segunda-feira, setembro 17, 2012

IMPRESSÕES DE PARIS (4): O Petit Palais merecia ser mais conhecido do que é.



O edifício é imponente sem ser ostentatório, o interior foi concebido de modo a tirar o máximo partido da luz natural, a colecção é variada e integra desde antiguidades a objectos decorativos, pintura e escultura; a qualidade é uniformemente muito boa e a visita faz-se, sem forçar, numa manhã. Ao Petit Palais não ficaria mal um apodo como "o anti-Louvre".

O Petit Palais fica situado entre a margem direita do Sena e os Champs-Elysées, e face (como seria lícito supor) ao Grand Palais. Ambos os edifícios foram construídos com vista à exposição universal de 1900. Como é inevitável em França, não faltaram detractores e defensores que protagonizaram uma disputa efémera mas acesa. Julien Green, por exemplo, detestava-os a ambos, ao grande como ao pequeno. Paul Claudel, pelo seu lado, elogiou o pátio interior do Petit Palais e afirmou que tudo o que se lhe seguiu em arquitectura foi marcado pelo estigma da decadência.

Não seria difícil destacar uma mão cheia de quadros expostos no Petit Palais. Fico-me por dois.

Gustave Courbet, "Autoportrait au chien noir" (1842)

É extremamente raro deparar com uma obra de Courbet que me deixe indiferente. Este auto-retrato tem tudo: originalidade, insolência, e uma aparente simplicidade de meios quase rústica. É um quadro inteiro, sincero e perturbador, ou seja tudo aquilo que se espera de Courbet.

Pierre Bonnard, "Conversation à Arcachon" (1926-1930)


Bonnard é um enigma pessoal. Nunca me ocorre o seu nome quando me forço, por ócio ou estímulo alheio, a fazer a lista dos pintores que verdadeiramente contam para mim. E no entanto, dele posso dizer com convicção aquilo que não posso dizer de muitos: os seus quadros interpelam-me, todos parecem albergar um segredo, grandioso ou corriqueiro; algo na sua imperfeição, num detalhe ou num capricho da sua execução transformam-nos em coisa única.

Como se tudo isto não bastasse, a loja do museu, embora pequena, está muito bem fornecida, e o museu é dotado de um jardim interior onde apetece passar o tempo.

sexta-feira, setembro 14, 2012

IMPRESSÕES DE PARIS(3): Tudo no Museu do Louvre obedece a uma concepção maximalista, adequada aos livros de recordes mas madrasta para o visitante desprevenido. A quantidade de obras-primas é muito grande, mas há que reconhecer que a abundância de obras indiferentes ou medíocres funciona como um ruído de fundo que só com alguma prática se aprende a ignorar. As salas dedicadas à pintura francesa dos séculos XVII e XVIII são o exemplo mais óbvio disso mesmo. Entre paredes que quase soçobram com o peso do academismo e da grandiloquência dos quadros que suportam, o visitante tem de dar mostras de paciência para chegar ao seu nicho preferido, que no meu caso é a secção dos Watteau e em particular os assombrosos "Les Deux Cousines" e "Le Faux-Pas".


Antoine Watteau, "Les Deux Cousines", c. 1716


Ainda a propósito das estratégias para escapar às filas de espera à entrada do Louvre, uma das mais simples consiste em comprar o bilhete combinado Museu Delacroix/Louvre. Claro está que isto faz mais sentido quando existe pelo menos uma admiração remota pela obra de Delacroix, sobretudo atendendo a que o museu que lhe é dedicado apresenta um interesse muito fraco para o não iniciado. O museu fica instalado numa zona entalada entre o Boulevard Saint-Germain e o Sena, que surpreende pela pacatez. Trata-se da casa que Delacroix ocupou nos últimos anos da sua vida, escolhida pela proximidade relativamente à igreja de Saint-Sulpice, aonde o artista se deslocava regularmente para trabalhar na decoração de uma capela.

Conheço poucos lugares mais tranquilos e incompatíveis com ralações pequenas, médias ou graúdas do que o jardim do Museu Delacroix:


Voltando ao Louvre, algo que impressiona negativamente é a negligência do pessoal nos acessos ao recinto e às galerias. A minha mochila foi objecto do mais sumário dos exames e não passou por uma única máquina de raios X. O que poderá justificar esta falta de cuidado? Estarão a esconder-nos algo? As obras expostas possuirão mesmo o valor incalculável que lhes é atribuído, ou não passarão de imitações, por exigência das seguradoras? Por muito menos do que isto, há por aí teorias da conspiração a medrar com uma pujança invejável.

quinta-feira, setembro 13, 2012

INCURSÕES ON THE WILD SIDE: Por vezes, faz bem ao espírito aventurar-se por territórios onde a falta de tino convive na perfeição com uma certa desenvoltura opinativa. O blog "Blasfémias" é um desses lugares revigorantes:

«O Primeiro Ministro comunicou ao país na Sexta-Feira uma solução que é um tratado de como fazer liberalismo prático num país minado por uma constituição socialista e uma opinião pública de esquerda.» (João Miranda)

Vivi estes anos num país minado por uma opinião pública de esquerda, sem o saber. Vou passar a prestar mais atenção a onde ponho os pés, quando sair à rua.

