(Imagem retirada daqui. Fotografia de Misha Savinov.)
NO CHESS TODAY: Deveria ter-se realizado hoje o quinto jogo do campeonato mundial de xadrez, em Elista, Rússia, entre Veselin Topalov e Vladimir Kramnik. Em vez disso, sucedeu um inimaginável golpe de teatro. Tudo começou quando, ontem, Silvio Danailov, manager de Topalov, emitiu um comunicado onde exprimia suspeitas devido ao excessivo número de idas à casa-de-banho por parte de Kramnik, durante o jogo (leiam outra vez - não estou a brincar). Nas entrelinhas, lia-se facilmente a suposição de que Kramnik estaria a fazer batota, aproveitando a presença na casa-de-banho para consultar um auxiliar informático. O órgão competente da Federação Internacional de Xadrez acedeu parcialmente aos pedidos de Topalov, encerrando as casas-de-banho privativas dos jogadores, e disponibilizando uma casa-de-banho comum. Considerando que tal violava as condições contratuais acordadas, Vladimir Kramnik recusou-se a comparecer ao jogo de hoje, tendo sido a vitória concedida a Topalov por falta de comparência. Perante a posição irredutível de ambas as partes, o match parece em perigo. As próximas horas poderão ser (aliás, terão de ser) decisivas. (Aqui encontra-se um bom resumo da situação, com actualizações regulares.)
Que dizer de tudo isto? Nas reacções que tenho lido (ver aqui, aqui, aqui e aqui por exemplo) existe uma nota comum: dificilmente o xadrez poderia descer mais baixo. Este caso (já apodado de "Bladdergate" no blog de Mig Greengard), com as inevitáveis repercussões na imprensa, poderá ter efeitos devastadores para a pouca credibilidade de que a modalidade ainda goza. Em edições anteriores do campeonato do mundo, as polémicas, por vezes virulentas, raramente têm faltado. Nenhum fã de xadrez deixará de recordar o mítico embate entre Karpov e o refusnik Korchnoi, em Baguio (Filipinas), 1978. (Num episódio que ficou nos anais, Karpov foi acusado de receber mensagens cifradas da sua equipa por meio de iogurtes que lhe eram servidos durante o jogo. Para além disso, não faltaram gurus, parapsicólogos, acusações de hipnotismo...) Mas esses eram outros tempos. A guerra civil acabou, e com ela muita da exposição mediática de que o xadrez disfrutou, a reboque da sua condição de metáfora do conflito ideológico entre Leste e Ocidente. Hoje em dia, aquilo de que o xadrez necessita é de credibilidade, e não de conflitos pueris sobre casas-de-banho.
Se Veselin Topalov (que tinha perdido os dois primeiros jogos e empatado os dois seguintes) acabar por manter o seu título de campeão mundial à custa do abandono do adversário, na sequência destas escaramuças psicológico-lavatoriais, será o campeão menos credível e mais ridicularizado da história.
sexta-feira, setembro 29, 2006
quarta-feira, setembro 27, 2006
A CADA UM A SUA EUROPA: Mas o que esperava Luís Delgado? Que, a cada argolada do cidadão Ratzinger, a "Europa democrática, cristã e humanista" saísse às ruas em defesa da liberdade de expressão? Cordões humanos? Vigílias com velas raquíticas em copos de plástico e música sacra saindo de aparelhagens portáteis Panasonic? Haja bom senso. Por virtude da sua condição de regente-mor do bairro do Vaticano, Bento XVI (né Ratzinger) dispõe de uma atenção mediática clamorosamente desproporcionada face à sua real relevância. Grande exposição mediática implica cuidadinho com a língua. Mesmo tratando-se de uma citação histórica, juízos de valor negativos sobre uma outra religião seriam a última coisa que um líder religioso deveria deixar escapar de entre os seus lábios. A única dúvida que subsiste aqui é saber se se tratou de simples falta de tacto ou se Ratzinger utilizou deliberadamente o seu discurso para denegrir o islamismo, aproveitando en passant para lançar mais uma acha na sua fogueira predilecta: o argumento da superioridade do cristianismo, e a necessidade de o Ocidente reencontrar as suas raízes cristãs como único remédio para a putativa crise de valores que por aí grassa. Existem argumentos fortes em favor desta segunda hipótese. (Ver aqui, aqui, aqui e aqui.)
