quinta-feira, agosto 31, 2006

EU GOSTO É DO VERÃO: A escuta de conversas alheias, a conspiração com o fim de incriminar alguém, o coma clínico (quando atinge uma personagem na posse de informação importante), são esquemas velhos como o mundo de fazer avançar uma narrativa. Nos "Morangos com Açúcar" todos eles são usados, por vezes abusados até à saciedade (e para lá dela). É espantoso constatar até que ponto esta telenovela assenta nos meandros, desvios, transvios, bifurcações e interrupções do fluxo de informação. Quase toda a acção é consequência de falta de informação (por exemplo, a Matilde só voltou a andar com o Tiago quando soube, ao fim de muito tempo, que ele lhe tinha feito companhia no hospital), informação mal interpretada, omissões, ou informação maliciosamente transmitida e deturpada. Cheguei a ambicionar redigir uma análise global dos "Morangos com Açúcar" que se cingisse a estas relações de emissão, transmissão e recepção de informação (com alguns elementos de teoria de grafos pescados aqui e ali para dar seriedade à coisa), e que fizesse jus a uma verdade que me parece inegável: nos "Morangos", nenhuma personagem existe por si só. O estatuto de personagem depende do estabelecimento de relações, e este absorve a totalidade da energia narrativa da telenovela (com excepção de alguns episódios irrelevantes do foro criminal, como o incêndio do colégio). Claro que se pode argumentar que isto é válido para todas as telenovelas. Ainda assim, penso que esta tendência é (e não sem uma certa honestidade e limpeza de meios) levada a um extremo raro nos "Morangos". No entanto, cedo percebi que esta tarefa excedia as minhas capacidades e o tempo que eu para ela poderia disponibilizar. A propósito, no site da Fnac grafam o título do CD "Moranguice". Está mal. Deve ser "MorangIce", com o "Ice" pronunciado à inglesa.
BIODIVERSIDADE E POESIA: O que faz com que um animal seja considerado "nobre" e outro "menos nobre", "vil" ou "risível"? Ou, para colocar a questão num contexto literário: o que faz com que certos membros de pleno direito do reino animal sejam toleráveis no título de um livro de poesia, ao passo que outros levariam ao descrédito ou à chacota? "Águia", "tigre", "cavalo", são nomes que não destoariam na capa de uma recolha de poeta consagrado. "Cão", "urso" ou "mosca" dariam azo a algum erguer de sobrancelhas, mas pouco mais do que isso. Nada que conspurcasse uma reputação. "Peixe" seria aceitável, enquanto designação genérica, mas não uma espécie em particular ("robalo", "taínha", "goraz"). Nas aves, a situação permite certamente mais ampla margem de manobra: "tordo", "pombo", ou até um castiço "tetraz" teriam certamente o seu lugar nesse hipotético título de hipotético autor. "Pardal" ficaria a matar num volume de poesia urbana ligeira, sem pretensões a uma mais profunda penetração artística. Não há, porém, que ocultar a verdade: "canguru", "alforreca", "piolho", "hipopótamo" ou "ouriço-cacheiro" não têm direito de cidade no nome de uma obra literária em verso de grande fôlego. E seria ingénuo pensar que se trata de uma simples questão de cacofonia. Existe algo de mais profundo, de inexpelivelmente arreigado, que nega a certas espécies o direito a uma nobreza compatível com as belas letras. E eu julgo que ficamos todos a perder com isso.

segunda-feira, agosto 28, 2006

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Hoje, na Patagónia, linha verde do metropolitano, um jovem sacou de um exemplar do livro de Bruce Chatwin, "Em Telheiras", e começou a ler com expressão atentíssima.
TRADUÇÃO: Na antologia de Montale da Assírio & Alvim, José Manuel de Vasconcelos traduz «non sapevi un'acca/di portoghese» por «não sabia patavina/de português». "Sapevi" é a segunda pessoa do singular. Custa-me a perceber de onde vem este "sabia". No poema também se fala de um cálice de Madeira com acompanhamento de lagostins.

sábado, agosto 26, 2006

MAIS TÍTULOS: Agora sim, com reticências. "Cry-Baby", filme de John Waters (1990), em português ficou "Quem não chora, não... ama". Valha-nos o Dr. Sousa Martins.
A VINGANÇA DE PLUTÃO: Eurico de Barros igual a si próprio, mesmo quando discorre sobre temas periféricos ("DN", 25/8): «Tirando os desenhos animados de Pluto propriamente dito, e uma monumentalmente má comédia de ficção científica com Eddie Murphy chamada Pluto Nash (que ainda por cima se passa na Lua), o nome do ex-planeta de primeira categoria figura no título de um recente filme de Neil Jordan, Breakfast on Pluto, que conta a história de um travesti irlandês cantor de cabaré. Desculpem-me lá ser politicamente incorrecto, mas é só um degrau abaixo de planeta-anão.» Proponho que, aproveitando o balanço, se despromova Eurico de Barros de crítico de cinema para "escriba especializado na indústria do audiovisual e pródigo em larachas".
GARREL: Não diria que gosto de tudo o que Philippe Garrel faz. Mas nunca me sucedeu sair decepcionado de um filme deste realizador. E acho-o um soberbo exemplo de um dos aspectos mais notáveis do cinema francês: a possibilidade de um autor que cultiva uma estética marginal seguir o seu percurso pessoalíssimo, ao longo das décadas, sem perder o contacto com a distribuição no circuito de salas nem com a imprensa convencional. (Não é fácil eleger o meu filme preferido de Garrel, mas é bem possível que a escolha recaísse sobre um dos mais recentes: "Le Vent de la Nuit". Escolha para a qual a assombrosa banda sonora de John Cale não é factor inócuo.) E a propósito: "enorme democratização do gosto e do acesso aos bens culturais"? Pode ser. Nalguns casos, a democratização do acesso (deixando de lado a do gosto, cuja natureza se me afigura bem mais discutível) é uma realidade positiva e indesmentível. No caso do cinema, a oferta em salas é o que se sabe (muito restrita em Lisboa e Porto, quase nula no resto do país), e, mesmo tendo em conta a expansão do DVD, a fracção de obras da cinematografia mundial acessível ao consumidor médio é ínfima e pouco representativa.
COLUNA SOCIAL: Os gatos Jasmim e Goneril declaram-se encantados. Tanto mais que a Cleópatra apresenta semelhanças fisionómicas extraordinárias com a Goneril, incluindo a manchita na pata, cinzento malhado sobre branco-branco.