Bem vistas as coisas, valha a verdade, o "Blasfémias" não passa de uma droga recreativa. Para material mais hardcore (potencialmente viciante), sugiro uma visita aqui.

segunda-feira, setembro 10, 2012

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Paris é Paris, mas o metro de Lisboa é (como negá-lo?) o metro de Lisboa. Hoje, um leitor a ler "O Riso", de Bergson.

domingo, setembro 09, 2012

IMPRESSÕES DE PARIS (2) e LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Uma excursão a Paris representa uma autêntica injecção de adrenalina nesta rubrica tão apreciada pelos leitores!
  • Só no aeroporto e durante o voo Lisboa-Paris, os avistamentos foram muitos e variados: Balzac ("La Femme de 30 Ans"), Borges ("Fictions", em francês), Cormac McCarthy ("The Road"), Tolstoi ("Anna Karénine", em francês).
  • No jardim das Tuileries: uma leitora, confortavelmente instalada com os pés apoiados numa cadeirita, lendo "The Sense of an Ending", de Julian Barnes.
  • No voo de regresso: uma leitora entretida com "W ou le Souvenir d'Enfance", do grande Georges Perec.
Ver alguém a ler Perec a milhares de pés de altitude, por cima do golfo da Biscaia, tem o efeito de uma gota de bálsamo no coração.

quinta-feira, setembro 06, 2012

A PROPÓSITO DE "O CONCERTO DOS FLAMENGOS": Certas frases da Agustina são tão ricas, tão inesperadas, tão livres, tão gloriosamente convoluídas, tão cheias de uma sonoridade singular e insolente, que apetece sair para a rua a cantar, dar piruetas ou fechar-se num quarto com mantimentos para dois meses e escrever um romance.

(Incluindo as frases mais exasperantes e que se contradizem entre si; sobretudo essas.)


segunda-feira, setembro 03, 2012

IMPRESSÕES DE PARIS (1): Por onde começar? Na desordem, sem qualquer veleidade de sistematização, comecemos pelos museus.

O gigantesco museu do Louvre pode transformar-se num problema intratável, ou num sorvedouro de energias para o visitante. Há dois conselhos que são repetidos até à saciedade pelos mais calejados, e que nunca é demais repetir:
  1. Evitar a entrada principal (a da pirâmide), e optar, em vez desta, pela entrada do Carrousel (centro comercial subterrâneo) ou pela Porta dos Leões, habitualmente menos concorridas.
  2. Abdicar da ambição (nobre, reconheça-se) de ver todo o museu. É mais avisado planear a visita e concentrar-se nalgumas secções específicas. A não ser, claro, que o objectivo seja o de bater algum recorde...

Esta última visita que fiz concentrou-se na colecção de antiguidades egípcias e na pintura francesa e holandesa.

Duas das peças egípcias de que mais gostei foram estas estátuas da deusa Sekhmet, tradicionalmente representada sob a forma de leoa, com a cabeça encimada pelo disco solar:


Estas serpentes de cauda excepcionalmente longa foram encontradas no túmulo de um governador que viveu durante o reino de Sesóstris I (1943-1898 a.C.):



Convém estar atento, durante a visita, a pormenores exteriores à colecção propriamente dita. Por exemplo, o tecto da "Salle des Bronzes" foi pintado por Cy Twombly, um dos poucos artistas contemporâneos a quem foi dada a oportunidade de decorar o Louvre:



domingo, setembro 02, 2012

48° 51′ 24.12″ N, 2° 21′ 2.88″ E: Alguns dias passados na mais bela cidade do mundo representam uma injecção poderosa de ânimo, mas também deixam um vestígio duradouro de melancolia. Não são coisas incompatíveis.


quinta-feira, agosto 23, 2012

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: No bar da estação de São Bento (Porto), um cavalheiro que vociferava ao telemóvel tinha um exemplar (muito usado) do "Pacheco versus Cesariny" em cima da mesa. Não o estava a ler, mas algo me diz que já o tinha lido ou que o iria fazer em breve.

(Quem se lembra das estações do Monopoly? Eram as de São Bento, Campanhã, Rossio e Santa Apolónia.)

sábado, julho 28, 2012

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Leitor. Linha verde do metropolitano. "The Names" (Don DeLillo). Bastam estes três elementos. Não é pedir muito ao Mundo. É também mister um observador, mas disso encarrego-me eu.

terça-feira, julho 24, 2012

LEITURAS: Estou a ler "Les Grands Chemins", de Jean Giono. O autor foi presidente do júri do Festival de Cannes de 1961, numa altura em que já se tinha dissipado a sua reputação (mais ou menos merecida, isso pouco importa para o caso) de colaboracionista. Esse foi o ano em que "Viridiana", de Buñuel, ganhou a Palma de Ouro (ex aequo com o praticamente esquecido "Une Aussi Longue Absence", de Henri Colpi). Ainda que a obra literária não existisse, isso já chegaria para justificar a sua existência na Terra.


sábado, julho 14, 2012

FOI HÁ 223 ANOS:


LUÍS XVI: É uma revolta?
DUQUE DE LA ROCHEFOUCAULD: Não, majestade, não é uma revolta, é uma revolução.

(Imagem retirada daqui.)

terça-feira, julho 10, 2012

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na linha amarela do metro, uma leitora lia "Ar de Dylan", de Enrique Vila-Matas. É tudo por hoje.

quinta-feira, junho 28, 2012

«Porém, nenhuma pessoa pode violar a palavra de honra, porque então será impossível viver no mundo.»

(Mikhail Bulgakov, "A Guarda Branca", tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.)

Pois é.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS:

Uma leitora lia "Diario de Una Buena Vecina". Doris Lessing em castelhano, no comboio Porto-Lisboa.

Um leitor lia "Vida e Destino", de Vassili Grossman, aparentemente nada intimidado com o volume do calhamaço que tinha entre mãos. Foi na linha vermelha do metropolitano de Lisboa, a mesma que, em breve, ligará São Sebastião ao Aeroporto passando por Moscavide.

sábado, junho 23, 2012

domingo, junho 17, 2012

LEITURAS:

Naguère, il arrivait qu'elle l'écoutât discourir, tapie dans un coin et le regardant du regard dont une panthère regarde le dompteur (ses prunelles pleines de choses écrasées).

