quarta-feira, julho 27, 2005

QUASE EM PORTUGUÊS (*): Há dias, na Antena 1, Carlos Magno disse, a propósito das (previsíveis) candidaturas de Cavaco Silva e Mário Soares às presidenciais, que "quase tudo já foi dito, mas está ainda quase tudo por dizer". Terá sido Carlos Magno quem escreveu, na contracapa do romance "Aparição" (editorial Verbo, colecção Livros RTP, 1971), que "(...)Vergílio Ferreira é um escritor possuído da mais funda problemática frente à existência"? Eu gostaria de ser um blogger possuído de uma funda problemática, ainda que essa problemática não fosse a mais funda. À falta de tão crucial requisito, restam-me os bolos de arroz, as conspirações urbanas e os gatos perdidos, ainda por cima fictícios. (*) Com piscadela de olho a este blog, e pedidos de desculpa pelo abuso.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na linha verde do metropolitano, uma jovem lia "Murphy", a tradução portuguesa do romance de Samuel Beckett, editada pela Assírio & Alvim. Em tempos, desenvolvi uma obsessão duradoura por esta obra (como, aliás, por dois em cada três dos textos em prosa de Beckett). Oh, linha verde, linha verde, que nobilíssimas janelas sobre os hábitos de leitura quotidiana dos portugueses e portuguesas nos escancararás ainda?! Que formosos avistamentos, que empolgantes testemunhos de devoção e hábito literário nos desvendarás neste futuro próximo, ao longo do teu nada sinuoso percurso que liga Telheiras ao Cais do Sodré, com passagem por Campo Grande, Alvalade, Roma, Areeiro, Alameda, Arroios, Anjos, Intendente, Martim Moniz (ex-Socorro), Rossio e Baixa-Chiado?

segunda-feira, julho 25, 2005

...UMA COISA AZUL:

(Marc Chagall, "A Criação do Homem")

VERSOS PORQUE SIM: Anniversaries Day by nomadic day Our anniversaries go by, Dates anchored in an inner sky, To utmost ground, interior clay. It was September blue When I walked with you first, my love, In Roukenglen and Kelvingrove, Inchinnan's beech-wood avenue. That day will still exist Long after I have joined you where Rings radiate the dusty air And bangles bind each powdered wrist. Here comes that day again. What shall I do? Instruct me, dear, Longanimous encourager, Sweet soul in the athletic rain And wife now to the weather. (Douglas Dunn)

domingo, julho 24, 2005

PARA QUANDO UMA REPÚBLICA?: Espanha, Bélgica, Holanda, Massachusetts e Canadá (por ordem de proximidade geográfica) são os estados que já enquadraram legalmente as uniões entre indivíduos do mesmo sexo, e resta aguardar que o efeito dominó se estenda rapidamente às restantes sociedades democráticas (e às não democráticas também, obviamente, se bem que as esperanças sejam exíguas). Porém, surge uma questão: Espanha, Bélgica e Holanda são monarquias; o Massachusetts é um estado federado dos E.U.A.; o Canadá é uma monarquia constitucional, chefiada, no papel, e por uma dessas bizarrias que desafiam a compreensão, pela rainha de Inglaterra Isabel II, pela graça de Deus etcaetera e tal. Quanto mais será preciso esperar para que uma república soberana siga o bom exemplo destas nações, e adopte legislação no sentido de respeitar este imperativo social? De países como a Irlanda (onde a Igreja Católica assume, historicamente, um peso esmagador) e da Itália (dirigida por Berlusconi, que já de si não é flor que se cheire, e que se vê obrigado a pactuar com a xenófoba e ultramontana Liga Norte, de Bossi, Buttiglione e seus sequazes), pouco há a esperar. Mas a França, a Alemanha, ou as repúblicas progressistas do norte da Europa (Islândia e Finlândia) parecem-me candidatos mais naturais. Enquanto a História não segue o seu curso, para desgosto de muitos, deixo-vos com a bandeira do Massachusetts, castiça como poucas, à laia de ilustração. (Retirada daqui.)
TRIO DE COISAS BOAS: «Fomos até ao Conde Redondo, entrámos numa leitaria qualquer, e eu paguei-lhe um copo de cacau e um bolo de arroz.» (José Rodrigues Miguéis, in "Uma Carreira Cortada", extraído do livro "Léah e outras histórias", Editorial Estampa, 1997.) Três coisas boas numa só frase, a saber: 1) O Conde Redondo; 2) Um copo de cacau; 3) Um bolo de arroz. Os pontos 2) e 3) dispensam explicações, parece-me. A Rua do Conde Redondo é uma artéria lisboeta muito do meu grado, por diversas razões. Pela sua natureza íngreme (sem exageros à la Barata Salgueiro), pelo carácter nem excessivamente cosmopolita nem declaradamente popular, e por me parecer um cenário apropriado para instalar estabelecimentos de comércio e serviços cujos assalariados são aliciados por sinistros indivíduos, em nome de organizações clandestinas de poder desmedido, que laboram na sombra para minar a sociedade civil tal como a conhecemos.