quarta-feira, agosto 23, 2006

JUSTE UNE IMAGE: No suplemento "6ª" do "DN" de dia 18/8, João Lopes, a propósito de Godard, fala da crença ingénua de que a imagem possa funcionar «como revelação aberta, transparente e incontestável de um mundo que, por definição, se exporia de modo igualmente aberto, sem resistências figurativas ou simbólicas». E ainda: «Será que nos servem uma visão do mundo sem nunca, nem por um instante, terem pensado que o estão a fazer?». Se bem que a observação de João Lopes (com a qual estou integralmente de acordo) se dirija mais explicitamente aos telejornais, não me parece inoportuno estendê-la ao domínio do cinema e da crítica cinematográfica. Com efeito, se eu tivesse de apontar um único pecado mortal à crítica de cinema em Portugal (e só me refiro a esta, em particular, por ser a que conheço melhor), seria este: falar dos filmes parecendo incapaz de perceber que está a lidar com objectos cinematográficos, com especificidades próprias. Na grande maioria dos casos, o crítico fala de um filme como se falasse de um livro, e a crítica concentra-se no enredo ou no assunto do filme, e em ilações sobre esse enredo ou assunto, complementadas por referências ao desempenho dos actores, notas enciclopédicas sobre a filmografia precedente do realizador, etc. Raras vezes nos é dado ler uma apreciação que diga explicitamente respeito à natureza cinematográfica da obra, e ao modo como o realizador se serviu dos meios e técnicas ao seu dispor para dar corpo à sua intenção artística. Não acredito que se trate de mera incompetência ou desleixo. Quer-me parecer, isso sim, que existe um défice de consciência do modo como a captação de uma imagem, a sua planificação e o seu registo, constituem um gesto artístico, com implicações a variadíssimos níveis, incluindo o ético; um gesto que nunca será inocente, e que só o seria se se pudesse admitir a tal transparência, a possibilidade de trazer ao espectador o mundo exterior de forma totalmente neutra e fiel. Porém, reconheço que certos filmes tornam difícil ao crítico proceder de outro modo. Por serem realizados de forma tão mecânica, estandardizada e/ou desleixada, muitos dos filmes que estreiam entre nós pouco mais justificam ou merecem do que uma referência apressada à "história" (a sacrossanta história...), aos actores, e a uma qualquer anedota de produção. Mas não é desses filmes que falo. "Les Amants Réguliers", de Philippe Garrel, é um excelente exemplo de um filme para o qual toda e qualquer leitura que menospreze a sua natureza última (uma sucessão de imagens em movimento, afinal é isso um filme) será uma leitura traidora e inútil. (E repare-se que isto não significa apoucar a importância do argumento desta ou de outras obras.) Vê-lo reduzido a um "filme sobre o Maio de 68" entristece-me ainda mais do que sucederia no caso de um filme menor. São inúmeros os exemplos de cenas deste filme que seriam irredutíveis a qualquer outro meio que não fosse a imagem em movimento, cenas cujo enquadramento rigoroso (esplendidamente servido pela fotografia do grande William Lubtchansky) não obstam a um empolgante sentido de liberdade. Por vezes, às críticas "chapa 3" dos profissionais do ofício, quase prefiro as que, como esta, pelo menos oferecem uma perspectiva marcadamente pessoal, e até se referem a cenas específicas do filme, com explicação das razões que levaram o autor a gostar, ou não. Claro que discordo de tudo o que nela leio: as estafadíssimas referências à lentidão, não faltando a previsível comparação com Oliveira (como se a lentidão, a demora, a exploração da evolução de uma situação no tempo, não fossem dispositivos tão cheios de virtualidades com quaisquer outros), a acusação de que nada acontece durante a longa cena das barricadas (e como é densa em acontecimentos essa cena!, e fascinante por isso mesmo, desde que se preste um mínimo de atenção, e não se espere que as peripécias saltem do ecrã para cair no colo do espectador, com efeitos sonoros a acompanhar), a alusão a "maneirismos/erros cinematográficos" (quais?), e a suposta banalidade dos amores e dos artistas que povoam o filme (como se a banalidade, e mesmo a mediocridade, não estivessem na origem de grandes obras da literatura e do cinema, como se só o excepcional fosse digno de ser retratado). Termino com uma mensagem subliminar: ide todos ao King ver o filme de Garrel! (E depois ao Porto, quando ele estrear lá.) (Ver ainda este artigo de João Lopes sobre a exposição Godard no Centro Pompidou.)
ADENDA AOS TÍTULOS: Um leitor atento e prezado fez-me notar que cometi uma injustiça para com a classe dos tradutores, pela qual peço desculpa. Ao que parece, a tradução do título original de um filme é uma decisão das distribuidoras, e, regra geral, integra-se numa campanha de marketing destinada a vender o produto (daí, suponho, o uso e abuso de termos como "fatal", "mortal", "diabólico" e "paixão"). Os tradutores profissionais não são tidos nem achados. Colocados os pontos nos is, deixo mais dois exemplos de versões portuguesas delirantes de títulos originais. "The Odd Couple", filme de 1968 com Jack Lemmon e Walter Matthau, chamou-se entre nós "Mal por mal, antes com elas" (desconheço se com ou sem reticências, essa muleta predilecta da brejeirice). Quanto ao título português da primeira longa-metragem de Claude Chabrol, sempre foi um mistério para mim. Entre "Le Beau Serge" e "Um Vinho Difícil" a distância não é curta, convenha-se. Tentativa canhestra de contribuir para uma maior consciencialização dos perigos do alcoolismo?
SERIALISMO ONOMÁSTICO: Pela terceira vez consecutiva, nestas férias, tenho entre mãos um livro de um autor cujo apelido é "Carvalho". Depois de Mário de Carvalho ("Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto") e Maria Judite de Carvalho ("Seta Despedida"), é a vez de Bernardo Carvalho ("Teatro"). Não foi de propósito, embora seja o tipo de coisa que eu poderia sentir vontade de fazer de maneira deliberada. (O livro de Bernardo Carvalho não é uma recolha de peças. É um romance que se chama "Teatro".)

