segunda-feira, setembro 29, 2008

PAUL NEWMAN (1925-2008): Não faltará, a propósito da morte de Paul Newman, quem fale no "último dos clássicos", ou no "último dos grandes", ou no "último dos monstros sagrados". Estas expressões são frequentemente usadas em alusão a uma suposta idade de ouro do cinema, irremediavelmente pretérita, e que não admite comparações com os tempos de hoje. Mas a grandeza não pode ser refém de nostalgias preguiçosas. Paul Newman foi um dos maiores porque teve o talento e a coragem para, durante a sua longa carreira, impor a sua personalidade aos papéis que encarnou, estendendo um longo fio, indelevelmente humano, que atravessa a sua filmografia. Tal como outros seus parceiros na excelência (James Stewart, Cary Grant, e mais uns quantos), Paul Newman legou à posteridade a sua presença, uma resiliência que tem tanto de moral como de artístico, o hábito do tom justo, um virtuosismo discreto mas subtilmente enérgico, e tantas mais coisas que hão-de ser recordadas com saudade muito tempo depois de as tonitruantes acrobacias de um Daniel Day-Lewis terem caído no esquecimento.
A HORA RIVETTE (12): A 20ª longa-metragem de Jacques Rivette (ou 21ª, se contarmos as duas partes de "Jeanne la Pucelle" como dois filmes diferentes) já se encontra em fase de rodagem. O título será "36 Vues du Pic Saint-Loup". O acidente montanhoso em questão situa-se na região do Hérault, no sul de França, muito perto do local onde foi filmado "La Belle Noiseuse". Do elenco fazem parte Jane Birkin ("L'Amour par Terre", "La Belle Noiseuse"), Sergio Castellitto ("Va Savoir") e Julie-Marie Parmentier. Esta última é uma jovem actriz de que gosto bastante. Foi descoberta por Noémie Lvovsky (actriz, realizadora e argumentista, revelada nos anos 90, colaboradora de Arnaud Desplechin nas primeiras obras deste) em "Petites", filme para a televisão de 1997. Os outros cúmplices do filme de Rivette são os do costume: Martine Marignac na produção, Christine Laurent e Pascal Bonitzer no argumento, Willy Lubtchansky na fotografia.

sábado, setembro 27, 2008

A TÉCNICA DA FORÇA E A FORÇA DA TÉCNICA: Num programa humorístico português recentemente emitido pela RTP, um "sketch" explorava a possibilidade de modalidades desportivas híbridas, como por exemplo boxe e corrida de 100 metros em simultâneo, ou luta greco-romana intercalada com ballet clássico. Uma modalidade híbrida talvez ainda mais inverosímil do que esta seria o "chessboxing", um improvável casamento de pugilismo e xadrez. O potencial humorístico desta modalidade estará talvez um pouco diminuído pelo facto de se tratar de uma modalidade autêntica. Com efeito, o "chessboxing" tem vindo a ganhar adeptos, e o número considerável de combates que se vão disputando reflecte esta popularidade crescente. O princípio é simples: os dois adversários alternam assaltos de boxe com lances de xadrez, e o vencedor é o primeiro a pôr "knock-out" o oponente ou a dar xeque-mate. O leitor pode deliciar-se aqui com uma descrição suculenta de um combate recente realizado em Londres, e seguir os enlaces no fim do artigo se quiser saber mais sobre os pontos de contacto entre a nobre arte e o jogo dos reis. Uma das minhas partes preferidas do artigo: 6.Be2 Bg7. “TAKE HIS ROOK!!” barked a heavily tattooed 20 stone man with whom I wouldn’t want to argue the legality of such a suggestion.
A HORA RIVETTE (11): (Continuação disto.) Na esmagadora maioria dos casos, um filme de ficção passa pela transmissão de uma ideia, de uma sucessão de peripécias, de um retrato psicológico, de uma situação social que se pretende denunciar, ou de uma combinação destes. A concretização desta intenção artística recorre a um arsenal de técnicas, consagrado pelo tempo e pelo senso comum, do qual fazem parte convenções narrativas e elementos formais de variadíssimos tipos. Em maior ou menor grau, um filme recorre à elisão, ao subentendido, a pressupostos sobre o contexto cultural em que o espectador se insere, à alusão, à ironia, a uma multiplicidade de códigos que traduzem a dimensão da existência fictícia numa narrativa cinematográfica. Mas como construir uma narrativa quando a existência fictícia das personagens, assim como a relevância que justificaria o acto de filmar, não são um dado adquirido? Por outras palavras: como filmar personagens forçadas a construir o próprio estatuto, a justificarem-se perante o processo que as traz do nada para a ficção? São poucos os que se atrevem a meter ombros a esta tarefa, que equivale a sondar as próprias raízes do mecanismo ficcional. Em "Out 1", as personagens vivem em dúvida permanente sobre os vínculos que as unem. O cabimento de cada gesto e de cada palavra só podem ser compreendidos no contexto de um esforço permanente, um esforço de construção do próprio estatuto e de posicionamento face aos demais. As personagens não podem ser socorridas por um conjunto de convenções que, ao inscrevê-las no plano da ficção, traduzissem a sua essência ou a sua importância para o enredo. Essa essência não existe. À falta desse recurso, resta-lhes ocuparem o tempo da ficção e definirem-se por compreensão, e para isso só podem contar com o seu corpo, com a sua voz, com os seus gestos inscritos na temporalidade do filme. Aqui reside a singular e exaltante beleza deste filme. O que de raro sucede aqui é isto: diante dos nossos olhos, personagens conscientes da fragilidade da história que os une, da condição precária em que se encontram, lutam pela sobrevivência enquanto entidades fictícias. Essa luta passa, no fundo, pela mais simples das coisas, e simultaneamente a mais subtil: existir. Pouco importa se tal passa por um passo dado numa rua de Paris, por uma tentativa de extorquir dinheiro, pela procura do tom justo no coro de uma peça de Ésquilo. Roça-se em algo de muito misterioso e muito secreto, neste filme, e custa admitir que as tensões que o atravessam não encontram um equivalente quase perfeito nas vividas por homens e mulheres, em busca do seu quinhão de humanidade, nesse mundo paralelo ao dos filmes que é o mundo real.