quarta-feira, julho 20, 2005

TRÊS PALAVRINHAS APENAS: Adeus, Quartzo. Obrigado. (Resolvi passar a ser sintético aquando da morte dos blogs que eram importantes para mim. O risco de derramar as minhas reservas de cabotinismo sentimentalão justificaria um alerta vermelho.)
PICTÓRICO: Uma paisagem marítima de mestre holandês, de tons sombrios e vociferantes. Raiva por não existir um equivalente verbal para esse mar cor de cinza, gratuitamente feroz. (Angústia, se existisse.)
OS DIAMANTES SÃO ETERNOS: «(...)This Jack, joke, poor potsherd, patch, matchwood» (Gerard Manley Hopkins, "That Nature is a Heraclitean Fire and of the comfort of the Resurrection") Por vezes, aquilo que se resgata a uma vida que soçobrou, e que se julga digno de ser submetido ao escrutínio dos humanos, merece mais desprezo do que a sua própria caricatura, do que a sua eventual repetição em comédia buffa. Não escondas, aniquila; não cales, renega-te; não abdiques, muda-te em sombra.

segunda-feira, julho 18, 2005

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Aqui há dias, na linha verde do metropolitano, avistei uma jovem que lia uma biografia de Gamal Abdel Nasser, escrita em língua inglesa. Por vezes, os guardiões da verosimilhança descuram a sua vigilância por uns momentos, e o resultado está à vista.
BLOGS ON A HOT TIN ROOF: O Nocturno com Gatos é um blog sobre diversíssimas coisas, com epígrafe de Salvatore Quasimodo, e abundância de motivos de interesse. A Arca da Jade é um blog sobre gatos, como o nome não indica, como o denunciam as deliciosas imagens de homenagem à espécie felina. Confusos? Não há motivo para tal. Vão lá e leiam.
GANHE VOCÊ TAMBÉM: Eu vou mudar todas as minhas poupanças, aplicações financeiras e cabedais vários para o BPI. Um banco que logra convencer o Mourinho a barbear-se merece-me total e cega confiança. Pouco me interessam taxas de juro e demais detalhes mesquinhos. Os operadores de milagres estão acima de tais chafurdices. A fé não se explica.