segunda-feira, agosto 21, 2006

ANTI-DEMOCRATAS PARA TODOS OS GOSTOS: Na sua última crónica do "Público" (19/8), Helena Matos dá-nos conta da sua incompreensão face a todos aqueles que, ainda que vivendo num regime democrático, se obstinam em tomar "posições contra a democracia", e oferece-nos em seguida uma instrutiva escolha de exemplos. Provavelmente por falta de espaço, Helena Matos não se refere àqueles que têm sido entre nós os paladinos do branqueamento de alguns dos piores atentados contra democracia do último século. Refiro-me por exemplo àqueles que, com Luciano Amaral à cabeça, minimizaram o cariz antidemocrático do 28 de Maio e da sublevação franquista. Ou àqueles que, mais recentemente, apresentaram um retrato retocado e pasteurizado de Marcello Caetano, com profusos elogios ao Homem, ao Pedagogo, ao Jurista, e silêncio oportuno quanto ao detalhe de ele ter sido primeiro-ministro de uma ditadura repressiva. Todas estas posições me parecem compatíveis com o oportuno diagnóstico de Helena Matos. (NOTA da redacção: as maiúsculas em "Homem", "Pedagogo" e "Jurista" são escolhas deliberadas do autor, visando um efeito de ironia. Não entram em conflito com o livro de estilo oficial do 1bsk.)
CORES: «A magenta não é tão hedionda como isso e há outras cores que ligam pior com o verde-alface.» (Mário de Carvalho, "Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto", Caminho, 1995, p.16) Nesta frase, Mário de Carvalho referia-se a um edifício. Sem o saber, logrou inserir numa só frase menção às duas cores fundamentais deste blog: verde-alface e magenta. A primeira acompanha-nos desde sempre. A segunda foi resultado de um acidente de percurso que envolveu um certo filme de Marguerite Duras.

sábado, agosto 19, 2006

DE DIVINA PROPORTIONE (4): Com efeito, eu detectara uma postura, como direi?, um pouquinho lackadaisical, aliás perfeitamente adequada à estação, no seu penúltimo post. Mas não se apoquente: também me parece que este debate (se é que alguma vez chegou a sê-lo) já deu o que tinha a dar. E a sua última intervenção cobre adequadamente os dois aspectos da questão: o pessoal e o colectivo/jurídico.
  1. À minha pergunta ("seria legítimo/aceitável que uma nação respondesse a uma escaramuça de fronteira (acto de guerra) com um bombardeamento maciço (outro acto de guerra) que dizimasse, digamos, 10 % da população da nação agressora?"), respondeu que sim. Registo. Eu acho que não. Tenho para mim que uma discussão entre duas pessoas razoáveis deve idealmente conduzir ou a uma convergência de pontos de vista ou a uma incompatibilidade de princípios insanável. Parece-me verificar-se este último caso. (Quanto ao resto, nomeadamente esse tremendo disparate de eu ver o Hezbollah como "uma organização preocupadíssima com os libaneses, com as mulheres e as crianças", sugiro-lhe que tenha mais cuidado antes de desvirtuar as palavras alheias. A ligeireza estival não justifica tudo.)
  2. Diz que "os crimes de guerra são julgados sempre pelos vencedores e têm muito que se lhe diga". É um argumento que tem pernas para andar. Mas que está longe de ter alcance universal. Para citar apenas um exemplo: antes de morrer, Slobodan Milosevic estava a ser julgado pelo Tribunal Internacional para a Antiga Jugoslávia, um organismo da ONU independente, como é óbvio, de qualquer um dos contendores da guerra dos Balcãs. O que me parece indiscutível é que, contrariando a tese da arbitrariedade e desproporcionalidade intrínsecas da guerra (que repete, como credo pessoal, em vez de a fundamentar), o conceito de crime de guerra tem ganho raízes, nas altas instâncias internacionais assim como na opinião pública. E se isso sucede, é porque há muita gente que não pensa como você (ver ponto 1, supra). E ainda bem, acrescento eu.

