domingo, julho 27, 2008

O QUE QUERO VER: No suplemento "Ípsilon" do "Público" da passada sexta-feira, foi publicada uma peça sobre a Cinemateca onde foram inseridas algumas palavras da minha autoria. Receio que, pelo contexto em que aparecem, a minha posição possa não ter ficado clara. Eu disse: «Mas é caso para perguntar se deve ser essa a função da Cinemateca, remediar as falhas do circuito comercial.» Isto não significa que, do meu ponto de vista, a Cinemateca não deva mostrar cinema contemporâneo. Bem pelo contrário. O que não me parece é que a Cinemateca deva ter como função tapar os buracos do nosso anémico circuito de distribuição. Concretizando: se obras de realizadores como Lars von Trier, Takeshi Kitano, Apichatpong Weerasethakul, Rudolf Thome, Alain Guiraudie, e tantos outros, não chegam às salas portuguesas, ou chegam com atrasos de anos, seria excessivo pedir à Cinemateca que acudisse a essas lacunas. Vejo a Cinemateca como uma instituição onde os filmes devem ser enquadrados numa perspectiva histórica e temática, e de exploração das linhas estéticas que compõem essa história. O cinema recente deve aparecer num contexto histórico, dando-se ênfase à continuidade (ou à ruptura) relativamente a essas linhas artísticas. Apoio fortemente a exibição de filmes contemporâneos, e acho imperativo que a Cinemateca esteja atenta ao que se passa no mundo, aos novos fenómenos, grupos e correntes que surgem, aos seus parentescos e linhagens. Mas considero redutor que se mostre a obra do autor X ou Y apenas porque lhe é reconhecido valor e o circuito comercial não lhe fez justiça. Isso seria prolongar a lógica da exploração das salas e dos festivais de cinema.
O SEU A SEU DONO: Devo o fotograma do filme "The Wind" ao blog "24 Lies Per Second", infelizmente descontinuado, cuja especialidade é a divulgação de capturas de ecrã de filmes a partir de VHS.

sábado, julho 26, 2008

CINEMA: Lendo a folha da Cinemateca sobre o filme "The Wind", de Victor Sjöström, dou por mim a perguntar-me se Manuel Cintra Ferreira foi vítima de um lapso de memória, ou se terá assistido a uma versão diferente da projectada. Escreve MCF: «E de súbito tudo se acalma. A partir do momento em que Letty aceita o seu destino, em que afirma "I'm not afraid of the wind. I'm not afraid of anything. Because I'm your wife, because I want to work with you, to love you", os elementos acalmam-se.» Mas não é nada disto que se vê. Os elementos, longe de se acalmarem, permanecem agitados e ameaçadores quando Lillian Gish e Lars Hanson os desafiam, no limiar da casa assolada pelo vento, perante uma porta mantida aberta pela areia amontoada. Serei eu o único a ver algo de ominoso e de inquietante neste final, na aparência supremamente feliz? Mais uma vez contrariando aquilo que MCF sugere, não me parece que a tempestade seja uma manifestação dos sentimentos da personagem de Gish. De entre todos os planos do filme, talvez seja este que mais se afasta dessa explicação romântica e psicologizante. Na sua comovente fragilidade, estes corpos enfrentam um poder exterior, independente de qualquer estado psicológico, vontade, verosimilhança ou sentido de justiça. O que se ergue contra as personagens é algo de mais inquietante do que o Mal: é a arbitrariedade da natureza, a sua colossal e imperturbável inumanidade. Pode ser que a fé, a coragem e o amor cheguem para vencer esse poder. Mas nada, nem o bom senso nem as convenções do cinema, nos permitem saber qual dos contendores, separados por uma imaterial soleira de porta, levará a melhor.

domingo, julho 20, 2008

PORÉM: «Rosa era espirituosa, grácil e travessa, qualidades que faziam dela uma figura rococó. Mais tarde, porém, veio a casar com um professor.» (Robert Walser, "Histórias de Amor", Relógio d'Água, tradução de Isabel Castro Silva.)