quinta-feira, julho 14, 2005

Vermalung (Grau), 1975
«Também a cor, qualquer que tenha sido a escolha, é para Richter apenas um material, um tipo de ferramenta, que permite à realidade - e só a ela - tornar-se quadro. Não obstante, o cinzento tem um lugar especial no conjunto da sua obra; não só de uma perspectiva histórica, evolucionista, não só quantitativa, como também e especialmente qualitativa, porque já contém em si mesma, enquanto "cor" ou mesmo "não-cor", algo da indiferença que Richter pretende e espera alcançar.» (Johannes Cladders, a propósito de Gerhard Richter, 1975)
LEITURAS: Na página 84 do romance "Pode um desejo imenso", de Frederico Lourenço, lê-se o seguinte: «A quarta década da sua vida não estava a começar mal.» Como a personagem a que se refere a frase (Nuno Galvão, professor, especialista em Camões e melómano) acaba de cumprir 40 anos, existe aqui um erro óbvio: é a quinta década da sua vida que ele enceta, e não a quarta. Mas como criticar tais picuinhices num livro que, ao fim de uma mancheia de páginas, nos brindou com termos como "charlusianismo" e "itifálico"?
A LIBERDADE GUIANDO O POVO: Porque acredito convictamente em valores que a Revolução Francesa ajudou a veicular (Liberdade, Igualdade e Fraternidade, igualmente importantes, complementares entre si, valores basilares de qualquer sociedade decente, hoje como em 1789); porque este dia simboliza a França, o país com o qual sinto maiores afinidades (como alguns leitores já terão percebido); porque é precisa uma pantagruélica dose de fantasia e engenharia argumentativa para negar que, durante muitas décadas, nomeadamente no século XIX, a Revolução foi o farol de milhares de homens e mulheres que pugnaram pela liberdade contra a tirania, pela constituição contra a arbitrariedade dos estados, pela emancipação intelectual contra a censura; porque não partilho do cepticismo de um Georges Brassens ("Mourir pour des idées, l'idée est excellente/Moi j'ai failli mourir de ne l'avoir pas eu/Car tous ceux qui l'avaient, multitude accablante/En hurlant à la mort me sont tombés dessus"), uma vez que são as ideias, por vezes, que engendram a felicidade dos povos, se bem que nem sempre pelo caminho mais directo; o 14 de Julho será sempre um dia muito especial para mim.

terça-feira, julho 12, 2005

A MORTE DE UM ESCRITOR: Fiquei contente por deparar com esta evocação justíssima do romancista francês Claude Simon, recentemente falecido. Recordo, dos romances que dele li (há já um rorzito de anos), uma prosa complexa e densa, convoluída pelo peso da história, moderadamente obcecada pelo tempo mas não subjugada à ilusória linearidade deste. Estranhei sempre que o prémio Nobel lhe tivesse sido atribuído, em vez de, por exemplo, Alain Robbe-Grillet ou Nathalie Sarraute, escolhas que teriam sido mais óbvias e, atrevo-me a alvitrar, mais populares. Talvez isso se tenha devido ao facto de Simon introduzir de forma mais explícita o elemento humano na sua obra. Conto-me entre aqueles que pensam que a ficção contemporânea teria ainda muito a aprender com o nouveau roman. (NOTA: Stendhal era outro que se (auto?)definia como escritor sem imaginação. Os seus enredos eram, na maioria dos casos, decalcados de episódios verídicos e faits-divers. A fronteira entre a crónica e a ficção esbatida, e redesenhada com o ímpeto de quem ama e odeia com igual intensidade.)
SE SEI PORQUE É QUE PERGUNTO?: Há quem fantasie com a possibilidade de, um dia, dirigir uma pergunta a Deus. Que teria de ser uma Pergunta para acabar com todas as perguntas, pois a solenidade da situação não se compadeceria com interpelações mesquinhas. Mais modesto nos meus propósitos, escassamente interessado em tais banquetes de transcendência, eu contentar-me-ia em dirigir uma pergunta a Vasco Pulido Valente. E a pergunta seria a seguinte: «Existe debaixo do Sol, ou mesmo em paragens mais longínquas da galáxia, alguma coisa, seja personalidade pública, instituição, esforço ou ideia, que mereça um bocadinho mais do que o cepticismo agoirento, o descrédito e o azedume misantrópico que o Sr. imprime sistematicamente às suas crónicas?»
VERSOS PORQUE SIM: A TIGRE AUSÊNCIA pro patre et matre Ai que a Tigre a Tigre Ausência, ó amados, devorou tudo deste rosto voltado para vós! A boca apenas pura reza-vos ainda: para que rezeis ainda a fim que a Tigre a Tigre Ausência, ó amados, não devore boca e oração... (Cristina Campo, in "O Passo do Adeus", Tradução de José Tolentino Mendonça)
CONFESSIONALIDADE (2): Uma confissão encenada requer candeias, uma de cada lado da cabeça, e empunhadas pelo próprio. O âmago é descerrado durante um polido momento de silêncio. Como num poema de Cristina Campo, receia-se que a própria boca que revela seja devorada por uma temível ausência de felino selvagem.