O que nos traz de novo à "Europa democrática, cristã e humanista" de Luís Delgado. Não me revejo nessa Europa. A minha Europa é democrática e humanista, sem dúvida ("two out of three ain't bad"), porém laica e secular, pouco dada a ofender-se por suposto vilipêndio dirigido contra um ancião paramentado de branco e escarlate, que julga que existe compatibilidade entre a Religião e a Razão.
PARA LÁ DO BEM E DO MAL: Nesta vida há coisas boas e coisas más, e também algumas coisas (o colesterol é disso eficaz exemplo) que podem ser boas ou más. Desta dualidade maniqueísta, e de uma citação de Bellow, retirou um português expatriado em Edimburgo o título original do seu blog, entretanto mudado em "Pastoral Portuguesa". Muita literatura (sobretudo anglófona), alguma música, frequentes observações de índole diversa estão na ordem do dia. Há também um começo de polémica sobre um romance de DeLillo, na qual espero também vir a molhar a sopa. Fortemente aconselhável a miúdos e graúdos.
MESMO SEM SABER: Na letra da canção "Cinderela", de Carlos Paião (canção que cala fundíssimo no imaginário luso, a julgar por uma recente emissão da RTP apresentada por uma imitação em plástico da Isabel Angelino), há um verso que é mais ou menos assim:
«Uns olhares envergonhados, e são namorados, mesmo sem saber.»
A inadvertência pareceria excluída da ideia de namoro, para o qual a volição mútua se me afiguraria condição necessária. Mas a tenra ingenuidade do conceito resgata-o à condição de paradoxo canhestro a que estaria porventura condenado. Fez-me lembrar o conto "The Beast in the Jungle", de Henry James, em que um evento extraordinário, e de relevância máxima para duas pessoas, acaba por ser sentido apenas por uma, e não por aquela que mais o antecipara ao longo de toda uma vida. "The strangeness in the strangeness..."
"Ah your not being aware of it"-and she seemed to hesitate an instant to deal with this
-"your not being aware of it is the strangeness in the strangeness. It's the wonder of the wonder." She spoke as with the softness almost of a sick child, yet now at last, at the end of all, with the perfect straightness of a sibyl. She visibly knew that she knew, and the effect on him was of something co-ordinate, in its high character, with the law that had ruled him. It was the true voice of the law; so on her lips would the law itself have sounded. "It has touched you," she went on. "It has done its office. It has made you all its own.""So utterly without my knowing it?""So utterly without your knowing it." His hand, as he leaned to her, was on the arm of her chair, and, dimly smiling always now, she placed her own on it. "It's enough if I know it."
Se os "Morangos com Açúcar" emulam, quiçá inadvertidamente, o épico de Guimarães Rosa, que atire a primeira pedra aquele que recusaria a Carlos Paião a legitimidade de se inspirar em Henry James. (A propósito, acabaram-se os posts sobre os "Morangos". Não tenciono ver a nova série, pois acho inconcebível que não saia a perder na comparação com a anterior.)
segunda-feira, setembro 25, 2006
XADREZ: Está a decorrer em Elista, capital da república autónoma russa da Calmíquia (será assim que se escreve em português?), o match para atribuição do título de campeão do mundo de xadrez. Trata-se de um encontro com características especiais, uma vez que representa a reunificação dos dois títulos que têm existido em paralelo desde que, em 1993, Garry Kasparov e Nigel Short provocaram um cisma com a Federação Mundial de Xadrez (FIDE). De então para cá, têm abundado as discussões, tão acaloradas quanto estéreis, sobre quem é o campeão do mundo legítimo. Por mais tortuoso e insatisfatório que tenha sido o caminho que conduziu a esta reunificação tão aguardada, os fãs de xadrez do mundo inteiro têm pelo menos a garantia de que, dentro de poucos dias, existirá finalmente um campeão mundial único e inconstestado.
Os dois contendores são o búlgaro Veselin Topalov (campeão do mundo FIDE) e o russo Vladimir Kramnik (campeão do mundo oficioso, dito "clássico"). Dificilmente Kramnik poderia ter começado melhor, uma vez que ganhou as duas primeiras partidas, liderando portanto por 2-0. No entanto, um olhar atento sobre essas duas partidas mostra que o resultado é enganador. Na primeira, Topalov recusou um empate por repetição de lances, vindo a perder após algumas imprecisões. Na segunda partida (ontem), o búlgaro, após erro grave de Kramnik ao 31º lance, não viu uma continuação que lhe daria uma vitória rápida, tendo acabado por sair derrotado após um final em que o seu adversário evidenciou a sua famigerada precisão.