Concluído este refrescante intercâmbio de opiniões, despeço-me. Faz-se tarde, e gostaria de acresecentar algumas estrofes à minha cantata em louvor a Che Guevara, antes da hora de jantar.

O SEU A SEU DONO: Anunciam-nos que esta série dos "Morangos com Açúcar" está prestes a acabar. Mas são ainda legião as situações por resolver! A entropia morangal terá ainda de sofrer drástica redução, antes do grande final, sob pena de os fãs ficarem desapontados. Supondo que o expectável se verificará, temos que: o Tiago e a Matilde se reconciliarão, assim como a Susana e o Afonso; o perverso Guga e a sua maquiavélica irmã (cujo nome esqueci) terão de ser punidos; o Crómio e a Daniela voltarão a juntar-se, assim como a Vera e o professor de ginástica (nome?); o Lourenço ficará com uma das gémeas, sendo que a outra está destinada ao rapaz louro cuja graça também não me ocorre; o culpado do incêndio no Colégio será encontrado e punido; no departamento infantil, o Gil ficará com a Diana; e a Catarina levará a melhor sobre a anorexia. Existem, é certo, algumas incógnitas neste cenário. A Becas ficará com o rapaz do cabelo curto que enganou o amigo, ou com o verdadeiro autor dos poemas? E o "Pedro", revelará o terrível segredo do seu sexo (segredo de polichinelo para todos os espíritos razoáveis, mas não para o principal interessado)? Para desatar todos estes nós, cada um mais górdio do que o outro, proponho humildemente um deus ex machina bronzeado, em fato-de-banho Speedo, que desça sobre o areal da praia de Cascais, e ofereça a esta série o desenlace de proporções grandiosas que ela merece!

sexta-feira, agosto 18, 2006

AS MADALENAS ESTÃO NA MODA (2): Aqui vai o primeiro e modesto sobrevoo sobre as escolhas de personalidades famosas em resposta ao famigerado questionário de Proust. Para já, a pintura. Algumas dessas escolhas revelam escassa originalidade. Van Gogh é um dos mais citados (por Claude Allègre, Monica Bellucci, Jean-Claude Brialy, Juliette Gréco e Marina Vlady), assim como Picasso (Claude Allègre, Monica Bellucci, Jean-Claude Brialy, Petula Clark, André Glucksmann e Philippe Sollers). Menos previsíveis são as escolhas de Anouk Aimée (Piero Della Francesca), Yann Arthus-Bertrand (Klein, Kandinsky e Freud, suponho que Lucian, e não Sigmund) Michel Bouquet (Böcklin), Julie Delpy (Francis Bacon e Moreau), Arielle Dombasle (Memling,...

(Nossa Senhora e o menino com dois anjos)

...Cranach, não sei se o velho ou o jovem, Waterhouse e novamente Freud), Dan Franck (Soutine), Bernard Kouchner (Uccello e Cézanne), Eddy Mitchell (Norman Rockwell e um certo "Remington" que presumo tratar-se de Frederic Sackrider Remington). A escolha de Emir Kusturica é, no mínimo, óbvia: Marc Chagall. André Glucksmann e Jean-Claude Carrière denunciam tendências primitivistas, ao citar os pintores das cavernas (Glucksmann especifica "os de Lascaux"). Sylvie Testud, sem particularizar, demonstra preferência pelos fauvistas. Aprecio sobremaneira a referência a Vuillard feita por Philippe Noiret.

(L'Armoire à Linge, c. 1894-95)

A resposta mais desconcertante é a de Petula Clark. A cançonetista, para além do Picasso "de início de carreira", menciona Kandinsky "a meio da carreira" e a sua segunda filha Kate Wolf, que eu não faço a mínima ideia de quem seja. Custou-me verificar que, das respostas que consultei (não foram todas), apenas a actriz Elsa Zylberstein e a cantora lírica Barbara Hendricks referiram Edgar Degas, talvez o meu pintor preferido de todos os tempos.

quinta-feira, agosto 17, 2006

O GATO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: Há que juntar o autor Carlos de Oliveira ao extenso rol de ódios pessoais da gatinha Goneril. Hoje, ela entrou em querela com as obras completas deste autor, manifestando incompreensão por eu preferir um livro à companhia de um felino obviamente adorável e belo. Quanto ao gatinho Jasmim, percebeu o quanto a sétima arte pode ser desconcertante. Perturbado com o som surround do filme de Peter Greenaway "The Belly of an Architect", optou por uma retirada estratégica (e plena de dignidade, reconheça-se) ao fim de 10 minutos. Estes gatos viveriam muito mais felizes na era pré-Gutenberg e pré-Lumière.

quarta-feira, agosto 16, 2006

SINTONIA: Agradeço a demasiado gentil referência que foi feita, no blog O Franco Atirador, ao meu pequeno artigo sobre a exposição de João Queiroz. A maneira como o autor dessa referência transcreve, quase textualmente, as minhas palavras leva-me a concluir que partilha dos pontos de vista que exprimi, o que é encorajador. (Isto embora algo, quiçá um temperamento reservado, o tenha impedido de expor as suas próprias opiniões.)