segunda-feira, julho 11, 2005

OFERTA E PROCURA: Vi a edição holandesa da revista "Men's Health" à venda na Praça da Liberdade, Porto.

quinta-feira, julho 07, 2005

(Gerhard Richter, "Três irmãs", 1965) «A vida é-nos mediada como convenção, como jogo e norma social. As fotografias são representações breves desta mediação tal como os quadros que eu pinto com base nas fotografias. Por terem sido pintados, deixam de relatar determinada situação e a representação torna-se absurda. Enquanto imagem, têm outro significado, outras informações.» (G.R.)
VERSOS PORQUE, EM LONDRES...: Um poema sobre Londres. A arte, a decência e a dignidade contra o fanatismo obscurantista do terrorismo. Convido os outros bloggers a fazerem o mesmo. Composed upon Westminster Bridge Earth has not anything to show more fair: Dull would he be of soul who could pass by A sight so touching in its majesty: This City now doth like a garment wear The beauty of the morning: silent, bare, Ships, towers, domes, theatres, and temples lie Open unto the fields and to the sky; All bright and glittering in the smokeless air. Never did sun more beautifully steep In his first splendour valley, rock or hill; Ne'er saw I, never felt, a calm so deep! The river glideth at his own sweet will: Dear God! the very houses seem asleep; And all that mighty heart is lying still! (William Wordsworth, 1802)
A LER: O artigo do Ricardo sobre o "politicamente correcto".
QUE É FEITO DO MEU MOMENTO ZEN?: Passei sem momento zen na segunda-feira passada, pois a crónica do Prof. João César das Neves não foi colocada online no "DN" (ou, pelo menos, não no sítio habitual). Felizmente, tive acesso à edição em papel, e pude constatar que a produção nevesiana desta semana versou sobre economia, e não sobre os temas fracturantes da sociedade que tão caros são ao seu temperamento. Quando JCN discorre sobre economia, por vezes dou por mim a concordar com os seus pontos de vista. É em situações como esta que se perdoa a um homem um arrepiozito de inquietação.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Um cavalheiro lia "O Céu que Nos Protege", de Paul Bowles. Na linha verde do metropolitano. Uma senhora, esta na linha vermelha, lia "Abóboras em Flor", de Dragoslav Mihajlovic, na edição da Cavalo de Ferro. Ambos sentados. Nada de versão original. Nada de lágrimas de êxtase estético brotando dos respectivos ductos. Nenhum ponto de bónus. (NOTA: Não sei como se insere o c com acento em "Mihajlovic", paciência.)
A RAIVA DA EXPRESSÃO (*): Continua a ser verdade intocável que este blog está fundado no ódio e no ressentimento. Isto é o caso agora como o foi antes e o será. Também e sobretudo quando a prosa é feita de tépidas palavras-madrepérola. Tão bonitas! (*) Francis Ponge

quarta-feira, julho 06, 2005

CONFESSIONALIDADE: A ideia de uma confessionalidade assumidamente construída, ficcionalizada, devendo menos à experiência pessoal do que à idealização do modo como a esfera privada pode verter para a esfera pública, atrai-me sobremaneira. Mais do que atrair-me, sinto-a como fulcral, sem ser capaz de explicar qual o jogo de forças implicado por esse fulcro. Posso pensar nas coisas do seguinte modo: muitos dos meus blogs preferidos são caracterizados por uma componente ficcional muito marcada. Sucede-me não conseguir evitar (é humano) interrogar-me sobre a natureza verídica dos episódios relatados ou aludidos. O mais frequente, porém, é desvalorizar essa questão, admitindo, até ordem em contrário, estar perante uma ficção, ou um processo de ficcionalização da realidade, mais ou menos elaborado, e marcado pela perpétua obrigação de se reinventar quotidianamente. Mas, afinal de contas, quem será mais perverso: aquele que apregoa aos quatro ventos as misérias da sua existência, ou aquele que, avançando mascarado, encena os mecanismos da confissão, como um médico legista que fizesse a autópsia simultânea de todos os episódios de infelicidade na história do Mundo, passados e por ocorrer? Estas questões são pertinentes e dignas de atenção, mas provavelmente acessórias para a felicidade humana. Ninguém pode ser recriminado por deixá-las de lado, quando as preocupações diárias, o corpo ou o clima fornecem chamamentos mais urgentes. Triste folhita seca do Parc Monceau, o teu destino é voltejar sem interrupção, desfasada do ciclo das estações, assim como o meu é o de olhar nos olhos a pessoa que copia quadros de mestres quinhentistas no Louvre, antes que o museu feche. Mas não para lhe dizer alguma coisa, não para lhe falar. Traços insubmissos no papel, garrafa de água dentro da mochila de pano.

