quinta-feira, junho 28, 2007

IDEIA PARA UMA PEÇA: Na primeira cena, duas personagens discorrem longamente sobre a vantagem e legitimidade, por parte de uma autarquia, de delegar em empresas municipais certas atribuições que lhe são próprias. Uma das personagens está disfarçada de mosqueteiro, a outra de chefe índio. Segue-se um baile de máscaras, no qual uma intriga de enorme complexidade e envergadura soçobra devido à intervenção do factor humano. Para finalizar, algumas lamechices.
AZEITE VIRGEM DE CALTANISSETTA: Queria destacar duas das compras que fiz na Feira do Livro deste ano.

A mais estimulante: "Dream of Fair to Middling Women" (Arcade Publishing), de Samuel Beckett.





Sou admirador profundo, convicto, apaixonado e feroz da prosa de Beckett, mais ainda do que da sua escrita para o teatro. Da, chamemos-lhe assim, proto-história desta prosa faz parte "More Pricks than Kicks", esse prodígio de erudição e sarcasmo que já se atravessou no meu caminho. Tal como esta última obra, "Dream of Fair..." ficou por publicar na altura da sua concepção; ambas seriam alvo, mais tarde, por parte do próprio autor, de um cepticismo coriáceo quanto aos seus reais méritos. Felizmente que, contra todas estas adversidades, ambas acabaram por ver a luz do dia sob forma impressa. Beckett escreveu "Dream of Fair..." no verão de 1932, na Rue de Vaugirard, que nenhum aficionado de estatísticas ociosas ignora tratar-se da mais longa artéria parisiense.

Lendo a contracapa, ficamos a saber que este livro é "Indispensable to anyone interested in the pulse of twentieth-century art" (St. Petersburg Times). Não me reconhecendo nesta descrição (será a arte do século XX um doente com achaques que recomende a monitorização dos seus sinais vitais?), não deixo de me sentir perfeitamente à vontade para subscrever, com gestos enfáticos e impacientes, a parte do "indispensável".


A mais impulsiva: "A Mafia Senta-se à Mesa - histórias e receitas da onorata societá [sic]", de Jacques Kermoal e Martine Bartolomei (Teorema).





(Na figura, a capa da edição francesa.) Onde se fica a saber como confeccionar salmonetes com sementes de funcho, borrego assado com azeite virgem de Caltanissetta, espargos quentes com natas de ovelha, e Flan de castanhas, e em que ocasião tais iguarias acompanharam momentos marcantes da história da cosa nostra.

Para quando uma história gastronónica de Portugal, com coordenação de José Mattoso e receitas ilustradas do Chefe Silva?

sábado, junho 23, 2007

E, POR FALAR EM NOMES DE REALIZADORES...: Na Fnac do Chiado, sector dos DVDs, alguém, suponho que um funcionário zeloso, rasurou com caneta azul o "R" que corrompia a correcta grafia do nome do realizador de "La Dolce Vita" ("Frederico Fellini"). Ainda não perdi a esperança de que alguém acabe por reparar no "S" traiçoeiro que se insinuou no nome de "Tarkosvsky", mesmo ao lado.
PARA DESCOMPLICAR: Não terá escapado a nenhum cinéfilo digno dos seus galões que "Uzo", lido ao contrário, fica "Ozu". Espera-se ardentemente que surjam em breve novos tarifários com nomes como "Awasoruk", "Esuran", "Namgreb" ou "Dradog".
ALCARAVIA: O livro "Ervas Aromáticas e Especiarias" (Jill Norman, Dorling Kindersley/Civilização) descreve o aroma da alcaravia (Carum carvi) como sendo pungente, ardente e agridoce, bastante picante, com uma nota de casca seca de laranja e um travo leve mas demorado de anis.



Esta especiaria será fácil de encontrar em Lisboa?