quarta-feira, julho 16, 2008

GERAÇÃO REBELDE: Contra todas as expectativas, a resiliente Jennifer continua a marcar presença no verão dos "Morangos com Açúcar". Saborosa ironia, a sua rival jurada, a Sara, foi afastada com aquela falta de cerimónia a que os argumentistas da série nos habituaram. O mais curioso é que esta vitória simbólica ocorreu pouco depois de a Jennifer ter passado a usar um penteado semelhante ao da Sara, como se, ao usurpar este atributo físico, aniquilasse a identidade da inimiga. Ao olhar para a Jennifer, o espectador fiel não pode agora evitar ver nela um eco longínquo da Sara. Caso haja alguém cuja vida se tenha tornado mais difícil de suportar sem a Sara (o que está longe de ser garantido), a Jennifer oferece corpo e voz aos seus doentios fantasmas, à sua esperança vã. Se foi essa a ideia dos criadores da série, há aqui, parece-me, uma influência hitchcockiana mal assimilada. Por mais que procurasse, não encontrei uma fotografia da Jennifer com o novo penteado. Fica uma recordação do seu visual antigo, nos tempos idílicos da claque, do namoro com o Luís e das quezílias com a Marília.
SOMETHING WRONG, IRRESPONSIBLE AND MINDLESS: «Someone once asked me about color and I used the occasion to mention a number of times and places in art where color was excluded - Chinese monochrome painting, analytic cubism, Picasso's Guernica, etc. There is something wrong, irresponsible and mindless about color, something impossible to control. Control and rationality are part of my morality.» (Ad Reinhardt, 1960)
«[Grey] makes no statement whatever, it evokes neither feelings nor associations; it is really neither visible nor invisible. Its inconspicuousness gives it the capacity to mediate, to make visible in a positively illusionistic way, like a photograph. To me, grey is the welcome and only possible equivalence for indifference, non-commitment, absence of opinion, absence of shape.»
(Gerhard Richter, 1975)
«One must respect black. Nothing prostitutes it. It does not please the eye or awaken another sense. It is the agent of the mind even more than the beautiful colour of the palette or prism.»
(Odilon Redon)

(Citações retiradas de "Colour in art", John Gage, Thames & Hudson.)

terça-feira, julho 15, 2008

LUGAR ONDE: «New York City is the place where people come to invent, reinvent, or find the room they need to be who they wish to be. It's a place where fictions run freely and plentifully, where people are allowed a certain pretense about themselves, where cultivating a persona or an idea of how to live is permitted, even encouraged.»
(Siri Hustvedt, "A Plea for Eros")
À falta de um lugar onde ocorra uma reinvenção genuína, um honesto sucedâneo será uma cidade que albergue uma ficção sobre a reinvenção que nunca existiu. Uma cidade que assuma o aspecto exterior das expectativas daquele que a procurou, levando-o a crer numa batalha ganha. Uma cidade que seja benigna para aqueles que em nada mudam excepto na convicção de que alguma coisa de relevante mudou, e que euforicamente começam a edificar uma vida sobre essa certeza.

domingo, julho 13, 2008

O QUE HÁ NUM NOME: Em "L'atre périlleux", romance anónimo em verso de meados do século XIII, o cavaleiro Gauvain, modelo de valentia e de nobreza, vê-se confrontado com uma situação invulgar. Lançado na perseguição a um cavaleiro que ofendeu a corte do rei Artur, Gauvain cruza-se com três donzelas em pranto profundo. Interrogadas sobre o motivo do seu desgosto, respondem que ele se deve à notícia da morte do maior cavaleiro do mundo, ou seja precisamente o próprio Gauvain. Em vez de as desenganar, Gauvain esconde o seu nome, e só o revelará quando tiver desfeiteado em combate aquele que lançou o vergonhoso boato. Este comportamento, que pode parecer bizarro, enquadra-se perfeitamente na lógica subjacente aos romances da Távola Redonda. A identidade de um cavaleiro é função dos seus actos, muito mais do que das suas feições ou da sua parafernália de combate. Tanto o rosto e o corpo (quase sempre tapados pela armadura) como as armas e o escudo (que podem ser usurpados por outro que não o seu dono) são elementos de identificação menos fiáveis do que a maneira de agir, as acções mais ou menos corteses, a bravura. Privado do uso do seu próprio nome devido à notícia falsa da sua própria morte, Gauvain sabe que só readquirirá o direito a usá-lo quando se superiorizar àquele que se ufana de o ter batido. Assim, durante as aventuras que compõem a parte central deste romance, Gauvain será o cavaleiro sem nome. Num plano paralelo, a perda e recuperação do nome reflectem a perda e recuperação da própria honra: com efeito, a humilhação sofrida pelo rei Artur deve-se ao sequestro, em pleno banquete, de uma donzela que tinha sido confiada à guarda de Gauvain, e o romance, no fundo, narra a reconquista, por parte deste, do direito de se sentar entre os seus pares da Távola Redonda. Tudo se passa como se a perda dos atributos de excelência e nobreza que estavam associados ao nome de Gauvain fosse expressa no conto pela perda do nome propriamente dito. A dada altura, Gauvain vê-se forçado a interromper uma aventura porque a donzela que o acompanha, declarando-se morta de fome, suplica-lhe que façam uma pausa para comer. O narrador do conto aproveita a oportunidade para se entregar a alguns desabafos misóginos: "Salomon dit en l'un de ses livres qu'il perd toute liberté, celui qui s'embarrasse d'une femme!", etc. A tradutora do romance comenta, em nota de rodapé: "Les couplets anti-féministes sont extrêmement fréquents dans ces textes". Há que notar que o narrador, para além de chauvinista, é injusto, pois é graças a este desvio para obter mantimentos que Gauvain consegue recrutar a ajuda de sete cavaleiros que lhe permitem sair vitorioso do combate desigual para o qual se dirigia, e é também essa excursão forçada devida à desnutrição da donzela que torna possível o reencontro de dois pares de amantes.
ADENDA: A propósito disto, com o falecimento, aos 100 anos de idade, de Jean Delannoy, são apenas dois os realizadores franceses vivos distinguidos com o prémio supremo do festival de Cannes: Claude Lelouch e Laurent Cantet. Esse número sobe para três se se contar com o franco-grego Costa-Gavras.