A partir de agora, tratando-se de um match a 12 partidas, a missão de Topalov pode parecer impossível. Kramnik é um exímio defensor, e o búlgaro, ao ser obrigado a procurar o ataque a todo o custo, arrisca-se a sofrer supresas desagradáveis. Porém, se existe jogador no mundo capaz de desequilibrar posições aparentemente neutralizadas, e de encontrar recursos ofensivos mesmo contra os opositores mais coriáceos, esse jogador é Veselin Topalov. Nada está decidido.
Não tenho nenhum favorito pessoal claro, mas ficaria mais satisfeito se o triunfo final pendesse para o lado de Topalov. Não tanto por uma questão de estilo (o de Kramnik, essencialmente posicional, agrada-me mais), mas por achar que o seu título de campeão possui maior legitimidade. Em rigor, penso até que ele não se deveria ter sentido obrigado a aceitar colocar o seu título em jogo desta maneira. Mas seja tudo pela reunificação. O lema da FIDE é Gens Una Sumus ("somos uma só gente", ou algo que o valha).
Alguns dos sites onde este acontecimento é seguido de perto:
Chessbase
Échiquier Niçois
The Week in Chess
Susan Polgar Chess Blog
The Daily Dirt Chess Blog
Há ainda o site oficial, com transmissão gratuita em directo.
sábado, setembro 23, 2006
24 VEZES POR SEGUNDO: Em matéria de directores de fotografia, receio bem que, para não variar, a minha francofilia inveterada governe as minhas preferências. Os meus eleitos são William Lubtchansky ("Les Amants Réguliers", vários filmes de Rivette, Iosseliani, Doillon...), Sacha Vierny (vários filmes de Greenaway, "Hiroshima Mon Amour" e "L'Année Dernière à Marienbad" entre outros filmes de Resnais, "Belle de Jour" de Buñuel...) e Raoul Coutard, figura indissociável da Nouvelle Vague (Truffaut, Chabrol, e muitos filmes de Godard, entre os quais "À Bout de Souffle", "Bande à Part" e "Passion", tendo em anos mais recentes trabalhado quase exclusivamente com Philippe Garrel).
SVEN NYKVIST (1922-2006): Foram escassas as menções na comunicação social dita "de referência", demasiadamente ocupada com os beijinhos da Floribella, com golos marcados com a mão e outros penosos cortejos de nulidades. Também não vi nada nos blogs (mas pode ter sido por falta de atenção), com a inevitável excepção do Paulo, a quem estas coisas não costumam escapar. Morreu Sven Nykvist, um dos grandes directores de fotografia da história do cinema. Trabalhou pela primeira vez com Ingmar Bergman em 1953, no filme "Gycklarnas Afton/La Nuit des Forains" (ignoro o título em português), e, do ano de 1960 em diante, participou em praticamente todas as obras do realizador sueco. Entre os realizadores com quem trabalhou contam-se nomes como Louis Malle, Volker Schlöndorff, Andrei Tarkovsky ("O Sacrifício"), Roman Polanski e Woody Allen ("Another Woman", um episódio de "New York Stories", "Crimes and Misdemeanors" e "Celebrity"), mas será pela sua longuíssima parceria com Bergman que Nykvist será provavelmente recordado. Torna-se espinhoso tentar encontrar um outro exemplo de uma tão rica e significativa colaboração entre um realizador de cinema e um técnico, e parece-me impossível discutir filmes como "Persona", "O Silêncio" ou "A Hora do Lobo" sem mencionar a excelência das poderosas imagens de Nykvist.
Max von Sydow e Ingrid Thulin no filme "A Hora do Lobo" (1968).
Bibi Andersson, Liv Ullmann, Sven Nykvist e Ingmar Bergman durante as filmagens de "Persona" (1966). Esta imagem e a anterior foram retiradas do excelente site "Bergmanorama".
Uma cena de "O Sacrifício", de Andrei Tarkovsky (1986).
terça-feira, setembro 19, 2006
O HOMEM QUE CITAVA VALÉRY NO PARLAMENTO: O mais puro acaso googleano conduziu-me à descoberta de que o deputado socialista Jean Le Garrec citou Paul Valéry na sessão da assembleia francesa de 8 de Fevereiro de 2005, durante um debate sobre direitos e condições laborais. Evocando o paradoxo de Zenão de Eleia, o deputado falou num "Achille immobile à grand pas" (do poema "Le Cimetière Marin").
