terça-feira, setembro 25, 2007
E POR FALAR EM FRUTOS VERMELHOS: Também os "Morangos com Açúcar" se baseiam numa estrutura serial. Os anos passam, mas nunca falta um rebelde, um dono de bar, um professor mau, um professor bom, um deficiente, uma baby doll caprichosa, um delinquente, e uma estudante da Europa de Leste.
Grande parte do encanto desta novela está na maneira engenhosa como os criadores temperam esta lógica serialista, eminentemente conservadora, com a exploração de traços pessoais das personagens, e com a introdução sabiamente doseada de acidentes e contingências. Assim se transmite a ilusão de estarmos perante um programa que evolui no tempo, quando afinal não passa de uma colorida e agitada máquina de auto-preservação, cuja única razão de ser é a sustentação de um simulacro de coerência narrativa ao longo do tempo.
Posto isto, queria chamar a atenção para um dos novos actores, que fazia de criança índigo noutra novela da TVI. A personagem dele faz gazeta às aulas. A vida dá mais voltas do que o carrocel do "Strangers on a Train" do Hitchcock.
O SABOR DA CEREJA: No suplemento "Única" do "Expresso" de 15/9 ocorreu um lapso equiparável ao recente bonifáciogate (tentativa ardilosa de fazer passar John Updike por Thomas Pynchon, devidamente denunciada neste espaço). Numa reportagem intitulada "O Poder do Vermelho", da autoria de Nelson Marques, aparece uma magnífica cereja junto a uma legenda onde são enumeradas as virtudes das amoras pretas (redução do colesterol, inibição do cancro, conservação do equilíbrio, memória e coordenação motora).
Confundir um Grande Escritor Americano com outro Grande Escritor Americano é, indubitavelmente, uma coisa grave: a literatura é uma das mais gloriosas realizações do espírito humano. Querer fazer passar uma cereja por uma amora configura algo de muito mais perverso, ao nível dos fundamentos da semântica e da ontologia do acto de nomear, e promove uma subversão das evidências que mexe com alguns dos fantasmas mais profundos do nosso imaginário colectivo.
Isto para além de que um livro, por mais genial que seja, não possui propriedades antioxidantes nem pectina.
sábado, setembro 22, 2007
FESTA DO CINEMA FRANCÊS: Ora bem, falemos da 8ª Festa do Cinema Francês. Confesso que o programa não me entusiasmou, mas talvez isso seja, em parte, consequência de eu seguir menos de perto o novo cinema francês por comparação com o que fazia há alguns anos. Há nomes que eu desconheço e que, porventura, merecem atenção.
Entre os imperdíveis estão os dois Resnais mais recentes ("Pas sur la bouche" e "Cœurs"). Resnais é um dos génios do cinema mundial, ponto final. Um homem que realizou obras-primas fulgurantes como "Hiroshima Mon Amour", "L'Année Dernière à Marienbad", "Mélo" ou "Providence" já não precisa de mostrar nada para merecer o seu lugar (e que lugar!) na história. Todos os seus novos filmes são obrigatórios, quanto mais não seja porque, pela ordem natural (mas deplorável) das coisas, dentro de algum tempo a expressão "o novo filme de Alain Resnais" deixará de ter cabimento.
Outro filme que farei o possível por ver é "Les Chansons d'Amour", de Christophe Honoré. Vi recentemente "Dans Paris", que me deixou impressão positiva. Honoré parece ter o talento e a energia criativa para se afirmar como um dos autores mais consistentemente interessantes da sua geração. Deixa-me um pouco de pé atrás o facto de este filme ser um musical, mas há que admitir que muitos de entre os melhores passaram com distinção cum laude o seu exame de autor de musicais (Rivette com "Haut Bas Fragile", outra vez Resnais com "On Connaît la Chanson"...). Claro que há excepções (Von Trier com o execrável "Dancer in the Dark", Woody Allen com "Everybody Says I Love You", de que toda a gente gostou menos eu).
De entre as restantes propostas, destaco "Backstage", de Emmanuelle Bercot, pela simples razão de que já li boas referências a filmes anteriores desta realizadora, e "Gradiva", por ser de quem é. Admiro profundamente Alain Robbe-Grillet enquanto escritor, mas nunca contactei com a sua já considerável obra cinematográfica. A presença de Arielle Dombasle no elenco é um ponto contra, mas há que ter vistas largas.