(Nota mental: ler mais livros de Henry de Montherlant.)


domingo, junho 10, 2012

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Um leitor lia "Walden" na plataforma da estação de metropolitano do Campo Grande. Será que a época de crise está a levar os portugueses a convergir para o modo de vida sóbrio e frugal de que Henry David Thoreau fez a apologia?

domingo, maio 13, 2012

CINEMA: Para o caso de me vir a faltar a paciência ou o tempo para escrever mais sobre este filme, aqui fica o essencial: "Era Uma Vez na Anatólia", de Nuri Bilge Ceylan, não só redime este realizador do decepcionante "Três Macacos", como se afirma desde já como um dos grandes filmes do ano, depois de "Tabu" e de "L'Apollonide - Souvenirs de la Maison Close".



Entre muitas cenas memoráveis, aquela em que a filha do presidente da junta aparece com o candeeiro e oferece bebidas aos visitantes é uma das mais intensas e extraordinárias que vi recentemente. Se não digo mais, é por receio de esgotar já aqui a quota de superlativos que me foi concedida para este ano.
ISTO COMEÇA BEM:

La première journée de François Hollande investi président de la République mardi sera "sobre" mais chargée de symboles: l'école, comme fondement de la République, et la laïcité et l'intégration, à travers un double hommage à Jules Ferry et Marie Curie.

É difícil imaginar um começo mais auspicioso para um quinquenato do que uma homenagem a Jules Ferry (o pai da escola laica e universal, uma das personalidades que mais admiro na história de França) e a Marie Curie (uma das figuras mais marcantes da história da Física nos últimos 200 anos, apesar da sua condição de exilada e de mulher, com toda a bateria de preconceitos associados).

A travers ces deux gestes, le nouveau chef de l'Etat entend faire retentir immédiatement les "priorités de son quinquennat" martelées pendant sa campagne, que sont "la jeunesse", "l'éducation" et le respect de la "laïcité".

Sim, isto começa bem. Sobretudo tendo em conta a maneira como, em França, nos últimos tempos, o tema da laicidade tem sido ignorado como se de um parente embaraçoso se tratasse, ou co-optado por indivíduos com agendas bem próprias, que de laicistas não têm mais do que o rótulo e a aura.

quinta-feira, maio 03, 2012

FERNANDO LOPES (1935-2012):

O cinema português deve-lhe muito. (Ou, o que vem a dar no mesmo: Portugal deve-lhe muito.) Com a sua doçura e inteligência, foi um dos que ajudou a fazer cinema num país onde só existia um sucedâneo deprimente de cinema. Fê-lo, ano após ano, com a naturalidade de quem faz aquilo que ama. Os seus filmes são e continuarão a ser antídotos contra a alarvidade que ocupa e corrói.


DEVOLVAM-NOS A FEIRA DE ANTANHO!: A tentação de estragar aquilo que está bom, ou menos mau, é uma dos traços de carácter mais bem distribuído, e revela-se tanto ao nível do indivíduo como da sociedade. Para encontrar um exemplo excelente, não é preciso ir mais longe do que o Parque Eduardo VII.

Ano após ano, a localização da Feira do Livro de Lisboa torna-se um pomo de discórdia tão poderoso que já faz parte da identidade nacional. Em contrapartida, a antecipação da Feira de Maio/Junho para Abril/Maio, que parece ter sido erigida a regra, tem suscitado um debate incomensuravelmente mais tímido. O resultado está à vista: chuva, frio e vento fazem com que uma excursão à Feira apareça como uma das maneiras menos apetecíveis de passar o tempo livre.

Claro que, mesmo em alturas mais tardias do ano, a Feira raramente se livra de alguns dias de tempo sofrível. Mas torna-se óbvio (excepto para aqueles que sustentam o mito de que Lisboa tem um clima ideal, perenemente soalheiro, invejado por todo o mundo civilizado) que as probabilidades de intempérie aumentam à medida que se recua no ano.

Devolvam-nos a Feira em finais de Maio, com o Verão à porta, as noites já a ficarem agradáveis e os jacarandás pujantes de floração colorida! Deixem de dar tiros nos próprios pés, deixem de afugentar os bibliófilos!

domingo, abril 29, 2012

ELEIÇÕES: No noticiário da SIC de hoje, afirmava-se que, caso François Hollande bata Nicolas Sarkozy na segunda volta das eleições presidenciais francesas, será a primeira vez, na "história recente" da França, que um presidente da República falha a sua reeleição. Não sei o que é que o autor da peça entende por "recente", mas não é preciso recuar gerações até encontrar um exemplo: Valéry Giscard d'Estaing (perdeu contra François Mitterrand em 1981).
CINEMA: Um bom artigo sobre "Céline et Julie Vont en Bateau", de Jacques Rivette. Gostei particularmente disto:

It’s not just that the film holds up to repeat viewings; its very point is its seemingly infinite repeatability, its mysterious capacity to surprise both first-time viewers and those who know it as well as a magician reciting an incantation.

Mais do que qualquer outro que eu conheça, "Céline et Julie" é um filme que nunca se acaba de ver e que envolve o espectador na sua estrutura, que é ao mesmo tempo cíclica, linear, aleatória e ucrónica.

Envolve para toda a vida, quero eu dizer.

