domingo, agosto 12, 2007

PALCO, VIDA E LINHA DOS TRÊS PONTOS: No seu livro "True and False - Heresy and Common Sense for the Actor", David Mamet estabelece a seguinte analogia entre o teatro e o basquetebol: «The Method school would teach the actor to prepare a moment, a memory, an emotion for each interchange in the play and to stick to that preparation. This is an error on the order of the basketball coach instructing his team to stick to the plays which they practiced irrespective of what their opponents are doing.» Há um poema de António Franco Alexandre (de "Quatro Caprichos") que fala de um treinador de basquetebol que era também encenador de teatro, embora fosse demasiado jovem e incompetente para qualquer uma das atribuições. Também explorei esta analogia numa peça minha.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na zona de restauração de um centro comercial do Saldanha, de cujo nome nunca me consigo recordar, um cavalheiro lia as "Metamorfoses" de Ovídio. Sem a atenção de Q., teria falhado este importante avistamento. A propósito: no filme "Esther Kahn", uma das irmãs de Esther lê "Sesame and Lilies", de John Ruskin. Proust, que admirava Ruskin, traduziu para francês este livro, aparentemente com a colaboração da sua mãe e da prima do compositor Reynaldo Hahn.
OUTRA VEZ SARTRE: Lembro-me também (outra memória falsa?) de ler ou ouvir dizer que Sartre tinha recusado o Nobel por não querer receber dinheiro do inventor da dinamite. No "Robert des grands écrivains de langue française" são mencionadas algumas motivações mais plausíveis:
  • son refus constant des distinctions officielles
  • sa conviction qu'«un écrivain qui prend des positions politiques, sociales ou littéraires ne doit agir qu'avec les moyens qui sont les siens, c'est-à-dire la parole écrite [et que] toutes les distinctions qu'il peut recevoir exposent ses lecteurs à une pression [qui n'est] pas souhaitable»
  • le constat selon lequel «dans la situation d'aujourd'hui, le prix Nobel se présente objectivement comme une distinction réservée aux écrivains de l'Ouest ou aux rebelles de l'Est».

Aproveito para acrescentar que a "madame Z." a quem é dedicada a obra "Les Mots" era Lena Zonina, intérprete durante a visita de Sartre à URSS.

EMANAÇÃO: No "DN" do passado dia 7 surgiu uma notícia (creio que não disponível "online") com o título: "Dalai Lama proibido de voltar a reencarnar". No corpo da notícia, é-nos explicado que as autoridades chinesas proibiram novas reencarnações de Buda, naquilo que só pode ser entendido como uma inaudita deriva sobrenaturalista do poder judicial. Ao carácter burlesco da notícia, o jornalista que a redigiu parece ter achado por bem acrescentar um suplemento de cómico involuntário: "O actual Dalai Lama, de 72 anos, vive no exílio desde a invasão chinesa(...). Quando morrer, a emanação de Buda vai reencarnar, passados 49 dias, num dos pequenos monges tibetanos.". O que vem a ser a "emanação de Buda"??? E estará a realidade objectiva da reencarnação suficientemente demonstrada para que o fenómeno seja mencionado com este desprendimento? Não seria obrigação de um jornal sério introduzir este tipo de frase com um palavreado do tipo "Os seguidores da religião budista alegam que..."?