terça-feira, agosto 15, 2006

TÍTULOS (2): Achei oportuna esta referência à inanidade de muitos títulos portugueses de filmes estrangeiros. Um dos meus exemplos preferidos da leviandade com que muitos tradutores distorcem, estropiam, subvertem, conspurcam e ofendem os títulos das obras originais é "Innocent Blood", filme de vampiros de John Landis, que, em Portugal, foi mimoseado com o inverosímil título "Não Há Pescoço que Aguente". Já "Drowning By Numbers", longa-metragem de Peter Greenaway foi transformado num brejeiro "Maridos à Água", que poderia passar por nome de revista no parque Mayer. Outro dos meus favoritos pessoais é "The Sure Thing", comédia que Rob Reiner realizou antes de alcançar fama com "When Harry Met Sally..." e "Misery". Num rasgo de criatividade a que a História não fez justiça, o tradutor deste filme para a língua do Padre António Vieira saiu-se com o fabuloso "Borracho Choque para Menina Chique". A lista podia prolongar-se indefinidamente. Com o tempo, passei a ligar cada vez menos aos títulos em português, desde que domine minimamente a língua original. Parece-me absurdo que o título que acompanhará para sempre um filme esteja dependente dos caprichos ou do défice de inspiração de um tradutor. Deveria ser designada uma comissão de sábios que, periodicamente, reunisse para corrigir estes dislates.
TÍTULOS (1): Pode-se ou não aderir ao pessoalíssimo universo artístico do realizador Philippe Garrel. Mas desafio seja quem for a apontar uma filmografia com títulos mais belos. Por exemplo:
  • La Cicatrice Intérieure (1970)
  • Les Hautes Solitudes (1974)
  • Un Ange Passe (1975)
  • Le Bleu des Origines (1978)
  • Liberté la Nuit (1983)
  • Elle A Passé Tant d'Heures Sous les Sunlights (1984)
  • Les Baisers de Secours (1989)
  • J'Entends Plus la Guitare (1991)
  • Sauvage Innocence (2001)
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na linha amarela do metropolitano, um jovem lia "Watt", de Samuel Beckett, na edição portuguesa da Assírio & Alvim. Reza a lenda que Beckett escreveu "Watt" para evitar ficar louco, durante os anos em que, no Roussillon, participou nas actividades da Resistência. O lema deste blog consiste, neste momento, numa citação de "Watt", precisamente a sua última frase: "no symbols where none intended". Estaria na altura de o mudar. Mas não há urgência.

sábado, agosto 12, 2006

EURICO, O PRESBITA: Que Eurico de Barros espalhe quotidianamente a vulgaridade da sua prosa e a indigência das suas opiniões pelas páginas de um diário de expansão nacional (falo, obviamente, do "Diário de Notícias"), eis algo a que todos, mal ou bem, nos fomos habituando, ano após ano. Que ele saque do revólver perante qualquer filme que lhe cheire a "autorista", esquerdista, feminista, de alcance sociológico, ou vagamente aparentado com uma qualquer agenda liberal, sem qualquer consideração por critérios cinematográficos, é uma coisa que, embora irritante, faz parte da personagem. Desejar que fosse de outra maneira seria como desejar que o verão não trouxesse consigo os mosquitos. Quando, porém, Eurico de Barros se serve, para descrever o recém-estreado "Les Amants Réguliers", de Philippe Garrel, de termos como "trombudo", "múmia paralítica" e "velharia instantânea", o cidadão honesto não pode deixar de se interrogar sobre a eventual existência de leis contra tão gritante falta de tino e tão clamoroso défice de competência. Como bom presbita que é, Eurico de Barros é incapaz de reconhecer uma obra-prima mesmo que esta lhe passe a vinte centímetros dos olhos. "Les Amants Réguliers" é um grande filme, um drama intimista com uma envergadura emocional empolgante. A meu ver, ninguém como Garrel possui a arte de capturar o instante em que as suas personagens expõem o seu âmago de solidão e fragilidade, numa qualquer encruzilhada do seu destino pessoal. Neste filme, a revolução (Maio de 68) não é um mero pano de fundo ou caução histórica, tão pouco um sorvedouro absoluto de vidas e conversas; é uma matriz que activamente acolhe e segrega as movimentações das personagens, e de que Garrel se serve para explorar aquilo que realmente lhe interessa: o indivíduo, a sua imensa capacidade para sofrer, os seus abismos, aquilo de que ele é capaz para os sobrevoar ou neles se perder.