Quanto aos demais, assinalo o elenco promissor de um dos Berri ("Anna M.", com Isabelle Carré e Gilbert Melki), e noto a já habitual tendência francesa para deixar escritores (Robbe-Grillet e Éric-Emmanuel Schmitt) e actores (Roschdy Zem e Laure Marsac) fazerem uma perninha atrás das câmaras. Laure Marsac, para quem não se recorda, era levada ao colo por Tom Cruise em "Entrevista com o Vampiro".
Visite o site oficial. Fiquei ainda a saber que a Festa do Cinema Francês é do sexo feminino e tem 27 anos de idade.
Impõe-se ainda um desabafo: E O RIVETTE?
O NOVO ANO SCOLARI: O "Sargentão" raramente desilude os seus fãs. Emitida a sentença (quatro jogos de suspensão), ei-lo a investir forte e feio no choradinho da injustiça. Punido por uma agressão a um adversário, presenciada ao vivo por dezenas de milhar e via televisão por milhões, o assalariado da Federação Portuguesa de Futebol puxa de uma argumentação que teria mais cabimento num recreio de escola do que numa sala de imprensa: ele é que começou. O seleccionador nacional de futebol deveria saber que lhe é exigido um sentido das responsabilidades superior ao de um qualquer Zezinho que acusa o Huguinho de lhe ter roubado um berlinde. Mas isso seria pedir demais a um treinador que entrou em puro denial sem bilhete de volta.
Quanto a ter reconhecido "frontalmente" o seu erro... Se reconhecer frontalmente um erro passa por negar, com agastamento e veemência, ter cometido qualquer erro, então estamos perante um admirável exemplo de frontalidade.
Uma pessoa que assistia comigo ao Portugal-Sérvia afirmou, após o já memorável semigancho de esquerda a Dragutinovic, que Scolari estava cada vez mais português. Concordo. Saber o hino e gostar de bacalhau à Gomes de Sá são critérios de fiabilidade reduzida. Armar peixeirada em pleno campo (ou, melhor ainda, no túnel de acesso aos vestiários - talvez ainda lá cheguemos) é, esse sim, um indicador sólido de que o processo de indigenização ultrapassou o ponto de não retorno.
domingo, setembro 16, 2007
INSUCESSO SCOLARI: É muito raro eu escrever sobre futebol. São tantos os que o fazem que eu hesito antes de acrescentar algum ruído ao ruído. Mas há ocasiões em que a minha renitência se tem de confessar vencida.
Luiz Felipe Scolari é pago principescamente para exercer uma profissão que implica representar Portugal, e que lhe confere uma visibilidade enorme. Esta posição acarreta deveres e responsabilidades extremos. Dificilmente se poderia imaginar uma situação em que alguém se mostrasse mais indigno desses deveres e responsabilidades do que a que ocorreu em Alvalade, na passada quarta-feira. Agredir um adversário é agredir um adversário, sejam quais forem as atenuantes. Aliás, as atenuantes que têm sido alegadas são do foro da provocação verbal ou física. Não se tratou de um gesto de legítima defesa. Ainda que fosse na sequência de intimidações, tratou-se de uma AGRESSÃO, de um comportamento de arruaceiro, em directo para milhões de espectadores.
Se isto, por si, já seria grave, mais grave e patético (para além, temo-o, de definidor de um carácter) foi a atitude de Scolari na conferência de imprensa: negação pura e simples, tentativa de convencer aqueles que legitimamente o questionavam de que se tratara de uma situação normal em futebol, e de que se limitara a "abrir os braços". Foi de meter dó. Com uma pessoa assim, que nega o óbvio com tão assombrosa desfaçatez, não se argumenta; mas numa pessoa assim não se confia para dirigir homens e uma equipa.
Mesmo o tardio acto de contrição, 24 horas depois, soube a pouco. "Todos erram", afirmou Scolari, como que alegando tratar-se de um gesto de suprema humanidade, de um simples efeito colateral da condição falível partilhada por tudo quanto é Homo sapiens. O que faltou a Scolari foi admitir que nem todos os erros se assemelham pela magnitude, e que a estrondosa gravidade do seu erro colocou seriamente em causa a sua competência para a profissão que exerce.