terça-feira, julho 05, 2005

SEPARADOS À NASCENÇA?: Têm surgido numerosas especulações sobre a possibilidade de Mahmoud Ahmanidejad, recentemente eleito presidente do Irão, ter tomado parte activa no episódio dos reféns da embaixada dos EUA em Teerão, em 1979. Pessoalmente, as minhas suspeitas são outras. Desconfio que Ahmanidejad se fez passar, algures no fim dos anos 80, pelo realizador Mohsen Makhmalbaf, um embuste que foi imortalizado graças ao filme "Close Up", de Abbas Kiarostami: Verifique o leitor as incontestáveis semelhanças fisionómicas. Depois de ter enganado uma respeitável família, estará o senhor Sabzian agora a enganar toda uma nação?

segunda-feira, julho 04, 2005

CINEMA: "Adriana", de Margarida Gil. As minhas expectativas para este filme não eram muito favoráveis, tendo em conta o único filme da autora que eu conhecia ("Rosa Negra"), que me parecera, na altura, uma obra algo desequilibrada, e um exemplo eloquente de uma realização incapaz de gerir todos os temas que a ambição do argumento fazia irromper em cena. Algumas críticas, lidas a propósito deste seu novo filme, tinham-me levado a recear que Margarida Gil tivesse reincidido nessa falta. Porém, acabei sendo agradavelmente surpreendido. "Adriana" parte de um pressuposto cuja inverosimilhança gritante não deixou de ser apontada por todas as críticas negativas: o patriarca de uma ilha açoriana que, desesperado pela morte da mulher, decreta o fim das fornicações e nascimentos no território. É nesta fase inicial que o filme ameaça seriamente soçobrar sob o peso de uma grotesca improbabilidade que se pressente deliberada, mas cujo freio chega a parecer estar irremediavelmente preso aos dentes de um ridículo galopante. A chegada da jovem Adriana a Lisboa (em busca de "constituir família por métodos naturais") faz, por seu lado, temer um clima de romance de iniciação aos vícios e iniquidades da Grande Cidade (o roubo no aeroporto, o deambular nocturno pelas ruas hostis...) Contudo, rapidamente o filme encontra o seu registo, que não mais abandona. Descrever esse mesmo registo não é tarefa das mais simples. Dir-se-ia um bildungsroman em que as diferentes etapas tivessem sido baralhadas aleatoriamente, em vez de seguir a linearidade consagrada pelos cânones: é inegável que Adriana se encontra mais experiente no fim da sua odisseia por terras do continente, mas o "drôle de chemin" que a conduziu a esse estado é tortuoso, demasiado tortuoso. E para isso muito contribuem as personagens que se vão atravessando no seu caminho: nenhuma delas contraria abertamente a ideia fixa da rapariga insular, mas tão pouco alguma delas se esforça demasiado para a colocar no bom caminho. Em vez disso, arrastam-na para situações de um absurdo vagamente surrealista (a actuação do imitador de Amália Rodrigues, o ferimento provocado pela seta da estátua de São Sebastião). Tais derivas podem aparecer como entraves ao ritmo natural da narrativa, mas fazem parte da própria respiração do filme. Criticá-las como inconsequentes é tanto menos razoável quanto Margarida Gil revela notável talento para transformar essas ramificações colaterais da narrativa em gloriosas vinhetas, plenas de humor e candura visual, para o que muito contribui a presença, frágil mas voluntariosa, de Ana Moreira. Uma das coisas que mais aprecio quando vou ao cinema é o momento (raro, e por isso mais digno de apreço) em que um filme, que parecia destinado a ser alguma coisa de identificável, cotejável, classificável, se revela subitamente como ele próprio, único e serenamente orgulhoso disso. "Adriana" respeita suficientemente os seus espectadores para lhes reclamar tempo para criar o seu próprio espaço, o seu ritmo e a sua maneira, por vezes algo bizarra ou improvável. E, se o faz com sucesso, deve-o em muito aos diálogos (tanto mais conseguidos, parece-me, quanto menos "cinematográficos" são), onde se detecta a mão de Maria Velho da Costa. Mas o principal mérito deve recair inteirinho em Margarida Gil, que nos oferece razões para desejarmos que as oportunidades para levar avante os seus projectos continuem a surgir-lhe.
GRAVIDEZ MISTERIOSA NA BARATA SALGUEIRO: 1) Kleist. 2) Rohmer. 3) Um dos filmes preferidos de Peter Greenaway. Sobejam as razões para ir ver o filme "A Marquesa de O...", amanhã, terça-feira, às 19h, na Cinemateca. Na avenida Barata Salgueiro, onde os sonhos se transformam em realidade. Estações de metro mais próximas: Marquês de Pombal e Avenida. Este filme está integrado no ciclo "Ficções de Filmes", em colaboração com a revista "Ficções", e repete no próximo dia 12.
Gerhard Richter, "Pintura Abstracta" (1990)
«Existe a fotografia, capaz de representar tudo melhor, existe a história da arte, que já há muito revelou tudo, e existem os novos media, o vídeo, a performance, etc., capazes de exprimir tudo de um modo muito mais actual. Por outro lado, existe a vontade - em si mesma uma prova da necessidade da pintura. Todas as crianças pintam de livre vontade. A pintura tem um futuro radioso pela frente. Não acha?» (G.R.)