Dominique Labourier e Juliet Berto em "Céline et Julie Vont en Bateau", de Jacques Rivette.


quarta-feira, abril 25, 2012

HOJE: O dia inicial, inteiro e limpo. Estas palavras já quase soam a banalidade, mas o uso não lhes arranha a autenticidade nem o poder.

segunda-feira, abril 23, 2012

ONDE MENOS SE ESPERA: Os tempos exigem que se esteja de olhos bem abertos. Nesta Páscoa, em pleno centro comercial Via Catarina, no Porto, havia muitos livros da Agustina à venda pela quantia ridiculamente baixa de quatro euros e noventa cêntimos. Esta pechincha facilmente passava despercebida no meio de um oceano de livros de mesa de café, manuais práticos, histórias infantis e livros de culinária.

Comprei "As Relações Humanas" e "O Concerto dos Flamengos".

segunda-feira, abril 02, 2012

VOMITED MY MOUSSAKA: Folheio a colectânea "Selected Poems", de Denise Levertov, antes de me dedicar à sua leitura. Leio os seguintes versos:

and soon after
vomited my moussaka
and then my guts writhed
for some hours with diarrhea

No que me estarei a meter?


LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Um leitor lia "Diálogo Sobre a Ciência e os Homems", de Primo Levi e Tullio Regge. Foi na linha verde do metropolitano de Lisboa. Também no metropolitano, mas desta vez na linha vermelha, uma leitora lia "Um Coração Simples", de Flaubert.

E porém nem toda a grande literatura do mundo consumida por olhos dedicados e vorazes me consola do choque de ter de pagar 29 euros por um passe mensal que ainda há tão poucochinho custava 16.
PORTUGAL NÃO É A GRÉCIA: Repetem-nos até à saciedade que Portugal não é a Grécia. Parece um mantra. Mas será verdade que Portugal não é a Grécia? Certas correntes de opinião defendem que as cenas iniciais de "O Apicultor", do recentemente falecido Theo Angelopoulos, poderiam ter sido filmadas em Ponte da Barca.



(O filme, diga-se de passagem, infelizmente não fez senão confirmar a impressão pouco positiva que eu guardara do já longínquo "A Eternidade e Um Dia".)

terça-feira, março 13, 2012

TÍTULO PARA UM QUADRO (QUE POR SINAL IMITARIA A VIDA, SE EXISTISSE, COMO É PRÓPRIO DOS QUADROS):

Leitor de Chekhov sobre fundo de leitores de George R. R. Martin.

quarta-feira, março 07, 2012

CHEGA DE REBALDARIAS ou THE SECOND FROM THE TOP BUTTON: A União Europeia de Xadrez decidiu que está na hora de pôr cobro às poucas-vergonhas e instituiu um código vestimentário. A leitura deste é razoavelmente desopilante; o inglês esfarrapado ajuda à festa.

Os excertos seguintes não dispensam, naturalmente, a leitura na íntegra:
  • for men dress trousers or jeans, a long-sleeve or shirt-sleeve dress shirt, alternatively T-shirt or polo, loafers or dressy slip-ons, socks, shoes or sneakers (no beach-wear slips, etc.) and, if appropriate, a sport coat or blazer. The trousers, the jeans as well as the shirts and polo’s worn should be crisp and show no excessive wear, no holes and shall be free of body odor
  •  for women blouses, turtleneck, T-shirts or polo’s, trousers, jeans or slacks, skirts, dresses, and appropriate footwear (boots, flats, mid-heel or high-heel shoes, sneakers with sock) or any other appropriate clothing modification.
  •  in respect to shirts, the second from the top button may also be opened in addition to the very top button.
  • sunglasses, glasses, neck ties can be worn during the games, no caps or hats, except for religious reasons.
Pergunto-me se o ornamento garrido desta jovem xadrezista cumpre os critérios tão estritos da UEX. Poderá sempre alegar que usa o laçarote por imperativo religioso


quinta-feira, março 01, 2012

OS INESPERADOS ATALHOS DA BLOGOSFERA: Nos últimos dias, as seguintes buscas trouxeram leitores a este blog:
  • "pietà de manet" (bravo, bravíssimo) (*)
  • "criança alérgica ao clavamox" (não sou especialista)
  • "fechaduras de alta segurança eléctricas em 2 pontos, sem cilindro, com chave telescópica" (há gente que sabe muito bem aquilo que quer)
  • "sofia escrito em chinês + tatuagem" (cantonês ou mandarim?)
  • "transporte para a escola delfim santos no alto dos moinhos" (lamento não ter podido ajudar)
Quem vem por bem é sempre bem-vindo, com maior ou menor pitada de serendipidade.

(*) Será que se queria referir ao quadro "Les Anges au Tombeau du Christ"?


DES-DESANIVERSÁRIO:

Este blog cumpre hoje precisamente 9 anos de existência.

Para que se fique com uma ideia do que representa este já graúdo lapso de tempo, recorde-se que, nesse  longínquo dia zero:
  • Jorge Sampaio era presidente de Portugal
  • José Barroso (na altura mais conhecido pelo pseudónimo "Durão Barroso") era primeiro-ministro
  • o treinador do Sporting chamava-se László Bölöni
  • o presidente dos EUA era George W. Bush
  • a versão de 64 bits do Windows XP acabara de ser lançada
  • o Facebook ainda não existia
  • o país ansiava (sem o saber) pela 1ª temporada dos "Morangos com Açúcar", que estrearia nesse ano de 2003, com Benedita Pereira e João Catarré como protagonistas.
As pessoas passam, o blog fica. Era aqui que eu queria chegar.

Este ano não há festividades, por causa da crise em que estamos mergulhados. Para o ano, em plena retoma, será organizada uma churrascada de arromba.

segunda-feira, fevereiro 27, 2012

FRACTURAS: Detesto a expressão "tema fracturante". No seu uso corrente, o termo abrange assuntos com o suposto potencial de dividir a sociedade, causar alvoroço, subverter a moral, voltar pai contra filho e irmão contra irmão. Quase sempre, esses temas alegadamente fracturantes relevam da esfera dos costumes. Como se a macroeconomia, a divisão administrativa, o trabalho, não albergassem igualmente o poder de dividir, minar alicerces, fracturar.