Desabafo de um deputado da maioria UMP (Patrick Ollier) «On a fait le tour des grands poètes français dans ce débat !»
(Ver aqui, e fazer busca com palavra chave "zénon".)
O mundo passava sem ficar a saber isto, mas eu não passava sem dizer isto ao mundo.
quinta-feira, setembro 14, 2006
SAI UMA MORANGADA PARA A MESA DO CANTO: Num dos últimos episódios dos "Morangos com Açúcar", o Cristiano aceitou a encomenda de um cliente que pedia quatro (4) bolos para uma festa no dia seguinte, e isto para grande consternação da Bia, que achava o prazo demasiado curto.
O Cristiano argumentou com a relutância em recusar uma primeira encomenda, algo de pouco aconselhável para um pequeno e médio negócio em plena fase de lançamento. A Bia, para além da falta de antecedência, protestava devido ao risco de perder um festival de música no qual depositava grandes expectativas.
Os argumentos da Bia e do Cristiano são igualmente bons. Não se pode dizer que a razão tenha tendência a pender decisivamente para um lado ou para outro.
Quanto ao facto de os bolos (torta de laranja, bolo de chocolate, bolo de bolacha, e um outro que não retive) terem saído na perfeição, apesar do estatuto de principiante absoluto destes improváveis pasteleiros, isso não me incomoda nem um pouco. Porque não haveriam os "Morangos" de ter direito ao seu quinhão de suspensão de incredulidade?
CINEMA: "Ferro 3", de Kim Ki-duk. Visto na Cinemateca, 2ª feira passada. Neste filme (o quarto a estrear entre nós deste cineasta, algo de inaudito para um realizador coreano), a personagem principal parece ter ido buscar inspiração ao famoso texto de Kafka sobre as parábolas. Derrotado na parábola, resolve-se a ganhar na realidade. O seu principal passatempo (e única ocupação, ao que parece) consiste em visitar apartamentos na ausência dos seus donos. Mais do que isso, encontra prazer em fundir-se com a intimidade familiar revelada pelos quartos, objectos e imagens. Ao ceder a este desejo de partilhar um quotidiano sem ser visto, aproxima-se simbolicamente da invisibilidade. Mais tarde, depois de se envolver com uma mulher amargurada por um matrimónio infeliz, e de o desenrolar dos acontecimentos o conduzir à prisão, decide concretizar na realidade o projecto gorado no domínio simbólico. Gradualmente, desmaterializa-se diante dos nossos olhos (e que belas e fortes são as imagens do protagonista na sua minúscula cela, entregue ao seu duelo com o guarda).
Não são precisos efeitos especiais. A invisibilidade é uma condição, um mero atributo. E ei-lo agora fantasma, fruto de um milagre que não o é. O único milagre é a ausência de solução de continuidade. O dilema do filme, que se confunde com o próprio filme, é resolvido com um desplante tão natural e poderoso como o sorriso malicioso que se desenha nos lábios deste arrombador educado.
Haveria muito a dizer ainda sobre "Ferro 3". Os jogos entre diferentes planos reflectores, a profundidade de campo explorada com destreza e elegância, a maneira como vingança, redenção e dádiva se intercalam para compor uma complexa dimensão moral, típica dos filmes deste realizador. Contento-me em dizer que foi agradável confirmar a minha apetência por filmes que se reinventam a meio caminho, a partir de uma ruptura voluntária: "The Crying Game" (Neil Jordan), "Choses Secrètes" (Jean-Claude Brisseau), "Lost Highway" (David Lynch) e "Éloge de l'Amour" (Jean-Luc Godard) são outros notáveis exemplos. Talvez se possa argumentar que "Ferro 3", afinal de contas, vai menos longe do que qualquer um destes, em termos de cesura auto-imposta. É possível. Tudo depende de estarmos a falar da realidade ou da metáfora.
domingo, setembro 10, 2006
DARWIN É EVOLUÇÃO: Não se confirmaram os piores receios: do simpósio à porta fechada que Bento XVI (né Ratzinger) organizou, não saiu uma declaração de apoio a teorias anti-científicas como o criacionismo, ou ao "Intelligent Design", sua versão cool e pós-moderna. Num mundo regido pela sanidade, as decisões de um grupo de cavalheiros no Vaticano, acerca de um assunto relativamente ao qual carecem de competência e de autoridade para opinar, não deveria merecer mais do que indiferença. No entanto, o realismo obriga-nos a admitir que o beneplácito de Roma poderia constituir perigoso encorajamento para aqueles que fizeram da introdução de absurdas teorias anti-darwinistas no sistema escolar norte-americano a batalha das suas vidas.