domingo, julho 03, 2005

DA INDIGNAÇÃO: Não tenho por hábito insultar pessoas que não conheço, mas, por vezes, perante certas cretinices de calibre invulgarmente graúdo, é a custo que mantenho fechados os cordões do meu saco dos impropérios. No "Público" de sábado, o crítico David Lopes Ramos escreve, num artigo relativo a uma viagem à região vinícola de Bordéus: «Como se sabe, e se comprova a cada passo, a simpatia é uma qualidade pouco francesa.». "Como se sabe"? Quem é que sabe? A humanidade em geral? O leitor médio do "Público"? Ou todos aqueles cuja experiência em primeira mão da suposta antipatia francesa se limitou a um empregado de café contrariado por ter de trocar uma nota de 50 euros para pagar uma água Perrier, ou a um polícia interrogado em mau francês ou inglês sofrível sobre o caminho para a Notre-Dame? Vivi durante mais de 3 anos em Paris. Não reivindico, por isso, autoridade especial para me pronunciar sobre o carácter mais ou menos rebarbativo do povo francês. Mas talvez ouse pensar que o meu parecer, nesta matéria, não seja completamente destituído de relevância ou fundamento. Só raramente passei por experiências de acentuada falta de simpatia ou polidez por parte dos nativos. E não só discordo de que a simpatia seja uma qualidade pouco francesa, como me parece estar o forasteiro menos exposto a uma resposta desabrida ou a uma manifestação de rudeza em Paris do que em Londres ou Nova York, por exemplo. (Ou Lisboa, bem entendido.) O que me revolta é a ligeireza de caganita de pombo com que certos plumitivos debitam e ajudam a consolidar estes horrendos memes, com a negligente convicção de estarem a fazer eco de verdades tão universalmente reconhecidas como o carácter elíptico da órbita terrestre. A história da discórdia e da desconfiança mútua entre povos também é feita disto: preconceitos mesquinhos, que reflectem muito mais a pequenez e imbecilidade daqueles que lhes dão periodicamente alento do que qualquer remoto fundo de verdade.
NOVE OU DEZ?: No "Público" do passado sábado, um dos artigos tem por título "10 números para explicar porque é preciso ajudar África". Contudo, os números apresentados são apenas nove. A não ser que o próprio número "10" faça parte da conta dos números que explicam porque é preciso ajudar África. O raciocínio seguido pode ter sido este: o facto de bastarem 10 números para explicar porque é preciso ajudar África é também, por si só, uma justificação para a necessidade de ajudar África. Mas nem por isso os números deixam de ser apenas nove...
ADDING INSULT TO INJURY: Maria José Costa Félix reincide na sua coluna "Outra Porta", na "Xis" desta semana. Mostrando-se briosa adepta daquele princípio que, em inglês, se enuncia como "to add insult to injury" (juntar ao dano o insulto, neste caso insulto à inteligência do leitor), MJCF volta a falar das essências florais de Bach, e de outras charlatanices envolvendo gemas, cristais e cogumelos. MJCF tem razão: uma só crónica não esgota este assunto. A quantidade de resmas A4 que se podem cobrir com este assunto é à medida da credulidade humana, que, como sabemos, é imensa e desprovida de limites. «As doenças físicas reflectem falhas ou alterações ao nível do nosso corpo anímico, através do qual estamos ligados ao cosmos. E é a esse nível que as essências florais actuam. Não o fazem directamente ao nível do físico, mas transmitem-nos uma vibração que, sendo harmoniosa, tem capacidade para corrigir algo que, em nós, esteja perturbado.» Assim começa o artigo desta semana. Mais grave e nefasto do que afirmações manifestamente falsas ou absurdas, só asserções deste jaez, que, devido à indefinição e carácter vago dos conceitos empregues, se esquivam a qualquer tentativa de lhes atribuir valor lógico ou plausibilidade. Mais condenáveis ainda são quando, como é o caso, tanto pelo vocabulário como pelo assunto tratado, se tentam revestir de uma aparência de respeitabilidade científica, que o seu autor não hesita em usurpar. Lendo a badana de um livro recentemente publicado, da autoria de MJCF, fiquei a saber duas coisas: que a senhora foi astróloga, e que foi por duas vezes secretária de estado. Duas condições que - assim o imporiam o bom senso e a ordem natural das coisas - deveriam ser rigorosamente incompatíveis. Neste seu avatar de propagandista das curas naturais e da auto-ajuda "new age", MJCF tem menos possibilidades de causar dano do que num governo constitucional. Valha-nos ao menos isso.