A adopção por casais do mesmo sexo foi chumbada na Assembleia. Foi uma decisão errada sob todos os pontos de vista: social, jurídico, científico. Não faltaram as vozes que clamam por mais debate (obviamente "alargado" e "aprofundado") ou que alegam dúvidas ou estados de alma, ao sabor da consciência libertada das peias da disciplina partidária. (Já para não falar da invocação ao Criador por parte do deputado Telmo Correia - argumento tão poderoso e ribombante que decerto entrará na história da retórica portuguesa.)

Como eu gostaria de ver um nível de escrúpulo, dúvida metódica e cepticismo comparáveis, quando se trata de votar projectos sobre temas menos escabrosos mas não menos fracturantes e decisivos. Por exemplo: sobre as leis laborais, sobre o enriquecimento ilícito, sobre os horários do comércio, sobre o arrendamento urbano...

(PS Como sempre, vale a pena ler o que escreve a Isabel Moreira.)

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Eterno, imortal, inimitável, necessário.

O maior (único?) génio da música popular portuguesa do século XX morreu há 25 anos.

Esta canção mantém o poder de me provocar arrepios, e duvido que alguma vez o perca.


PARAFILIA: No romance "Il Fu Mattia Pascal", de Pirandello, há uma personagem (secundaríssima) que está apaixonada pelo número 12.


domingo, fevereiro 19, 2012

REDUCTIO AD MONTEIRUM: A lei de Godwin afirma que a probabilidade de alguém, numa discussão online, mencionar Hitler ou o nazismo se aproxima de 100% à medida que a discussão se prolonga.

A mesma lei se aplica a discussões sobre o cinema português e à menção ao filme "Branca de Neve". Normalmente, essa menção ocorre ao fim de poucas dezenas de comentários. (Ver aqui um exemplo recente.)
IRRELEVANTES?: O filme "Tabu" ganhou o prémio FIPRESCI e o prémio Alfred Bauer, no recente festival de cinema de Berlim. O filme "Rafa" recebeu o Urso de Ouro das curtas-metragens. Serão estes feitos suficientes para livrar os respectivos autores, Miguel Gomes e João Salaviza, do doloroso estigma da irrelevância? Aguarda-se ansiosamente a resposta do oráculo Alberto Gonçalves.

terça-feira, fevereiro 14, 2012

C'EST VRAI. TOUT LE MONDE PLEURERA:


O grande Pierre Renoir e a sublime Winna Winifried em "La Nuit du Carrefour", de Jean Renoir.



Sabe tão bem quando as expectativas relativas a um fillme, longamente alimentadas a ditirambos alheios, acarinhadas e encorajadas, são cumpridas em pleno aquando do primeiro visionamento.

Qualquer que seja o desenrolar do ano cinéfilo, este será um dos pontos altos.



terça-feira, fevereiro 07, 2012


DESTE ACORDO SOU A FAVOR: Há lá coisa mais bela do que uma mulher ou um homem a ler? Talvez haja, mas não muitas. Com uma pequena história a acompanhar, as fotografias ganham ainda mais força. Quantas vezes lamentei ficar sem saber nada sobre alguém que descobri a ler em público: o que o/a levou a escolher aquele livro, se está a gostar, etc.

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

POLAR OU SIBERIANA?: Afinal esta massa de ar frio é polar ou siberiana? Terei razão ao supor que estes qualificativos se transformaram numa espécie de superlativo para uso de jornalista, sem qualquer conteúdo geográfico?
IRRELEVÂNCIA: Alberto Gonçalves qualifica de "assalto" o novo plano de financiamento do cinema apresentado pela Secretaria de Estado da Cultura. Faz-lhe, aparentemente, muita confusão que o Estado subtraia 50 milhões de euros anuais à frágil economia de empresas e particulares e que os entregue de mão beijada aos profissionais do cinema, esses parasitas. Não há nada aqui que surpreenda quem conhece a personagem; não contem com Alberto Gonçalves para brincar com a sua coerência, consolidada ao longo de incontáveis crónicas hebdomadárias no "Diário de Notícias", onde aliás está em valorosa companhia.

Onde AG descarrila um tudo-nada (atrevo-me a dizê-lo) é quando acusa de irrelevância os criadores de cinema português, aparentemente apenas com base em critérios de bilheteira (seria uma maldade imperdoável pedir a AG um argumento de natureza estética). AG é um homem de lucidez comprovada, que nada há demasiado tempo nas águas aprazíveis da sua própria irrelevância para que um juizo tão distorcido lhe seja relevado. Mais para benefício do eventual leitor desprevenido do que do principal interessado, que certamente deu pela argolada em menos tempo do que leva a escrever isto num teclado, vamos então à clarificação que se impõe:

  • Realizador português: Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho, João Canijo, Pedro Costa, Teresa Villaverde, Margarida Gil, Miguel Gomes, João Nicolau, ETC ETC - Trabalho sério, assistido por uma equipa de profissionais,  frequentemente em condições precárias, para produzir algo de belo e complexo - Obras-primas como "Francisca", "Vale Abraão", "A Comédia de Deus", "Noite Escura", "Aquele Querido Mês de Agosto", ETC, ETC - Reconhecimento nacional e internacional - Obra feita. >>>>>>> RELEVANTE
  • Alberto Gonçalves - Artigos de opinião semanais num diário que já conheceu melhores dias - Vagamente conhecido pela ironia romba, pelas comparações apressadas, pela frouxidão dos raciocínios, pela insuportável indulgência com que brande as suas armas contra os dogmas do Portugal bem pensante (os existentes também, mas sobretudo os inexistentes, que têm outro éclat) - Nenhuma obra, nenhuma credibilidade a não ser a que lhe concedem os seus pares (que, sem serem legião, fazem algum barulho). >>>>>>> IRRELEVANTE