domingo, setembro 21, 2008

O MEU DEFUNTO MERECE MAIS PESAR DO QUE O TEU: Percorrendo a lista de votos levados a votação no Parlamento, parece-me difícil de contestar que, se há alguns que são imperativos humanos (votos de pesar por ocasião de catástrofes como o sismo da China ocorrido neste ano), muitos relevam da mais pura irrelevância (votos de congratulação pelo 90º aniversário de Nelson Mandela e por um título mundial de kickboxing, votos de protesto pelo encerramento da maternidade de Elvas, pela ilegalização de uma organização de jovens comunistas na República Checa e, o meu favorito, pela "situação criada no sector profissional do andebol"). Mais irritante é a tendência, julgo que crescente, de usar os votos de pesar como arma política. Só nos últimos meses, assistiu-se a picardias relacionadas com os votos de pesar pelo centenário do regicídio e dos falecimentos do cónego Melo e do escritor Aleksandr Solzhenitsyn, para citar apenas os casos mais notórios. Em todos estes casos, as personalidades evocadas foram convertidas em armas de arremesso político por deputados que sabiam estar a envolver os seus adversários políticos num jogo de cara-ganho-eu-coroa-perdes-tu. Negar-se a aprovar um voto de pesar fica sempre mal na fotografia, disso estão plenamente cientes aqueles que os apresentam. Deveria haver limites para a instrumentalização do respeito pela morte prevalecente na sociedade ocidental, mas não vejo como impor esses limites a não ser por um apelo ao bom senso. A argumentação política não deveria depender do número de mártires que cada lado da barricada é capaz de trazer à berlinda, solicitando aos oponentes que escolham entre inclinar-se perante a sua memória ou passar por impiedosos. No meio de tudo isto, são engolidas pelo ruído as homenagens justíssimas a pessoas como Fiama Hasse Pais Brandão, Eduardo Prado Coelho e Maria Gabriela Llansol.
A ARTE DA CONVERSAÇÃO: Em qualquer conversa mais séria, seja qual for o seu teor, é sempre oportuno fazer uma asserção com esta forma: "De qualquer maneira, neste país nunca houve uma política coerente de... "(inserir o assunto em questão, por exemplo Educação, Obras Públicas, Ordenamento do Território, Promoção da Língua...). Em vez de "coerente", pode usar-se "integrada" ou "consistente". Para além de o fazer passar por uma pessoa bem informada, uma frase como esta poderá ainda ter, à laia de bónus, a virtude de encerrar a conversa de forma lapidar, e propiciar a deriva para outros temas mais agradáveis, mexericos, ou um silêncio plácido e morno que permita a cada um empregar a sua mente como lhe aprouver.
A PENSAR EM SI (2): Quem se dava ao trabalho de enlaçar um dos posts deste blog via-se, até agora, confrontado com uma tarefa pouco menos do que impossível. O "permanent link" incluído no fim de cada post estava, sabe-se lá por que artes luciferinas, incorrecto. Também este problema foi resolvido. Desapareceu uma das poucas desculpas que ainda poderia ser invocada para não enlaçar artigos deste blog. Restam as outras, mais frágeis e absurdas, como por exemplo: não gostar de blogs, não gostar deste blog, não ler este blog, não saber o que é um blog.
A PENSAR EM SI (1): Durante muito tempo, este blog não permitiu "feeds". O caudal de mails de leitores que manifestaram consternação pelo facto foi tão intenso que criei inimizades na Yahoo! O caso, espero, está resolvido. Os leitores podem, a partir de agora, acrescentar o 1bsk ao seu agregador de "feeds" favorito, sem arrelias, mediante um simples clique. Em caso de dúvidas ou problemas técnicos, estejam à vontade para me escrever, e aproveitem para revelar o vosso recheio de bombom favorito.