Salpicando a justa indignação suscitada pelo gesto de Scolari, lá surgem as inevitáveis vozes contemporizadoras, cujo apetite para tapar o sol com uma raquete de badminton só tem paralelo com a prontidão com que falam em "cruzada moralista" de cada vez que alguém se insurge contra uma situação que lhe parece errada. Num país brando nos costumes e flácido na ética, os medíocres e os sonsos safam-se invariavelmente melhor do que aqueles que procuram pôr o dedo na ferida, e cauterizá-la se necessário.
Durante muito tempo, achei descabidas as críticas que choviam sobre o desempenho de Scolari, e impacientei-me contra os remoques de treinador de pantufas dirigidos a um treinador que conduziu Portugal a um vice-campeonato da Europa e às meias-finais de um Mundial. Convenço-me agora de que Scolari está a mais na selecção portuguesa, de cujo destino me desinteresso em definitivo, e cuja ausência do próximo Europeu talvez não fosse tão má como isso para a sanidade do país.
TODA A GENTE CÁ NA CASA PÕE A MÃO NO AR: As séries dos "Morangos com Açúcar" passam, mas certos motivos permanecem invariantes, a ponto de já não se conceber sem eles esta série tão ao gosto do público infanto-juvenil. Pequena lista ao correr da pena:
- Donos de bar de compleição robusta e que nunca apertam os botões de cima da camisa (Fred, Xavier).
- Personagens que desaparecem para países longínquos (Eslováquia, Suécia, Austrália) quando expira o seu tempo de vida útil do ponto de vista da economia narrativa da série.
- Personagens sobre cujas cabeças pende ameaça de recambiamento para lugares inóspitos, longe dos amigos e dos Morang'Ices (Alentejo, e novamente a Eslováquia).
- Acções cometidas sob efeito de substâncias alienantes sub-repticiamente introduzidas num alimento de aspecto inocente (lembram-se das tostas de frango do bar do Fred?).
- Agentes da PSP que ajudam a salvar situações delicadas, mas que são sempre intepretados pelos piores actores.
- Casalinhos separados por um infeliz mal-entendido, que se esclarece poucos dias antes do lançamento da nova grelha da TVI.
Aproveito para sugerir que o Duarte poderia ter facilmente reconquistado a Laura se se prontificasse a cortar o cabelo e deixar de usar Crocs. É um erro crasso acreditar que o amor é cego, em vez de apenas um bocadinho hipermétrope.
segunda-feira, setembro 03, 2007
THE WRONG MAN: Num artigo incluído no último suplemento "Ípsilon", João Bonifácio coloca a diversas personalidades do mundo literário a questão incontornável: "Qual é, afinal, o grande escritor americano vivo?" (com maiúsculas ficava melhor). Entre as fotografias que complementam agradavelmente o artigo, uma não pode deixar de causar perplexidade. A legenda "Thomas Pynchon" fez-me inicialmente acreditar tratar-se de uma adição recente à escassíssima (para não dizer inexistente) iconografia do autor de "Gravity's Rainbow". Um exame mais atento (e a impecável memória visual de Q.) fizeram ruir essa doce ilusão. O indivíduo em questão é, afinal, John Updike.
A fotografia publicada não era esta, mas o aspecto de John Updike é este:
Os deslizes acontecem. E há que admitir que não me pareceria de todo inadmissível que a fisionomia do jovem marujo Pynchon tivesse, ao envelhecer, convergido para a imagem da fotografia anterior. Com um pouco de fantasia e de fé, a coisa passa.
Mas a minha representação preferida de Pynchon é, sem qualquer dúvida, esta:
A fotografia publicada não era esta, mas o aspecto de John Updike é este:
Os deslizes acontecem. E há que admitir que não me pareceria de todo inadmissível que a fisionomia do jovem marujo Pynchon tivesse, ao envelhecer, convergido para a imagem da fotografia anterior. Com um pouco de fantasia e de fé, a coisa passa.
Mas a minha representação preferida de Pynchon é, sem qualquer dúvida, esta:
Subscrever:
Mensagens (Atom)