Dispenso-me de fazer um desenho.


quinta-feira, fevereiro 02, 2012

DO PATNA AO COSTA CONCORDIA: Não alinho em julgamentos na praça pública; não sei se o capitão Schettino (descrito como "o homem mais odiado de Itália", o que mais parece o título de uma futura biografia ou adaptação ao cinema) é ou não culpado de abandono do navio que estava sob sua responsabilidade máxima. O que sei, o que a grande literatura ensina, é que os falhanços morais mais atrozes podem ser seguidos, muito mais tarde, por actos de heroísmo supremo e absurdo, como um eco invertido da cobardia primordial.

Nunca subestimem os extremos a que pode levar o desejo de redenção, nem a generosidade com que o destino concede as ocasiões para isso.

Basta recordar o Lord Jim de Conrad.

(E tomara aos media internacionais a lucidez e a lentidão do narrador Marlow.)




terça-feira, janeiro 31, 2012

THINKING OUTSIDE THE BOX: Dizem-nos para sairmos da nossa zona de conforto, pedem-nos ideias brilhantes para melhorar Portugal. Pois bem, o que eu proponho é muito simples: não só manter o 5 de Outubro como feriado, mas adicionar à lista de feriados o 31 de Janeiro, data da revolta republicana na cidade do Porto.

Chama-se a isto pensamento lateral, chama-se a isto agir em contra-ciclo. Não sei se merece uma petição online.

PS - Ainda não chegou o momento de dizer tudo aquilo que penso sobre a tragicomédia da eliminação de feriados, mas isso não tardará.
NUVENS PASSAGEIRAS: Independentemente dos seus contornos legais, o caso do encerramento do site Megaupload só veio alimentar as minhas dúvidas sobre as virtudes do armazenamento de dados em nuvem, pelo menos quando aplicado aos particulares. Neste momento, muitos utilizadores vêem-se impossibilitados de aceder a ficheiros perfeitamente legais que julgavam estar em segurança. Ceder aos cantos imateriais da etérea nuvem, trocar segurança por mobilidade e acessibilidade, tem riscos associados, e sempre os terá (digo eu, na minha ignorância de leigo). Ainda está por inventar um substituto à altura para o bom e velho disco externo USB. Cabe no bolso, resiste aos choques e vai connosco para onde quisermos.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS:
  1. Na linha verde do metropolitano de Lisboa, uma leitora lia o "Diário de um Pároco de Aldeia", de Bernanos, na edição antiguinha da Verbo (livros RTP).
  2. Mesmíssima cidade, mesmíssimo meio de transporte, mesmíssima linha: um leitor lia "Húmus", de Raul Brandão.
Os preços dos transportes sobem a galope, mas dir-se-ia que os leitores dos transportes públicos aumentam o seu frenesim bibliófilo em sintonia com esse galopar!

quarta-feira, janeiro 25, 2012

TANTAS PÁGINAS: Este é um blog sobre livros & demais coisas úteis. Recomendado, obviamente.

terça-feira, janeiro 17, 2012

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Um dia em cheio! Na linha verde do metropolitano, uma leitora lia "Os Anões", de Harold Pinter. Junto à Escola Básica 2+3 Prof. Delfim Santos, ao Alto dos Moinhos, um leitor lia "Na Minha Morte", de William Faulkner, e fazia-o enquanto, lesto, caminhava.

Se a leitura ambulatória de Faulkner em plena via pública não merece 50 pontos de bónus, pergunto-me: o que é que merece 50 pontos de bónus?

Estas observações ofuscam sem apelo nem agravo a de há uns dias atrás ("Midnight's Children", de Salman Rushdie, na linha verde.)

sábado, janeiro 14, 2012

THE UNBELIEVABLE TRUTH (*): Esta é uma das mais desconcertantes ilusões de óptica que já vi. Qual dos quadrados é mais escuro, A ou B? Por incrível que pareça, ambos têm a mesma intensidade. O olho humano é, deveras, um sistema de uma subtileza assombrosa.


Ver explicações aqui e aqui.

(*Pequena homenagem a Hal Hartley.)

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Uma leitora lia "O Crime de Lord Arthur Savile", de Oscar Wilde, no metropolitano. Eu nunca li.

quarta-feira, janeiro 11, 2012

PARENTAL GUIDANCE: O DVD com os filmes "7th Heaven" e "Street Angel", de Frank Borzage, contém "moderate violence and references to prostitution". Encarregados de educação deste país, protejam os vossos rebentos dos malefícios do cinema mudo!


sábado, janeiro 07, 2012

DA FIDELIDADE AOS CEREAIS: Ninguém segura Henrique Raposo, que agora parece apostado em reinventar a literatura universal. De "À Espera no Centeio", de Salinger, faz "À Espera do Centeio", deixando-nos ansiosos pelo momento em que nos revelará as suas opiniões sobre "Aguardando a Cevada", "Nostalgia pela Aveia", "Uma Devastadora Saudade do Milho-Painço" e outras obra-primas de quilate comparável.

