Este conto moral é também um conto de fadas. Conduz-nos um fio nítido, através dos penhascos da moral até uma clareira de felicidade onde os dilemas se resolvem aparentemente por si só, onde as inclinações e a ética coincidem. Tanto melhor se esse lugar for luminoso e idílico como as margens do lago de Annecy no princípio do verão.
Jérôme a viver o acontecimento. |
Jérôme fala num desejo puro, mas até mesmo os desejos puros são afligidos pela necessidade desgraciosa de um objecto, nem que esse objecto seja a parte mais neutra do corpo humano. O joelho de Claire reduz-se à condição de testemunho, superfície orgânica que sanciona o gesto – mau grado a demora e intensidade do afago, no abrigo solitário batido pela chuva.
Jérôme a contar o acontecimento. |
As personagens de Rohmer confundem destino, vontade e acaso – quase sempre por ignorância ou inconsciência, quase nunca por malícia. Acreditam-se senhores da sua sorte, julgam produzir o seu próprio enredo e felicitam-se pelo seu engenho, ainda que o desfecho seja óbvio ou enfadonho. Preocupam-se com o efeito dos seus actos (inócuos) em terceiros. Preocupação vã... Todas as personagens desta história porfiam nas trajectórias que já eram as suas no começo. O gesto puro de Jérôme (a pele da mão contra a pele do joelho) consumiu-se a si próprio, vergado ao peso do significado que o seu autor lhe atribuiu. O antes e o depois do gesto assemelharam-se fielmente.
Este conto moral é também um conto de trevas. Jérôme apodera-se de um discurso alheio (as teorias e devaneios literários da sua cúmplice Aurora) e torna-o seu instrumento, projecção ficcional que ele concretiza ao mesmo tempo que a descreve, cobaia de si mesmo. O seu propósito não é menos condenável por ser inofensivo. Coloca-se na posição de quem se pode dar ao luxo de fazer o gesto que convém ao seu apetite, por ser o único gesto correcto. Côncavo da mão surpreendentemente ajustado ao convexo do joelho. A moral tornada redundante.
«O Joelho de Claire» («Le Genou de Claire»). Argumento e realização: Éric Rohmer. Interpretação: Jean-Claude Brialy, Aurora Cornu, Béatrice Romand, Laurence de Monaghan. França, 1970.