É por isso, e apenas por isso, que hesito em fazer minhas estas palavras de PZ Myers no Pharyngula: «While we can be pleased that the Vatican hasn't found common cause with another institutional enemy of good science, ultimately their decision is irrelevant. "Eppur si muove," and all that—the world keeps spinning, the alleles keep changing, biological history has happened, and all the dogma of old men in funny hats won't change that.» Lamentavelmente, os dogmas que emanam das cabeças ornadas com chapéus ridículos têm um impacto real (quanto mais não seja por culpa de uma comunicação social acrítica e demasiado acomodada aos rapapés e à complacência com as enormidades da Igreja católica).
Ainda a este propósito, também não me escapou esta patética carta aberta. Nem vale a pena comentar o miserável nível científico. O texto deste ilustre criacionista é a sua própria caricatura, e todo ele, caro Vasco, mereceria sublinhado. Sendo ingrata a escolha, acho ainda assim que o meu naco preferido é o referente às leis das probabilidades e da causalidade corroborarem a criação, e não a evolução. Paira a dúvida sobre se o autor do livro é ignorante em probabilidades, em biologia, ou em ambas.
Se eu enviar uma carta aberta ao "Público" será que ma publicam?
sexta-feira, setembro 08, 2006
DE TRINCHEIRAS E DOS SEUS LADOS (3): Caro Rui, compreendo o seu ponto de vista. Vejamos, contudo, para que serve uma manifestação. Serve, na grande maioria dos casos, para dar voz a uma reivindicação. Quando se trata de fanáticos, parece-me difícil justificar o propósito de uma manifestação. Qual seria a sua finalidade? Pedir aos fanáticos que se abstenham de matar e de semear o terror? Em certos casos, reagir nas ruas ao fanatismo criminoso parece-me algo de compreensível, e talvez não completamente destituído de eficácia. Penso, por exemplo, no movimento "Basta Ya!", como resposta aos assassinatos da ETA. Porém, aquilo que pode fazer algum sentido no contexto de uma comunidade pequena, e perante um movimento terrorista de alcance local que necessita de um mínimo de apoio da população para sobreviver, carece de pertinência face ao terrorismo hiper-globalizado e hiper-mediatizado. Solicitar aos senhores da Al-Qaida, de megafone em punho, o favor de não fazerem mal às pessoas honestas, assemelhar-se-ia a uma farsa grotesca. Pior ainda: estaria demasiado próximo de um abjecto pedido de clemência.
E valerá a pena fazer manifestações contra o terrorismo apenas para "equilibrar" as manifestações dirigidas a líderes democráticos? (O tal princípio de vaiar também a equipa visitante.) As primeiras seriam, forçosamente, eventos catárticos, desabafos incapazes de anular as segundas, eminentemente reivindicativas. Poderiam funcionar como factor de coesão de uma comunidade que se sente ameaçada, e assim exercer um efeito positivo. Porém, o meu cepticismo mantém-se. Uma manifestação implica um interlocutor, e os facínoras não se prestam a esse papel.
DE TRINCHEIRAS E DOS SEUS LADOS (2): Adenda a um post de ontem. O título, percebo-o agora, foi pessimamente escolhido. Falar em "lados" e "trincheiras" remete para a retórica daqueles que, sob pretexto da putativa "guerra de civilizações" que atravessamos, afirmam ser preciso escolher um lado, e vêem como traição abominável qualquer veleidade de encontrar nuances na situação, procurar causas, ou, pior ainda, parar para pensar. E eu rejeito esta retórica. Não me revejo nesta lógica maniqueísta. Quando escrevi que Bush "está do meu lado", colocava-me numa situação de hipotética escolha compulsiva. Porém, creio que a realidade presente não pede tomadas de posição absolutas. Fronteiras mentais traçadas à pressa entre "democracia" e "barbárie" contribuem para o problema, não ajudam a resolvê-lo.
(Bem sei que o relativismo tem, nos dias que correm, muito má imagem. Mas não foi o relativismo o maior assassino de homens dos últimos séculos. Foi a ilusão demente de estar do lado da Razão.)
