me muitíssimo pela tensão entre o excepcional e o medíocre em personagens de romance. Tal como em "A Sibila" ou "The Bostonians", o leitor é deixado na dúvida sobre se está perante uma criatura singular ou perante uma fraude mais ou menos voluntária. Em "Lord Jim", as páginas finais revelam um Jim indiscutivelmente dotado de força de carácter e bravura fora do comum. Muito pessoalmente, acho este dissipar da tensão pouco satisfatório. Senti-me muito mais fascinado pelo Jim que ocupa sucessivos limbos, arrastando o seu orgulho abjectamente ferido pelos portos do Sudeste asiático, entre a aniquilação e a irrelevância. A sua grandeza possui um brilho secreto quando latente no seu corpo jovem e robusto, adivinhada pela narrativa de um perplexo Marlow.
APELO À APEL: É bem sabido que chove sempre, torrencialmente, por alturas da Feira do Livro. (Quem ignora o encanto de ziguezaguear Parque Eduardo VII acima e abaixo, de banca em banca, confiando na protecção precária de um saco de plástico para preservar a integridade dos opúsculos adquiridos?) Nenhum cidadão esclarecido ignorará, por outro lado, que atravessamos um período de seca, se grave ou extrema pouco importa para o caso. Não é preciso ser-se génio nem guru para atinar com uma solução. Prolonguem a Feira do Livro! Façam-na durar meses, até que os aguaceiros concomitantes encham as albufeiras até ao bordo! É claro que esta seria uma medida ousada, mas os grandes homens da História, como Copérnico, Colombo e Sousa Martins, nada teriam sido sem a vontade de desafiar a tacanhez dos seus contemporâneos.
DISPONÍVEL PARA BLOGAR: Após uma detestavelmente longa hibernação, motivada por interrupção de acesso à Internet e por vasto sortimento de cabalas dirigidas contra mim, este blog regressa ao seu estado normal, a saber, verde, moderadamente prolixo, circunspecto mas opinativo, multifacetado, contras as Coisas Más e a favor das Coisas Boas.

quarta-feira, maio 04, 2005

AI FLORES AI FLORES: No Porto, no dia 1 de Maio, prendem-se florzitas amarelas do lado de fora das portas, para afugentar o demónio. As flores roçam ao de leve os cotovelos de quem passa. Os caules prendem a massa inverosímil dos edifícios aos nevoeiros do Inverno passado. Em cada caixa de correio, um inquieto quinhão de atmosfera. Mas o demónio não existe. Não passa de uma metáfora com olhos raiados.

domingo, maio 01, 2005

APELO ÀS MASSAS: Leiam o 1bsk! O blog que diz o que os outros não dizem, e que não diz o que os outros dizem, excepto quando aquilo que os outros dizem, por merecer ser dito, é dito.
CLARO QUE NÃO PODE DEIXAR DE SER SAUDADA...: ...a decisão da CP de acabar com as carruagens para fumadores nos comboios Alfa Pendular.
IF YOU BUILD IT HE WILL COME: Plantar os respectivos bolbos e regar com regularidade será bastante para que brotem as tulipas (singelas ou não)? Recusemos estas dádivas de simplicidade num mundo eminentemente complexo e intratável, com a mesma obstinação acanhada com que uma criança declina doces ofertados por um estranho.
GRANDE PERDA PARA A HUMANIDADE: Quando este blog regressar ao esplendor d'antanho, não deixaremos de comentar a anunciada retirada de Garry Kasparov do xadrez profissional. Uma notícia que trouxe (ainda que fugazmente) o xadrez aos noticiários generalistas não poderia deixar de ser tratada aqui. Do muito que haveria para dizer, será dito um poucochinho.