Estou a tentar pensar num comentário sobre este livro que seja ao mesmo tempo mordaz, sofisticado, irónico e profundo, mas o meu gato não me deixa em paz e é impossível concentrar-me.
(Como não dar razão, perante isto, a José Manuel Fernandes?)
Estou a tentar pensar num comentário sobre este livro que seja ao mesmo tempo mordaz, sofisticado, irónico e profundo, mas o meu gato não me deixa em paz e é impossível concentrar-me.
(Como não dar razão, perante isto, a José Manuel Fernandes?)
Há uns dias cometi uma proeza. Numa só noite, revi o magnífico filme "La Chinoise", de Godard, e não vi "A Bela e o Paparazzo", de António-Pedro Vasconcelos, auto-proclamado dissidente do cinema europeu. Mas seria ir longe demais reivindicar que decidi ler um romance de François Mauriac por ele ser avô de uma das actrizes do filme (Anne Wiazemsky). Os motivos foram outros: o livro estava a 1 euro nos últimos saldos da Buchholz, e tenho um fraco por romances que se passam no meio moralmente corrupto e hipócrita de uma certa burguesia francesa.
Nada disto seria relevante, nem digno de especial admiração, se a sensibilidade do homem por detrás da câmara fosse medíocre, se a sua ambição fosse mesquinha. Mas a ambição de Rohmer era desmesurada, a sua sensibilidade era aguda e poderosa. Rohmer nunca deixou de se situar na delicadíssima encruzilhada da vontade, do desejo e do comportamento social e moral. Todas as suas personagens atravessam essa zona, tão misteriosa e paradoxal como a que Tarkovsky sugeriu em "Stalker"; todas elas revelam o seu lado absurdo e profundamente humano no preciso instante em que o livre arbítrio, o acaso e uma versão profana e corriqueira do destino se equivalem e determinam o desfecho. Foi essa a maior de todas as ousadias: em vez de se conformar com receitas e aproximações, Rohmer mostrou-nos mulheres e homens que agem (com diferentes gradações de consciência dos próprios actos) e que sofrem, sozinhos no mundo nesse momento da decisão, que tanto pode ser activa como redundar num abandono à sorte e à concidência (Melvil Poupaud em "Conte d'Été", Charlotte Véry em "Conte d'Hiver", Marie Rivière em "Le Rayon Vert"...).
Acima de tudo, os filmes de Rohmer são obras dotadas de uma coerência e intensidade estéticas singulares. Rohmer filmou, ao longo das décadas, como se o amor, o desgosto, a solidão e o desejo fossem os únicos temas dignos. Filmou com a convicção de que o mundo, as paisagens, as ruas, os apartamentos eram cenário suficientemente nobre para conter a gravidade palavrosa dos seres humanos, e que a linguagem viva do cinema, que ele ajudou a criar, era um instrumento privilegiado para a transmitir. Todos lhe devemos muito. Cabe-nos a todos merecer os filmes de Rohmer, e nunca deixar esmorecer, por comodismo ou inércia, a urgência de os rever.
(Há cerca de 5 anos e meio, escrevi sobre Rohmer com a abundância própria de um proselitista com demasiado tempo livre entre mãos. O leitor ocioso poderá encontrar esses artigos aqui, aqui e aqui.)