quinta-feira, agosto 10, 2006

É OFICIAL!: O 1bsk não vai de férias.
DOS LÍQUIDOS: Nos noticiários de hoje, foi por várias vezes referido que os terroristas tencionavam fazer explodir os aviões por meio de "líquidos químicos". Senti vontade de pedir à pessoa de onde partiu a notícia, assim como aos jornalistas que a veicularam, um exemplo de líquido não químico. (Obrigado a Daniel Faria pelo título.)
JOÃO QUEIROZ: Chamo a atenção para a exposição de João Queiroz no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian. A exposição consiste em seis telas de grande dimensão, que se apropriam e, ao mesmo tempo, interrogam o modelo clássico da paisagem. Não é claro se as telas de João Queiroz representam paisagens reais. O que é certo é que o observador não poderá deixar de nelas reconhecer arquétipos, facilmente identificáveis, de paisagens clássicas, directamente saídas da tradição ocidental. Contudo, esses "arquétipos", à base de pinceladas vigorosas e de superfícies claramente delimitadas, contêm detalhes, peculiaridades, acidentes (na dupla acepção que esta palavra admite). Estes pormenores individualizam cada tela, resgatam-na à condição de mero tributo ou evocação. Ao mesmo tempo, representam um pormenor plausível de uma paisagem (escarpa, tufo de vegetação, depressão...) e significam esse mesmo pormenor, conferindo à obra um aspecto duplo de figuração e conceptualização, que se potenciam mutuamente de forma subtil. Num ensaio notável que acompanha a exposição, Jorge Molder escreve: «Mas as paisagens de João Queiroz trazem consigo uma inegável fascinação, embora não saibamos de onde vêm ou mesmo se vêm de um sítio que de facto exista, embora desconheçamos a relação que o artista tem com a natureza e mesmo que a nossa relação com a natureza não seja um aspecto relevante para a visão do mundo com que aí nos deparamos. Elas irradiam esse poder atractivo, mesmo que todos os pressupostos e hipóteses atrás arrolados possam ou não verificar-se.» Chama-se isto pôr o dedo na ferida. Os quadros de João Queiroz provocam uma atracção e sedução poderosas, que não elidem, antes transmitem maior força e acutilância às questões que a abordagem do artista suscita. Dois ingredientes que não podem faltar à grande pintura são: um comprometimento artístico que se traduza num esforço consequente e sério, por um lado, e a exploração das ideias e aporias contemporâneas ao artista. O primeiro aspecto é frequentemente menosprezado por uma arte contemporânea demasiado intoxicada por inebriantes vapores conceptuais. João Queiroz demonstra aqui que a sua arte contém estas duas vertentes. (No Centro de Arte Moderna, até 30 de Setembro.)
DE DIVINA PROPORTIONE (3): A confusão não está do meu lado. Quando o que está em causa é a (des)proporcionalidade no nível de intensidade de uma reacção militar, ou no seu impacto, fala de (des)proporcionalidade em termos do número de tropas. E o exemplo citado (empalação da cabeça de Leónidas), por mais radical e sanguinolento que seja, reflecte uma questão de ofensa à honra, de bravata com alcance psicológico, mas de escassa relevância militar no sentido estrito. Cinjamo-nos ao essencial. A menção ao exemplo das guerras do Peloponeso, que incluí na minha última declaração de amor, destinava-se a mostrar que, nesses tempos recuados, existia já um embrião de decência na guerra. Estou de acordo em que qualquer código de honra bélico que tenha existido foi perdendo significado com o tempo, e hoje em dia não passa de recordação de um tempo em que a guerra era mais uma questão de aristocracia do que de tecnocracia. Porém, esse aspecto é de nula relevância para a presente discussão. A "proporcionalidade" de que falo tem a ver com a codificação, na lei e nos espíritos, da noção, fruto essencialmente do século XX, de que mesmo em guerra, existem práticas aceitáveis e inaceitáveis. Defraudando as minhas esperanças, verifiquei que não esboçou sequer a resposta às duas questões que (julgava eu) resultavam claras do meu post anterior:
  1. Se, como insiste em dizer, a guerra é "em si desproporcionada", seria legítimo/aceitável que uma nação respondesse a uma escaramuça de fronteira (acto de guerra) com um bombardeamento maciço (outro acto de guerra) que dizimasse, digamos, 10 % da população da nação agressora?
  2. E se a guerra é "em si desproporcionada", como se explica que a noção de crime de guerra, em vez de ter caído na obsolescência, esteja hoje mais enraizada do que nunca na opinião pública e na legislação internacional?

Isto, claro, supondo que o objectivo aqui é a argumentação e a contra-argumentação. Caso contrário, sempre nos podemos rir um bocado com chistes sobre piscinas.

quarta-feira, agosto 09, 2006

BLOGS DE CELULÓIDE: Acrescentei dois blogs à coluna dos Favoritos. Dois blogs cinéfilos até à medula, dois blogs excelentes, embora com características bastante diferentes: mais pessoal "As Aranhas", mais à base de ensaios extensos e citações o "Ainda Não Começámos a Pensar". A consumir sem moderação alguma. Para que a estação pateta o seja um bocadinho menos.
LIGAÇÕES: Foi com muita satisfação que li esta referência, no blog Da Literatura, a uma edição portuguesa das "Ligações Perigosas" com co-tradução do meu avô paterno, João Pedro de Andrade. As obras de João Pedro de Andrade têm vindo a ser reeditadas de forma sistemática pela editora Acontecimento.