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na estação de metro de Telheiras, um jovem lia "O Conceito de Natureza", de Alfred North Whitehead, enquanto caminhava. De tão absorto na leitura, nem sequer reparou no cadáver de insecto que jazia sobre um dos degraus da escadaria de acesso ao cais. O insecto, de corpo enorme e lustroso, ostentando pequenas asas de cor azul, parecia saído de um documentário sobre a fauna do Madagáscar.
quinta-feira, setembro 07, 2006
«An astronomically overwhelming majority of the people who could be born never will be. You are one of the tiny minority whose number came up. Be thankful that you have a life, and forsake your vain and presumptuous desire for a second one. The world would be a better place if we all had this positive attitude to life. It would also be a better place if morality was all about doing good to others and refraining from hurting them, rather than religion's morbid obsession with private sin and the evils of sexual enjoyment.» (Richard Dawkins)
DE TRINCHEIRAS E DOS SEUS LADOS: Não é recente a minha convicção de que Richard Dawkins representa uma das vozes mais lúcidas e importantes dos nossos tempos. É uma das personalidades que mais admiro, de todas as nações e de todos os domínios. Para além de excelente autor de divulgação científica, Dawkins é um incansável lutador por causas que eu apoio, e cuja importância julgo ser das maiores: falo do combate contra a falsa ciência, contra a intromissão da superstição e da religião no domínio científico e contra os fanatismos de toda a espécie.
Um aspecto que me agrada particularmente em Dawkins é a sua falta de tacto. Talvez por impaciência para com os adeptos da contemporização e dos paninhos quentes, Dawkins nunca hesita em chamar "charlatão" aos charlatães e "ignorante" aos ignorantes. E está-se positivamente nas tintas para quem nisso veja uma intolerável manifestação de arrogância moral.
Esta entrevista, embora já tenha um ano e tal, mostra Dawkins em plena forma, e tem a virtude de tocar na grande maioria dos temas que constituem os seus principais cavalos de batalha. A sua leitura é altamente recomendável. No entanto, nesta frase que dela foi retirada, Dawkins não me parece ter sido feliz. Bush e Bin Laden podem estar igualmente convencidos de estar do lado da Verdade, mas tal não quer dizer que se encontrem "do mesmo lado". Quaisquer que sejam as objecções que se possam apresentar contra Bush, as suas políticas e as suas mundividências (e, no meu caso, não são poucas), trata-se do presidente democraticamente eleito de um estado dotado de mecanismos protectores das liberdades individuais, ao passo que Bin Laden é um líder rebelde cuja única lei é a do fanatismo religioso, em nome da qual planeia a morte deliberada de inocentes sem o menor escrúpulo. Qualquer que seja a nossa opinião sobre Bush (e, repito-o, a minha é francamente negativa) ele é o representante máximo de uma nação que se baseia em princípios e ideais nos quais me revejo. Se me impusessem a escolha entre Bush e Bin Laden, entre viver sob a alçada dos falcões do partido Republicano ou dos sicários do homem que orquestrou o 11 de Setembro, não hesitaria um nanossegundo. Bush, por mais que me custe dizê-lo, está "do meu lado".
Acessoriamente, é precisamente por isso que acho patéticos argumentos deste jaez: «Por que razão se manifestam contra a invasão do Iraque e não contra os atentados da Al-Qaida?» (Ou contra Fidel Castro, o regime coreano, etc.) Haja paciência. Manifestações contra Bush fazem sentido precisamente por se tratar de um líder democrático, responsável perante os seus eleitores, e do qual há que esperar bom senso, justiça e clarividência. Uma manifestação contra o modus operandi do senhor Bin Laden não passaria de um exercício ocioso, porque de fanáticos não há nada a esperar.
Ao dizer que Bush e Bin Laden estão do mesmo lado, Dawkins arrisca-se a confundir-se com aqueles cujo passatempo preferido é ulular slogans acéfalos e estafados do tipo "Bush=Hitler" ou outras pérolas clássicas do mesmo género. (É minha firme opinião que comparações com Hitler ou o Holocausto deviam ser taxadas pela medida grande.)
quarta-feira, setembro 06, 2006
PODEM SALTAR ESTE, POR FAVOR: Eu queria manifestar a minha perplexidade pela maneira como a Susana está a ser intrujada por esse falso do Guga, mas também queria sublimar a indignação (porque tantos posts sobre os "Morangos com Açúcar" já aborrece, até a mim) com umas frases, digamos, sobre poemas de Montale. Tudo no mesmo post. E saiu isto.