domingo, agosto 05, 2007

LA CARRIÈRE D'ÉRIC: Até ao recente segundo visionamento (primeiro em grande ecrã), na Cinemateca, tinha "La Carrière de Suzanne" como, de longe, o menos conseguido dos "Contos Morais" de Rohmer. Vi-me obrigado a reconsiderar esta opinião severa. Embora obviamente menos rico do que alguns dos títulos que se lhe seguiram ("Le Genou de Claire", "La Collectionneuse", "Ma Nuit Chez Maud" são exemplos óbvios), não faltam méritos a "La Carrière de Suzanne". Em retrospectiva, a personagem de Suzanne, cortejada sucessivamente pelo amigo do narrador e pelo próprio narrador, aparece como o primeiro grande exemplo de um tipo de personagem recorrente nos filmes de Rohmer: a manipuladora involuntária. Durante quase todo o filme, a evolução de Suzanne (a sua "carreira", no fundo) é, aparentemente, um fruto do acaso e do capricho, mais do que de qualquer premeditação. Ao envolver-se sucessivamente com os dois jovens que a assediam, nunca abdica da sua margem de manobra, nem do poder supremo de condicionar o enredo, acabando por se associar romanticamente a um terceiro homem. As palavras finais do narrador são estas:


Cette fille, pour qui je n'avais pu éprouver, au cours de l'année, qu'une espèce de pitié honteuse, nous réglait notre compte à tous sur la ligne d'arrivée, et nous réduisait au rang des gamins que nous étions. Coupable ou non, naïve ou rusée, après tout qu'importait? En me privant du droit de la plaindre, Suzanne s'assurait sa vraie revanche.




Se o narrador de "La Carrière de Suzanne" conhecesse a obra de Rohmer, saberia quão vã pode ser esta pergunta: "ingénua ou astuciosa"? Quase todos os filmes de Rohmer exploram situações em que a ambiguidade dos julgamentos morais é fruto de uma indefinição entre o acaso, a intenção e uma versão marcadamente laica e terrena da predestinação. Tal como o Gaspard de "Conte d'Été", como a Haydée de "La Collectionneuse", até como a Marquesa de O... na adaptação da obra de Kleist, Suzanne pode ser vista como uma estratega sagaz ou como uma personagem que se limita a viver os eventos que ocorrem, independentes da sua vontade. Culpada ou não? Responsável ou não? Este tipo de perguntas nunca perderão a sua pertinência na filmografia de Rohmer, embora raras vezes sejam colocadas de maneira tão explícita. Sobre toda a obra deste cineasta pairam as armadilhas conceptuais subjacentes à possibilidade de formular juízos de valor. Não há realizador que atribua tanta importância à moral, não há realizador menos prescriptivo.


Uma das minhas cenas favoritas deste filme é uma cena que me parece totalmente gratuita (algo de pouco comum em Rohmer), em que as três personagens principais se entregam a uma pouco séria sessão de espiritismo. Trata-se de uma cena longa, na qual, à medida que a mensagem do "espírito de D. Giovanni" vai sendo decifrada, Rohmer intercala curtas imagens fixas de objectos do apartamento onde se desenrola a acção. Essas curtíssimas inserções, à maneira de vinhetas desinseridas de qualquer lógica de "raccord", podem talvez não ter outra função que não seja a de representar a própria duração temporal da cena, e a de sublinhar visualmente, de forma bem-humorada, a nula relevância da cena para a história. (Claro que tudo isto pode ser mero resultado da minha falta de perspicácia para detectar a função dessa cena e dessa opção de montagem.) Mais tarde, a gratuidade nos filmes de Rohmer haveria de se exprimir preferencialmente sob a forma de apontamentos de cariz etnográfico/turístico (a geografia urbana de Nevers em "Conte d'Hiver", os relatos sobre a pesca de alto mar em "Conte d'Été"...), deliciosamente supérfluos.


Para finalizar: gosto muito de uma coisa que António Rodrigues diz, na folha da Cinemateca dedicada à dupla sessão "La Boulangère de Monceau"/"La Carrière de Suzanne": «(...)como todo [o] classicista Rohmer tem a noção exacta das proporções», isto a propósito de todos os seus filmes terem a duração "certa". Sem dúvida que Rohmer é um classicista, e a sua obra arrebatadora surge como demonstração eloquente de que classicismo e liberdade criativa estão longe de ser inconciliáveis.