quinta-feira, setembro 18, 2008

DO CONTRA: Matilde Sousa Franco está tão habituada a votar em sentido contrário aos seus colegas da bancada do PS que, se não estiver atenta, corre o risco de votar a favor da proposta de alargamento do casamento a pessoas do mesmo sexo. São estas ironias do destino que dão algum sabor ao desenxabido cozinhado da existência humana, e a sua improbabilidade só aumenta a sua suculência.

domingo, setembro 14, 2008

JUKEBOX INTRACRANIANA: Ofereceram-me há poucos dias os 2 CDs de Amy Winehouse, e há certas canções que não me saem do ouvido, em especial "F**k Me Pumps" e "In My Bed".

sábado, setembro 13, 2008

O PAPA EM FRANÇA (2): «Il n'y a pas de laïcité positive ou négative, ouverte ou fermée, tolérante ou intolérante. Il y a la laïcité. C'est un principe républicain.» (François Hollande, secretário-geral do PS) «En tant que personne, il a le droit d'avoir ses convictions, mais en tant que président de la République, il doit être le garant de quelque chose qui est fondamental aussi pour la cohésion de ce pays et la capacité de vivre tous ensemble dans de bonnes conditions.» (Cécile Duflot, secretária nacional do partido "Les Verts") «Je suis contre le mélange des genres entre l'Etat et la religion.» (François Bayrou, presidente do "Mouvement Démocrate") «Nicolas Sarkozy met toujours un adjectif à côté de la laïcité et ça m'inquiète. Je préférerais qu'on en reste au concept lui-même.» (Marie-George Buffet, secretária nacional do Partido Comunista Francês) (Citações retiradas daqui.)
O PAPA EM FRANÇA: Este papa, como todos os papas, é um inimigo da laicidade. Como parece mal dizê-lo frontalmente, o artista anteriormente conhecido como Ratzinger entrega-se periodicamente a exercícios de contorcionismo retórico em que, fingindo elogiá-la, critica com aspereza a laicidade, a verdadeira laicidade, aquela que impõe uma separação estrita entre Estado e Igreja e recusa qualquer contaminação entre religião e esfera pública. Não me surpreende que Bento XVI exalte a "laicidade positiva" preconizada por Nicolas Sarkozy, porque esta é uma pseudo-laicidade conivente, que procura relativizar a lei da separação de 1905, e que cai como sopa no mel do Vaticano que nunca perdoou à França ter-se escapado do redil cristão. Mais de 100 anos depois, palavras como estas, da encíclica de Pio X "Vehementer Nos", continuam a encontrar na Santa Sé uma caixa de ressonância muito favorável: «Qu'il faille séparer l'Etat de l'Eglise, c'est une thèse absolument fausse, une très pernicieuse erreur. Basée, en effet, sur ce principe que l'Etat ne doit reconnaître aucun culte religieux, elle est tout d'abord très gravement injurieuse pour Dieu, car le créateur de l'homme est aussi le fondateur des sociétés humaines et il les conserve dans l'existence comme il nous soutient.» Quanto à recepção oficial com que Bento XVI foi honrado, nenhum dos dois argumentos que a poderia justificar possui consistência. Se as honrarias se devem à sua condição de chefe de estado, então torna-se necessário relembrar que o Vaticano é um estado de duvidosíssima legitimidade, uma herança dos estados papais que ajudaram a desestabilizar a política europeia durante séculos, e cujo estatuto de soberania resulta de negociações com Mussolini que culminaram no habilidoso tratado de Latrão. Trata-se, bem entendido, de uma monarquia teocrática absoluta, sem uma amostra de democracia a não ser o folclórico conclave (ao qual, que me conste, não costumam ter acesso observadores internacionais), e sem separação de poderes. É preciso acrescentar mais? Se os rapapés oficiais são uma forma de reconhecimento do poder espiritual do papa, e da sua condição de mentor de milhões de católicos, então o que há a dizer é que os cidadãos Sarkozy e Bruni têm todo o direito de acolher e honrar todos os cardeais, imãs, rabinos, arquimandritas, monges e gurus que lhes apetecer - mas apenas fora das horas de expediente, e não em nome de quem elegeu o presidente e de quem ele representa.
NÃO TÃO ESQUECIDOS QUANTO ISSO: No número de Setembro da revista "Ler", João Pereira Coutinho menciona um livro ("The Rest Is Noise: Listening to the Twentieth Century", de Alex Ross, Farrar, Straus and Giroux) "que faz justiça a certos nomes injustamente ignorados, ou até ridicularizados, como Sibelius ou Samuel Britten". Não me consta que Sibelius seja um compositor ignorado, muito menos ridicularizado. Julgava-o reconhecido como um dos sinfonistas mais brilhantes do século XX. A edição de 2002 do "Penguin Guide to Compact Discs" dedica-lhe 20 páginas, contra apenas 11 para Debussy e 10 para Bruckner. Mas as modas, como todos sabemos, são voláteis, e pode ser que ele tenha deslizado para um ponto tragicamente baixo de popularidade sem que eu tenha dado por isso. Quanto a Samuel Britten, há uma excelente razão para ser ignorado: nunca existiu. Suponho que João Pereira Coutinho se queria referir a Benjamin Britten, ou talvez a uma quimera conceptual composta pela cabeça de Britten e pelo corpo de Samuel Barber. Em todo o caso, estes compositores estão longe de ser ignorados, parece-me, mas os mesmos caveats do parágrafo anterior aplicam-se aqui.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na estação de metropolitano do Campo Grande, um cavalheiro lia, de pé, uma tradução inglesa dos contos de Andersen.