sábado, julho 12, 2008

POR FALAR EM CORES, UM POUCO DE ARTE AO AR LIVRE: Por razões de todos conhecidas, falou-se muito, nestes últimos dias, dos prédios devolutos de Lisboa, e em especial dos prédios devolutos da Avenida da Liberdade. Um facto que todas as reportagens e todos os comentários preferiram, convenientemente, ignorar é a existência de uma porta de uma fachada de um prédio devoluto, próximo da esquina da Rua Alexandre Herculano, que se encontra integralmente pintado com uma cor muito semelhante (para não dizer idêntica) ao famoso azul de Yves Klein. Para quem conhece a zona, não fica longe do café/restaurante da cadeia "Coffee & Pot", cuja tão badalada sanduíche "Enigma" (beringela, queijo de cabra e bifana) continua a dividir opiniões, e que veio oferecer uma interessante alternativa de restauração aos frequentadores da Cinemateca. Sim, porque o próprio restaurante da Cinemateca continua sem me convencer, seja ao nível da ementa, da eficiência do serviço ou da decoração (Marisol ao lado de Marguerite Duras???).
BLÙS E BULÙS: «(...)the Italian Futurist Fortunato Depero also wrote a short abstract stage piece, Colours, in which four coloured shapes in a bare blue room held a conversation in an abstract language. The dark-grey ovoid spoke interminably in an 'animal-like' voice, with many is and us, including frequent blùs and bulùs. The dynamic red triangular polyhedron spoke in a 'roaring, crashing' voice, with many sharp consonants, in words such as 'TORIAAAAKRAKTO'. The long, sharp, white shape spoke with a 'sharp, thin, brittle voice' with many is and zs, and the black multiglobe uttered deep, sonorous ms and os in a 'very profound, guttural voice'.» (in "Colour in art", John Gage, Thames & Hudson) Ao que consta, esta peça nunca foi levada à cena, o que é uma verdadeira lástima.

domingo, julho 06, 2008

MOMENTO DE CRÍTICA LITERÁRIA: «F-se! Qual Camões!? Qual Cesário Verde!? Qual Fernando Pessoa!? Qual Herberto Hélder!? Qual Cesariny!? Bom. Bom é o António Franco Alexandre!!!» Eu teria provavelmente empregue mais rodeios e menos vernáculo, mas solidarizo-me com este desabafo. A. Franco Alexandre é talvez o meu favorito entre os poetas portugueses em actividade. Há muito que alimento a ideia de escrever umas linhas sobre a sua obra.
A HORA RIVETTE (10): Se fosse necessário encontrar uma linha de força em torno da qual se pudesse articular um esboço de sumário para "Out 1", essa linha de força seria provavelmente o binómio inclusão/exclusão. Quase todas as movimentações de personagens estão relacionadas com o esforço de se aproximar de um grupo, de manter um grupo coeso, de se integrar, ou de favorecer a desagregação de um colectivo, ou com a tentativa de distinguir iniciados de leigos. O peso, a importância, a real influência social desses grupos é bem menos importante do que a sua capacidade para suscitar dinâmicas centrípetas e centrífugas, ou até as tangentes protagonizadas, de forma independente, por Frédérique (Juliet Berto) e por Colin (Jean-Pierre Léaud). Assim se compreende que a real natureza dos "treze" (grupo poderoso ou simples piada entre amigos?) permaneça indefinida. Quanto aos dois grupos de teatro a braços com os textos de Ésquilo, é sintomático que o mais duradouro seja aquele que investe uma menor fracção da sua energia na planificação construtiva de uma peça. Ao passo que o grupo de Lili (Michèle Moretti) desenvolve trabalho concreto de encenação dos "Sete Contra Tebas" (estudo do espaço, vocalizações, movimentações dos actores, leituras) e acaba por se desfazer, o grupo de Thomas (Michael Lonsdale), após algumas discussões iniciais sobre as ideias subjacentes ao "Prometeu Agrilhoado", passa a dedicar-se a exercícios e improvisações que só muito remotamente estarão relacionados com a peça, e acaba sobrevivendo até perto do final do filme. Esvaziar deliberadamente de propósito as suas actividades é aqui a estratégia correcta para contrariar a tendência natural para o desmembramento. Os "treze", que integram elementos de ambos os núcleos, são o grupo mais resistente de todos os envolvidos no filme, precisamente porque, mais ainda do que os seus objectivos, é a própria existência do grupo que se encontra envolvida na dúvida. Os "treze" respiram a própria precariedade, a própria fragilidade dos seus vínculos. Desprovida de sentido, à união dos seus membros ("sainte fut notre union", como reza o enigma que quase leva Colin ao desespero) resta existir, pois não pode contar com mais nada - plausibilidade, cabimento, verosimilhança. (Continua...)