FOI VOCÊ QUE PEDIU UM EXCELENTE BLOG SOBRE CIÊNCIA?: «Evolution, development, and random biological ejaculations from a godless liberal.» O Pharyngula é um grande, grande e justamente célebre blog. O seu autor, o biólogo PZ Myers, com humor cortante e raro virtuosismo, zurze a superstição, a falsa ciência e obscurantismo. Para além destes méritos, ainda nos oferece epifanias tão intensas como este polvo esculpido em manteiga.
segunda-feira, setembro 04, 2006
DIZ-ME O QUE OUVES: No filme "American Psycho", que vi anteontem na TVI, a personagem Patrick Bateman tem gostos musicais que não fogem ao convencional: Whitney Houston, Phil Collins... Menos comum é a sua mania de, antes de cometer os seus atrozes crimes, brindar a perplexa futura vítima com discursos, extremamente articulados e repletos de clichés jornalísticos, sobre a banda ou cantor em questão.
Mal pude reprimir um gemido de revolta ao verificar que um dos eleitos de Bateman é Huey Lewis and the News. Se o objectivo de Bret Easton Ellis era satirizar as preferências musicais, insípidas e formatadas, dos yuppies de Wall Street, penso que a menção a Huey Lewis foi um tiro no próprio pé. O som de Huey e dos seus News era poderoso, bem-humorado e genuíno. O seu sentido de humor auto-paródico e a riqueza das suas harmonias, a capacidade de oferecer irresistíveis melodias feel good sem resvalar para a irrelevância, colocam-nos a muitas milhas náuticas (lembram-se de "Stuck With You"?) da lamechice empacotada e liofilizada de Whitney Houston e Phil Collins.
(Mais preocupante foi ficar a saber que a banda preferida de Bateman são os fabulosos Talking Heads, o que é ainda mais difícil de justificar. Espero que se deva exclusivamente ao brilhante tema "Psycho Killer", onde David Byrne canta em francês com forte sotaque.)
BEAM ME UP, JOÃO CÉSAR: As crónicas de João César das Neves ganharam justa fama pelo teor de ousados saltos quânticos argumentativos, capazes de levar o leitor mais plácido ao desespero completo. É tal a catadupa de falácias, alegações inconsistentes, abusos de linguagem e generalizações inconcebíveis que a reacção mais normal é um pasmo prolongado e profundo, de que só se recupera a custo. A contestação dos periclitantes edifícios retóricos de JCN é tarefa ingrata: as enormidades são às mancheias, o tempo e a paciência para as tratar uma a uma não existe. Perante este panorama, qualquer veleidade de contraditório vacila. Fino estratega, este nosso celebrado cronista das segundas-feiras!
Desta vez, JCN brinda-nos com um dos seus melhores textos dos últimos meses. O argumento central (se é que me atrevo a condensar pensamentos tão ricos, tão regurgitantes de significado) parece ser o seguinte: o ser humano possui uma tendência natural para a transcendência, para a procura de sentido, e a civilização materialista contemporânea, ao substituir um mundo centrado em Deus por um mundo centrado no Homem, desvia essa sede de absoluto para objectos irrisórios, como seja a série televisiva "Star Trek".
Admita-se que este argumento não é totalmente descabido. Não seria eu quem se admiraria se, por hipótese, surgisse amanhã um artigo científico que provasse que os substratos neurológicos por detrás da crença religiosa e da adesão a séries, filmes, bandas desenhadas, cultos satanistas ou paixões clubísticas são os mesmos. Porém, se me parece plausível que a ideia fundamental possua um fundo de verdade, há que frisar que a interpretação que a partir dela deriva JCN é francamente discutível. Na opinião de JCN, uma tendência intrínseca ao Homem para aspirar a significados últimos e a um consolo espiritual que só a religião lhe pode dar foi traída por uma modernidade grosseira que apenas lhe oferece tristes sucedâneos. Na minha perspectiva, a coisa passa-se assim: as religiões organizadas servem-se, hoje como ontem, da (demasiado) humana propensão a procurar respostas fora da razão e do bom-senso. Durante séculos, essas religiões revelaram-se devastadoramente eficazes em co-optar, para seu benefício, as dúvidas, fraquezas e ingenuidade dos crentes, para além do seu sentido gregário e apego a ritos ordenadores do quotidiano. Hoje em dia, quando as brechas no seu monopólio são cada vez mais difíceis de esconder (em particular no caso da Igreja católica), fica mal aos seus dignatários e defensores queixar-se. A sociedade de consumo, os gurus, as seitas, mais não fazem do que lutar com as mesmas armas que as religiões aperfeiçoaram ao longo da sua história.