terça-feira, janeiro 03, 2012

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS - ERRATA: Um leitor atento, para quem vão os meus agradecimentos, assinalou que Thomas More escreveu "Utopia" em latim. Assim, esta leitura não foi em versão original, mas sim na tradução inglesa. Mais uma má notícia para juntar às que jorram sem cessar sobre este país desgraçado.
OS VOTOS DO COLECTIVO (com um C bem presente, bem firme e bem hirto - abaixo o acordo ortográfico!!!): Este blog deseja a todos os seus leitores, amigos, afilhados, relações distantes, advogados, credores, admiradores, caluniadores, et caetera, um ano de 2012 mesmo muito bom. (Inserir aqui mensagem de esperança e confiança na tendência secular de o povo português se ultrapassar em momentos de crise.)

domingo, dezembro 18, 2011

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na plataforma da estação de metro do Campo Grande, uma leitora peripatética lia "A Peste", de Camus. Parecia estar no início da leitura. Os cidadãos de Orão ainda têm muitas provações pela frente.
O TRIGO DO JOIO: Numa recente venda de livros em segunda mão no Institut Franco-Portugais, após alguns pacientes minutos dedicados a esgravatar entre camadas de romances populares, manuais de línguas antigos e obscuros opúsculos de ciências sociais, lá consegui desencantar dois livros que me fizeram abrir os cordões à bolsa: "L'Église Verte", de Hervé Bazin, e o 2º volume de "Nouvelles en Trois Lignes", de Félix Fénéon, a dois euros cada. O rapaz que me atendeu examinou os livros e, sorridente, proferiu a sentença: «Vous avez trouvé les bons bouquins». (Ou será "trouvés"? As concordâncias da língua francesa são o inferno.)

sexta-feira, dezembro 16, 2011

REGRA DE OURO: Inscrever um limite para o défice na constituição? Que ideia de génio. É já a seguir. E porque não um limite para a inflação, para as importações, para o consumo de lápis de mina preta na administração pública e para o preço do papo-seco?

E onde estão todos aqueles, outrora tão ruidosos, que defendiam uma constituição minimalista composta por meia-dúzia de artigos e um punhado de emendas, à boa maneira americana? Que é feito do seu vigor argumentativo, do seu viço e do seu ímpeto?
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: O dia de ontem foi um bom dia. Na estação de metropolitano do Campo Grande, uma leitora lia "A Harpa de Ervas", de Truman Capote. Na carruagem, a caminho de Telheiras, um leitor lia "Utopia", de Thomas More, em versão original.

Leitores em lugares públicos, o mundo pertence-vos!

domingo, dezembro 04, 2011

FERIADOS: Estou à espera que o meu índice de indignação pessoal baixe para níveis compatíveis com a produção de uma prosa livre de grosserias, antes de escrever o que penso sobre o projecto de eliminação dos feriados. Enquanto isso, limito-me a transcrever opiniões alheias que subscrevo:

A 1 de Dezembro de 1640 o Secretário de Estado, Miguel de Vasconcelos, representante da coroa espanhola em Portugal, era defenestrado pelos revoltosos. Com esta revolta, começava a mais longa época da nossa História (a 4ª dinastia), e Portugal voltava a ser um Estado totalmente independente. O rumo do país voltou a ser decidido em Lisboa, em detrimento de Madrid.


A 8 de Dezembro de 1854, Giovanni Maria Mastai-Ferrett decreta em Roma, que de acordo com a sua interpretação dos evangelhos canónicos (escritos 17 ou 18 séculos antes) tem a certeza, que a concepção de Maria foi feita sem pecado original.

 Em 2012, o Estado Português e os Portugueses celebrarão o segundo acontecimento. O primeiro não.
(Miguel Carvalho)


(Na realidade, a Imaculada Conceição já era celebrada em Portugal, e noutros países, muito antes de o papa Pio IX a ter elevado ao estatuto de dogma, mas isso não belisca o argumento central.)

E POR FALAR NO EURO...: Se o euro acabar, o que acontecerá às moedas de chocolate? As multinacionais do chocolate já terão um plano de contingência? Tudo isto são perguntas que ninguém coloca - pelo menos em público (mas imagine-se o burburinho nos corredores do poder).

ESTA NOITE VATICINA-SE: O presidente da República afirma-se seguro de que, dentro de 20 anos, o euro continuará a existir e a ser uma moeda credível.

Regra geral, evito arriscar prognósticos a tão longo prazo. Mas há excepções. Por exemplo, não duvido de que, a 4 de Dezembro de 2031, haverá ainda alguém a defender a reabertura do inquérito ao acidente de Camarate.

segunda-feira, novembro 21, 2011

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Num bar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, um leitor e uma leitora passavam-se mutuamente um exemplar de "Wuthering Heights", apontavam páginas e frases, riam a bom rir.

Ergueu-se há uns dias um burburinho maçador por causa de uma reportagem que, supostamente, provava a colossal ignorância dos frequentadores do ensino superior nacional. (A talhe de foice: leiam aquilo que o Vasco escreve e não percam mais tempo com o assunto.) Pelo que me toca, preocupo-me mais por a nossa juventude encontrar motivo para galhofa em Emily Brontë do que por não saber quem pintou o tecto da Capela Sistina.
UM BLOG SOBRE ELE...: Cumprem-se hoje 200 anos sobre o dia em que Heinrich von Kleist, escritor, editor, ex-funcionário público e ex-militar, desiludido com a vida a ponto de entrar num pacto suicida, matou a tiro Henriette Vogel antes de atirar fatalmente sobre si mesmo. Foi nas margens do pequeno lago de Wannsee, perto de Berlim; Kleist tinha 34 anos. Escolhi Kleist para dar nome a este blog um pouco por acaso, um pouco por convicção, muito por causa de um feixe de circunstâncias da minha vida que o tempo (mais de 8 anos e meio) trabalhou mas não apagou. Agora, agradeço essa inspiração oblíqua. Kleist tem sido um patrono gentil e sincero. Uma época de paradoxos pede a arte remota de alguém que traduziu os paradoxos e os sobressaltos da razão com uma acuidade nunca igualada. Habitar esta época sem a companhia de Kleist significa privar-se de um ângulo de visão e de um fio de lucidez precioso.