(Um classicista, um moderno e um criador livre? Mas isso são três desejos, não é possível...)

quinta-feira, agosto 02, 2007

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: E se, numa tarde de verão, um viajante da linha amarela do metropolitano visse uma jovem que lia o livro "Se Numa Noite de Inverno um Viajante", de Italo Calvino? Foi isso mesmo que aconteceu.
QUEBRO O MEU SILÊNCIO SOBRE OS MORANGOS COM AÇÚCAR: Parece-me, por esta altura, inegável que ao Bar do Xavier falta o carisma que fazia do Bar do Fred e do Bar Azul lugares tão especiais, lugares onde parecia natural esperar que alguma coisa de singular e tremendamente relevante acontecesse a qualquer momento; cenários do improvável, generosos catalisadores das intrigas cruzadas que caracterizam esta série tão do agrado do público juvenil. E há que tempos que não vejo um Morang'Ice ser servido!
EPITÁFIO-TRAVELLING, M.A. (1912-2007):




Comparativamente a Bergman, a minha relação com o cinema de Antonioni era menos forte. Ou, pelo menos, é essa a minha convicção, facilmente abalável quando me recordo de obras tão poderosas como "La Notte", "Il Deserto Rosso", "Blow up", "L'avventura" e "Zabriskie Point" (estes últimos os meus três favoritos). Antonioni é um caso invulgar na história do cinema por se tratar de um realizador que, apesar de uma vida e uma carreira muito longas (passaram-se 61 anos entre "Gente del Po" e o episódio de "Eros"), tem as suas principais obras-primas concentradas numa só década, os anos 60. É claro que entra aqui uma importante dose de opinião pessoal: considero os seus filmes a partir de "Professione: Reporter" (inclusive) inferiores aos que acima citei.


Foi gratificante ler que Augusto M. Seabra considera "Zabriskie Point" uma das obras mais subestimadas da história do cinema. Vi este filme na adolescência, na RTP, e na altura marcou-me com intensidade. Faz parte daquele conjunto de filmes em relação aos quais, por uma questão de curiosidade algo mórbida, me pergunto se resistiriam a um segundo visionamento tanto tempo depois do primeiro. (Curiosamente, revi recentemente a cena da explosão no deserto que faz parte deste filme, numa conferência de Delfim Sardo.)


Um dos comentários mais oportunos que li sobre os desaparecimentos de Bergman e Antonioni foi da autoria de Fernando Lopes, que afirmou (cito de memória) tratar-se do fim de uma certa ideia de cinema. De facto, juntamente com Resnais (felizmente ainda vivo, mas para quando seu último filme em salas portuguesas?), Fellini, e mais um punhado de realizadores, Bergman e Antonioni personificavam um cinema de autor com impacto e significado ao nível do grande público, caixa de ressonância do mundo contemporâneo e das suas contradições. Aos seus sucessores (penso em Moretti, Wenders, von Trier, Almodóvar, entre outros cujo programa passa pela coexistência entre a exigência artística e a vontade de alcançar uma audiência significiativa) não falta necessariamente talento; falta, isso sim, o prestígio e a relevância que outras gerações atribuíram ao cinema. Não têm culpa da trivialização a que o cinema tem vindo a ser condenado, da sua subalternização relativamente a formas massificadas de distribuição de imagem em movimento.


Uma das razões pela qual o falecimento, no mesmo dia, destes dois cineastas foi uma amarga ironia do destino foi a maneira exemplar como cada um deles ilustra duas das principais correntes do cinema mundial das últimas décadas. Bergman pertence à linhagem daqueles, como Buñuel, Fellini, Lynch e (até certo ponto) Tarkovsky, que privilegiavam a transposição de fantasmas e obsessões pessoais para a tela, e a tradução pictórica do seu universo pessoal. Quanto a Antonioni, a sua abordagem analítica e impessoal aparenta-o a Godard, Resnais, Greenaway e Bresson. (Claro está que esta classificação se afigura problemática em muitos casos: de que lado da trincheira se poderiam colocar Pasolini, Fassbinder...?)


(Na imagem, David Hemmings em "Blow up".)