terça-feira, agosto 08, 2006

PRISÃO PREVENTIVA: No romance "O Salteador", de Robert Walser, existe uma nota de rodapé na página 10 (presumo que da responsabilidade da tradutora, Leopoldina Almeida, que aliás fez um excelente trabalho), a respeito de uma "fortaleza" identificada como sendo o forte de Joux, no departamento do Doubs (França), perto do Jura. Nessa fortaleza ter-se-iam alojado "confortavelmente, por algum tempo, um poeta e um general negro". O general negro seria Toussaint Louverture, e o "poeta" não poderia deixar de ser Heinrich von Kleist. De facto, Kleist esteve detido no forte de Joux, no ano de 1807, numa altura em que tentava entrar numa Berlim ocupada pelos franceses. Consultando o calhamaço sobre a vida e obra de Kleist, da autoria de Roger Ayrault (edições Aubier-Montaigne, 1966), chego à conclusão de que todo o caso se resumiu a suspeitas infundadas e passaportes não reconhecidos. Mais fumo do que fogo, mas foi quanto bastou para que Kleist, assim como os seus dois companheiros de viagem, passassem alguns meses de cativeiro, em condições de conforto deploráveis, pelo menos no início. Kleist atravessava um período de grande criatividade literária, no qual redigiu "A Bilha Quebrada", recriou o "Anfitrião" de Molière, redigiu "O Terramoto no Chile" e o primeiro terço de "Michael Kohlhaas" e encetou a "Pentesileia". O forte de Joux tem uma página web, graças à qual ficamos a saber que Mirabeau se contou também entre o número dos seus hóspedes, muitos anos antes de proferir uma frase inflamada, sobre a vontade do povo e baionetas, que entrou para o folclore da Revolução Francesa.
UMA CIDADE, DOIS MOTIVOS DE INTERESSE: Foi em Biel, na Suíça, que veio ao mundo o escritor Robert Walser, no ano de 1878. É também em Biel, cidade bilingue igualmente conhecida por Bienne, que se realiza anualmente um torneio de xadrez com longa tradição. A edição deste ano foi ganha, pela terceira vez, pelo grande-mestre russo Aleksandr Morozevich, de 29 anos. Morozevich, o actual nº 9 do mundo, seria forte candidato ao título de jogador mais popular, se fosse organizado um plebiscito entre os aficionados de xadrez, devido ao seu estilo agressivo e original. Embora lhe falte ainda conquistar um dos quatro grandes torneios do calendário (Linares, Dortmund, Wijk aan Zee e Sófia) para demonstrar de uma vez por todas que o seu lugar é entre a crème de la crème, Morozevich é sem dúvida um dos mais excitantes jogadores do circuito, e a maneira como se impôs em Biel ajuda a explicar o entusiasmo que suscitam as suas actuações. Em 10 jogos, o grande-mestre russo ganhou 7, perdeu 2 (curiosamente contra o mesmo jogador, o jovem prodígio norueguês Magnus Carlsen), e apenas empatou um, na última ronda, quando estava tudo já decidido. 70% de vitórias num torneio deste nível, e apenas um empate, eis algo que diz muito sobre a maneira de ser de Morozevich, que tão marcadamente contrasta com a de alguns dos seus pares, reis do empate e do tédio. Ver reportagem aqui, e entrevista aqui.