sexta-feira, julho 01, 2005

ANÚNCIOS DE GATO PERDIDO INVENTADOS (11):
Perdeu-se lindo gato,
ou, melhor dizendo,
perdeu-se (o autor destas linhas)
da própria essência de gato que prevalecia para além
da felpuda diversidade de raças,
temperamentos
e fisionomias felinas.
Perdeu-se (perdi)
aquela consciência universal do que é
"UM GATO",
o animal que Adão nomeou com sagacidade
inspirada por Javé,
aquilo, enfim,
que nos une na inamovível certeza
de que um gato é bicho meigo e mamífero,
e que um gato não acasala com okapis nem
pesca à linha.
Perdeu-se o conceito de gato que me prestava
serena e fiel companhia em húmidas tardes
de Novembro com migalhas de biscoito de canela
presas ao pêlo.
Resta-nos a tirania do acidente felino, do bravio e
indomável gato individual.
Esgueira-se por becos, prefere a sombra à luz.
Acaba neste momento de evitar uma motorizada que galgou
o passeio,
na zona das Janelas Verdes.
VERSOS PORQUE SIM: CAFÉ DO MOLHE Perguntavas-me (ou talvez não tenhas sido tu, mas só a ti naquele tempo eu ouvia) porquê a poesia, e não outra coisa qualquer: a filosofia, o futebol, alguma mulher? Eu não sabia que a resposta estava numa certa estrofe de um certo poema de Frei Luis de Léon que Poe (acho que era Poe) conhecia de cor, em castelhano e tudo. Porém se o soubesse de pouco me teria então servido, ou de nada. Porque estavas inclinada de um modo tão perfeito sobre a mesa e o meu coração batia tão infundadamente no teu peito sob a tua blusa acesa que tudo o que soubesse não o saberia. Hoje sei: escrevo contra aquilo de que me lembro, essa tarde parada, por exemplo. (Manuel António Pina, in "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança", Assírio & Alvim, 1999)