Qualquer sugestão representaria uma ajuda supremamente bem-vinda.

quarta-feira, junho 20, 2007

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS (*): Num dos episódios de "Yes, Minister", a mulher do ministro Jim Hacker está a ler, na cama, o romance "Rites of Passage", de William Golding, por sinal um grande livro. A fotografia do autor na contracapa dissipa quaisquer eventuais dúvidas. (*) Neste caso, em lugares privados e fictícios.
BARBAS E RELÂMPAGOS: Segundo Vasari, o pintor Raffaello Sanzio comparou os músculos dos estudos de anatomia com os músculos de seres humanos vivos, e observou a trama dos ossos, nervos e artérias até atingir o grau de maestria na reprodução do detalhe que se exige a um pintor de excelência. Porém, ao dar-se conta de que nunca seria capaz de atingir a perfeição de Michelangelo, Raffaello optou por trabalhar mais aprofundadamente a disposição dos elementos no quadro, e esforçou-se por estudar tudo o que é necessário à arte da pintura: tecidos, sapatos, capacetes, armaduras, penteados femininos, cabelos e barbas, vasos, árvores, grutas, rochedos, fogos, céus tempestuosos ou limpos, nuvens, chuvas, relâmpagos, o bom tempo, a noite, o luar, os efeitos do sol, etc.





(Santa Cecília com santos, c. 1514-1516.)

sábado, junho 16, 2007

FRACOS EM HISTÓRIA E EM DOUTRINA?: Quando ocorre um feriado de cariz patriótico, é comum as nossas televisões passarem reportagens de rua daquelas em que se questiona o transeunte incauto sobre o significado da efeméride. Infalivelmente, basta uma meia dúzia de balbuceios hesitantes («Restauração da independência... Foi quando D. Afonso expulsou os mouros, não foi?») para conduzir o repórter, alegre e fatidicamente, até à conclusão de que os portugueses ignoram a história do seu próprio país. Tudo isto sobre fundo de imagens de arquivo da multidão na Rua Augusta, com um ar adequadamente ocioso e alheado. Estranhamente, é bastante mais raro que semelhante zelo seja aplicado aquando dos feriados religiosos. Neste país em que os índices de catolicismo atingem, alegadamente, os noventa e tantos por cento, quantos cidadão seriam capazes de explicar o que se celebra no dia do Corpo de Deus, da Assunção de Nossa Senhora, ou da Imaculada Concepção (o mais ardiloso "falso amigo" de todos os dogmas)?
GREGOS E TROIANOS: Nem Ota, nem Alcochete, nem Poceirão. Construam o novo aeroporto no Second Life!

quinta-feira, junho 07, 2007

UM EXEMPLO PARA TODOS: «Desde João Soares que Lisboa está financeiramente ingovernável. Os presidentes podem fazer um ou outro arranjo, centrar as atenções numa ponte ou num viaduto ou num grande plano de reconversão da Baixa, que a distracção pode ter sucesso, mas as dívidas e os juros crescem exponencialmente. Sem resolver esta questão, tudo o resto é fazer uns arranjos florais nos jardins. O único exemplo a seguir é o de Rui Rio. Apareça alguém a dizer que vai seguir o exemplo do Porto, ouça-se o espernear dos animadores culturais a dizer de que o “contabilista” está a “matar” a cidade, e Lisboa pode vir a ser finalmente governável.» (Pacheco Pereira, no Abrupto, A.D. 14/5/2007. Negritos meus, e ai de quem mos tentar tirar.) Não sei o que é mais deplorável nesta citação, mas talvez seja isto: a convicção implícita de que não existe um meio termo entre a prodigalidade desvairada e uma parcimónia em guerra aberta contra a alegada subsidiodependência dos agentes culturais. Ou, por outras palavras: a alegação de que a luta contra o despesismo não admite outra postura que não seja a de Rio. Para além das boas práticas contabilísticas, urge reconhecer aquilo que a atitude do edil portuense encerra de populismo duro e puro. Sonegar alguns milhares de euros a companhias de teatro pouco peso terá nas contas municipais, mas inscreve na coluna do activo uma quantia choruda em divisa das mais fortes: inimigos impopulares. Refiro-me aos tais animadores culturais, a quem o continuado hábito de exercer uma actividade artística à custa de dinheiros públicos faz merecer o estigmatizante estatuto de parasita. Quem será o autarca que não singra com o ressentimento desses saltimbancos ociosos, detestáveis aos olhos do bom povo que trabalha para ganhar a sua tosta mista e o seu panaché? O meu populista é menos populista do que o vosso populista. Desgraçadamente, muita da argumentação sociopolítica que por aí se ouve e lê não passa de uma glosa preguiçosa desta frase.