segunda-feira, agosto 07, 2006

DUAS NOTAS RÁPIDAS...: ...sobre as crónicas de hoje dos meus dois cronistas favoritos, Luís Delgado e João César das Neves, essas torres gémeas de lucidez e erudição que partilham os seus ensinamentos com os leitores do "Diário de Notícias" às segundas-feiras. Escreve Luís Delgado: «Também parece claro, e indiscutível, desta vez, que há países que continuam a apostar na destruição da nossa civilização e religião, por todos os meios, mesmo que interpostos.» (Esclareça-se que LD fala da Síria e do Irão.) Quer dizer que a nossa religião é a judaica? Escreve João César das Neves: «Aqui reside o maior mal-entendido da História. O mundo não entende que a grandeza da Igreja, a sua beleza incompreensível, reside precisamente em ser a fonte da misericórdia de Cristo.» Se a beleza é incompreensível, como poderia o mundo entendê-la? Estes folguedos são supremamente agradáveis, mas o tempo é um mestre implacável e duro. E é por isso que tenho o maior prazer em dar por terminado este post, esperando regressar ao vosso convívio amanhã, dia em que falarei do cantão que viu nascer Robert Walser, e da fortaleza onde esteve aprisionado Kleist, durante cerca de um semestre.
DO I CONTRADICT MYSELF?: Este blog, para não ir mais longe, é um autêntico viveiro de contradições, a começar pelo facto de se proclamar francófilo, mau grado ter sido baptizado em honra de um autor (Kleist) que escreveu, após a batalha de Jena: «Precipitai-vos como as vagas de um oceano sobre esses Franceses. Vingai-vos, vingai-vos. Cubram com as suas ossadas as estradas e os caminhos. Dai a sua carne aos animais ferozes, as suas entranhas aos peixes, ou então, com os seus cadáveres amontoados, edificai um dique ao longo do Reno.»
DE DIVINA PROPORTIONE (2): Não era necessário elaborar. O argumento tinha sido percebido à primeira. E o que nele mais estranho é essa noção de que a guerra é "em si desproporcionada". Não é. Há muito tempo que se percebeu que não tinha de ser. Já durante a guerra do Peloponeso se decretavam tréguas para recolher os cadáveres de ambas as partes em conflito. E o nascimento da jus in bello, ou seja o corpo de leis que regulam as práticas aceitáveis no decurso de uma guerra, nem teve de esperar pelas convenções de Genebra. A noção de proporcionalidade na guerra não é mera "poeira hipócrita": existe, tanto no senso comum como nas leis. (Relevante para a questão actual é, por exemplo, a frase seguinte da convenção de Genebra: "Civilians are not to be subject to attack. This includes direct attacks on civilians and indiscriminate attacks against areas in which civilians are present." Claro que o conceito de ataque indiscriminado daria matéria para um nunca-acabar de argumentos e contra-argumentos, nesta era de bombardeamentos cirúrgicos ou quase cirúrgicos.) Sem esta noção, seria considerado legítimo responder a uma escaramuça de fronteira (acto de guerra) com um bombardeamento nuclear maciço das principais cidades inimigas (outro acto de guerra), sugestão que nem os mais falconídeos de entre os falcões ousariam avançar. Acrescente-se que a noção das proporções e a moderação podem ser do máximo interesse da nação agredida, sobretudo numa época, como a nossa, em que qualquer acção militar está sob cerrada observação de uma míriade de organizações e instituições que, ao sabor da complexa teia de interesses diplomáticos, mais rapidamente deixarão o contendor manobrar como entender se este se abstiver de pisar o risco. A ligação com o "turragate" Zidane/Materazzi foi, obviamente, pouco mais do que uma facécia. A integridade do esterno de Marco Materazzi é coisa de ínfima importância perante o drama humano que ocorre no Médio Oriente e perante as vidas libanesas, israelitas e palestinianas perdidas. E um blog não é um corpo axiomático. Não me choca que nele existam afirmações contraditórias, ainda que gritantes e próximas no tempo. Quanto à referência à "extrema-esquerda", não vejo outra maneira de a interpretar senão como um lampejo de clarividência: mesmo depois de um convívio de anos, as minhas tendências cripto-maoístas passam despercebidas a muitos. Topar com elas em tão pouco tempo, e a partir de tão escassos elementos, é obra.
AS MADALENAS ESTÃO NA MODA: Há quem considere que o célebre questionário de Proust não passa de um frívolo entretenimento de salão. Eu próprio, para falar com franqueza, penso assim. Mas não quer isso dizer que não sinta um deleite muito particular em coscuvilhar as inclinações e as pequenas confissões dos grandes e famosos que, de quando em vez (e quem sabe se a contragosto), se submetem a tão inocente exercício. Daí que reserve nos meus Favoritos um lugar de honra para esta página do semanário "L'Express", onde estão arquivadas as respostas ao questionário de muitas personalidades, quase todas francesas, provenientes de variados sectores de actividade. Nos dias que se seguem, vogando no macio remanso da estação pateta, mas com infalível determinação, tratarei de dar destaque a algumas das escolhas aí mencionadas, começando pela pintura.
MAIS WALSER: «Às pessoas saudáveis faço o seguinte apelo: não teimem em ler apenas esses livros saudáveis, , travem um conhecimento mais estreito, também, com a literatura dita doentia, que vos transmitirá, decerto, uma cultura edificante. As pessoas saudáveis deveriam sempre expor-se um pouco ao perigo. Senão, com mil raios, para que serve ser saudável?» (Robert Walser, "O Salteador", p. 81, Relógio d'Água, 2003, trad. de Leopoldina Almeida)

quinta-feira, agosto 03, 2006

COMPORTAMENTO FELINO: A juntar ao rol de aversões pessoais da gatinha Goneril: o poeta António Ramos Rosa. Com efeito, eficazmente secundada pelo gatinho Jasmim, ela dedicou-se com aplicação a estraçalhar a badana que acompanhava a antologia deste poeta publicada pela Dom Quixote. Depois de Kofi Annan, Ramos Rosa. Começará a emergir algum padrão? Não vislumbro. Que denominador comum existirá entre o diplomata ganês, sétimo secretário-geral das Nações Unidas, e o poeta algarvio, autor do "Ciclo do Cavalo"?

terça-feira, agosto 01, 2006

E AGORA, WALSER: «Há, de facto, pessoas que pretendem retirar dos livros pontos de referência para a sua vida. Lamento muito ter de dizer aos meus leitores que não é para esse género de pessoas muito respeitáveis que eu escrevo. Será uma pena? Oh! Sem dúvida!» (Robert Walser, "O Salteador", p. 12, Relógio d'Água, 2003, trad. de Leopoldina Almeida)
DE DIVINA PROPORTIONE: A autora do blog Bomba Inteligente chama "bronco" e "animal" a Zinédine Zidane por este ter respondido com uma agressão física aos insultos de Marco Materazzi. Alguns posts mais tarde, indigna-se contra aqueles que falam em proporcionalidade para pôr em causa a amplitude da resposta israelita às provocações do Hezbollah, e que se sentem chocados por o rapto de dois soldados ter suscitado uma ofensiva que já causou centenas de mortos civis e muitas dezenas de milhares de deslocados. Assinalo, e deixo ao soberano critério do leitor decidir se tal é relevante ou não. Dir-se-ia que a proporcionalidade é válida quando se trata de zaragatas num recinto desportivo, mas deixa de o ser quando vidas humanas estão envolvidas.
OAKESHOTT VAI AO BAR DO FRED: A revista "Atlântico" debruça-se sobre os "Morangos com Açúcar", e isto pouco tempo depois de o grande sucesso da TVI ter sido paragonado, por Eduardo Pitta, à obra-prima de Guimarães Rosa. Como caução, seria ingrato pedir melhor. Cada vez mais, o debate político e sociológico em Portugal gira em torno do bar do Fred, mesmo sem o Fred, mas com os míticos "morang'ices" sempre à mão de semear!