domingo, setembro 07, 2008

TODOS LOUCOS PELA POLÓNIA: Há quem critique o Prof. Cavaco Silva por se alhear da condição profunda das gentes do país a cujos destinos preside. Estas vozes críticas foram obrigadas a calar-se (esperemos que de forma duradoura) quando, com o desassombro que dele é apanágio, o Prof. Cavaco declarou, numa sua recente visita de Estado, que a Polónia "está na moda" em Portugal. É preciso que um presidente esteja sintonizado com a sociedade civil, e com os seus cidadãos, para ousar fazer asserções com este alcance de forma tão tranquila; um presidente que conheça a realidade de um Portugal onde a Polónia, inegavelmente, faz furor em todos os sectores. Ele é cidadãos anónimos a recitar versos de Adam Mickiewicz nos transportes públicos, ele é cursos de polaco a debaterem-se com excesso de lotação (ao passo que idiomas obsoletos, como o inglês e o francês, perdem popularidade com uma rapidez arrepiante), ele é ementas de restaurante repletas de alternativas apetitosas como sopa de beterraba, sopa de pepino, costeletas de porco panadas, pato assado com maçãs, panquecas de batata com natas, folhas de couve recheadas com carne picada, salsicha de sangue com papas de cereais, bolo de queijo fresco e bolo recheado de sementes de papoila, ele é ciclos de cinema dedicados a Andrzej Wajda e Krzysztof Kieslowski, com filas tão grandes que dão a volta ao quarteirão, ele é agências de viagens a lançar pacotes para satisfazer a crescente procura de destinos turísticos na Polónia, em detrimento de Londres, Roma e Varadero... Deixando agora a ironia aconchegada no seu cantinho: há que traçar a fronteira entre a diplomacia e o puro delírio hiperbólico, e o presidente da República, com esta declaração, prestou um estimável contributo para esta tarefa topográfica.

sábado, setembro 06, 2008

JURISPRUDÊNCIA NOBRE GUEDES: Na verdade, este blog acabou há mais de um ano. Eu é que não o tinha revelado a ninguém. Se o Paulo Portas tem este direito, porque não eu?
CINEMA: Enquanto não chega a altura de escrever, em termos elogiosos, sobre "Aquele Querido Mês de Agosto", deixo apenas um apontamento. Este apontamento, para usar uma expressão útil e consagrada pelos cânones, "vale o que vale". Algumas filas atrás de nós, antes de começar a sessão, uma senhora falava ao telemóvel, e explicava ao seu interlocutor que ia ver um filme português "que teve cinco estrelas no Expresso". Um ponto a favor daqueles que acham que a crítica tem uma influência palpável nos comportamentos dos frequentadores das salas de cinema.