JCN encontra ainda espaço para aludir a alguns dos seus fantasmas predilectos, desses que, pouco ou nada devendo à veracidade ou à realidade histórica, são imprescindíveis para conferir às suas crónicas aquele paladar inconfundível. O "deísmo iluminista" e o "ateísmo positivista" são os maus da fita, os responsáveis por associar o culto à superstição e pela recusa do absoluto e do transcendente. Logo, é neles que radica o actual e deprimente estado das coisas. Estranhamente, JCN abstém-se de explicar qual terá sido o papel do modelo de sociedade (bem distante das ferozes derivas jacobinas que assombram os seus escritos) para o qual se tem vindo, felizmente, a caminhar na Europa ocidental, embora com fortes nuances de país para país. Falo da democracia laica, assumidamente incompetente em matéria religiosa, promotora tanto da liberdade de culto como da separação entre Igreja e Estado. É inútil culpar uma sociedade onde todos têm a possibilidade de adorar a divindade que muito bem lhes apetecer. Se cada vez mais pessoas trocam a fé pela nave Enterprise, talvez isso tenha menos a ver com o cepticismo perverso dos nossos dias, e mais com a colossal inadequação de uma Igreja que ainda teima em ver-se como pilar da sociedade e referência moral.
sábado, setembro 02, 2006
SERÁ QUE OCTAVIO PAZ ANDOU A LER KLEIST?:
«La tentativa revolucionaria se presenta como una recuperación de la conciencia enajenada y, asimismo, como la conquista que hace esa conciencia recobrada del mundo histórico y de la naturaleza. Dueña de las leyes históricas y sociales, la conciencia determinaría la existencia. La especie habría dado entonces su segundo salto mortal. Gracias al primero, abandonó el mundo natural, dejó de ser animal y se puso en pie: contempló la naturaleza y se contempló. Al dar el segundo, regresaría a la unidad original, pero sin perder la conciencia sino haciendo de ésta el fundamento real de la naturaleza.»
(Octavio Paz, "El Arco y la Lira")
«(...)também assim a graça ressurge depois do conhecimento atravessar, digamos, um infinito; e da mais pura forma ela se mostra, quer no corpo humano desprovido de consciência, quer no corpo que tenha uma, infinita, querendo eu dizer no fantoche articulado ou em Deus.»
(Heinrich von Kleist, "As Marionetas", trad. de Luís Bruhein e Aníbal Fernandes)
CONSERVADORISMO: Li algumas referências (por exemplo esta, esta) a crónicas recentes de João Carlos Espada onde este dá largas ao seu fascínio pelos tiques vestimentares vigentes em certos círculos conservadores de aquém e além-Atlântico. Deixando de parte o exagero próprio da personagem, penso ser apropriado fazer notar quão dependente está de pormenores igualmente frívolos o conservadorismo de certos assumidos conservadores da nossa freguesia. Tweed e chá das cinco; romances de Trollope e stiff upper lip; campos verdejantes de Oxford e Cambridge e poemas de Larkin; é o quanto basta para fazer brotar vocações conservadoras. Instados a aprofundar a razão de ser da sua veia, alguns desses conservadores de-trazer-pelas-colunas-de-opinião poderão evocar, com a condescendência de quem acha tudo demasiado óbvio para ser explicado, que o seu ideário deriva da desconfiança perante evoluções (com ou sem "r" prefixado) que desvirtuem a sociedade ou que façam perigar as instituições. Mas dificilmente irão além da enunciação mole e auto-satisfeita do princípio segundo o qual "mais vale não mudar nada do que mudar para pior". E dificilmente o farão porque o conservadorismo é, na sua essência, uma questão de temperamento, sem cheiro de conteúdo político. Não há rigorosamente nada de mal em ser-se, ou afirmar-se ser, conservador. Mais delicado é quando se deixa que um traço de temperamento extravase para a política. Deixemos aos ingleses o privilégio da anacrónica câmara dos lordes e da inadequação anedótica dos tories.
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