terça-feira, novembro 08, 2011

MORANGOS COM AÇÚCAR: É uma verdade cruel, mas que devemos encarar com frontalidade: as bandas dos "Morangos com Açúcar" estão cada vez piores. Que longe nos parecem agora os tempos gloriosos dos D'ZRT. Até as Just Girls começam já a despertar saudades.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Uma leitora lia "Les Nourritures Terrestres", de André Gide, no bar do Instituto Franco-Português em Lisboa. Alguns poderão objectar: «Ah e tal, pois é, tipo assim é fácil, isso é fazer batota, no bar do Instituto Franco-Português também eu era capaz de descobrir leitores em qualidade e quantidade». A esses, eu respondo apenas com o meu desprezo.

segunda-feira, outubro 31, 2011

SOMOS TODOS DICKENSIANOS: Depois de assistir a uma reportagem (creio que da SIC) sobre as derivas e convoluções judiciais do caso da herança Feteira, convenci-me de que a dimensão da coisa merecia uma comparação com o monstruoso processo Jarndyce and Jarndyce, descrito no romance "Bleak House" de Dickens.

Se as semelhanças se estenderem ao desenlace, as perspectivas são negras para os legítimos herdeiros. Em Jarndyce and Jarndyce, as custas judiciais acabaram por consumir integralmente o montante da herança.

A grande literatura não cessa de nos ministrar profundas lições de vida.


(PS - Por favor, deixem de mostrar as imagens da Sra. Rosalina a arranjar-se frente ao espelho do elevador.)

terça-feira, outubro 25, 2011

CINEMA: Pascal Mérigeau (de quem li uma biografia de Maurice Pialat, um pouco a puxar para o hagiográfico e sentimental) afirma que "Pater", de Alain Cavalier, é o filme mais singular alguma vez exibido no Festival de Cannes. Eu sou mais comedido. Para não ir mais longe, podemos pensar em "O Tio Boonmee...", de Apichatpong Weerasethakul (Palma de Ouro no ano passado) como um competidor à altura, em termos de originalidade. Em todo o caso, hierarquias de singularidade despertam-me reduzido interesse. Importa não correr o risco de reduzir uma obra tão admirável como "Pater" a um gimmick, e o seu encanto ao fascínio superficial do insólito. O filme de Alain Cavalier, que se esmera há décadas a trocar as voltas aos seus detractores e aos seus admiradores, é um prodigioso exemplo de inteligência narrativa, humor e mise en scène. Mau grado o aparente amadorismo da sua confecção (câmara digital ao ombro, equipa técnica quase inexistente, tom de falso documentário, improvisação ou simulação de improvisação), revela um domínio total sobre a matéria do filme, a sua dinâmica e os seus efeitos.

As três grandes obras-primas que eu tinha visto este ano nas salas ("O Tio Boonmee...", "O Estranho Caso de Angélica" e "Road to Nowhere") tinham-se sucedido muito rapidamente, como se obedecessem a um bizarro alinhamento astral. Começava a desesperar de reencontrar nem que fosse uma amostra de excelência - mas felizmente pode sempre contar-se com Cavalier para nos encher as medidas.

Vão ver. Não se arrependerão.


Alain Cavalier, Vincent Lindon e Bernard Bureau em "Pater". Uma das cenas mais hilariantes: a da fotografia comprometedora do candidato à presidência. «Pauvre France!...»
FERIADOS: A mudança ou eliminação de feriados é como a limpeza das sarjetas ou a redução do número de deputados: um tema recorrente que vem à baila ciclicamente, como se a ele aludir satisfizesse uma necessidade colectiva, obscura e primitiva. Se o governo actual levar avante o propósito de alterar o mapa de feriados, ficarei impressionado - independentemente de concordar ou não.

Se isso acontecer, impor-se-á a escolha entre feriados de cariz histórico e religioso. Entre datas marcantes para a formação do país e datas cuja relevância se confina à minoria católica praticante, sobretudo quando associadas a dogmas obscuros (falo por exemplo da Imaculada Conceição, naturalmente que excluo Páscoa e Natal), parecer-me-ia que a escolha deveria ser óbvia para os responsáveis políticos máximos de um Estado laico. Por desgraça, a República Portuguesa encontra-se voluntariamente condicionada por um acordo (Concordata) com um pseudo-estado carente de legitimidade e de dimensão democrática, por isso tudo é possível.
MALONE MORRE: Rebaptizar o blog é um estratagema batido, usado até à exaustão. Não é por mudar de nome que este blog deixa de ser o melhor blog português. Seria demasiado fácil. Tentem outra coisa.

domingo, outubro 23, 2011

JE PEUX PARLER:


Comprei este livro porque conhecia, da autora, uma notável obra sobre o realizador Jacques Rivette, e porque gostei daquilo que vi ao folhear. Só mais tarde me apercebi de que este "L'Agent de Liaison" começa com a descrição da cena inicial do filme da minha vida, "O Espelho" de Tarkovsky. Trata-se de uma cena em que um adolescente é aparentemente curado de uma gaguez muito profunda por uma hipnotista/curandeira. Para mim, é um dos momentos mais belos e intensos da história do cinema.


Podem visionar o filme aqui.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Uma leitora lia "Aparição", de Vergílio Ferreira, num banco ao ar livre na Faculdade de Ciências de Lisboa. Estava descalça, o que, apesar de não dar pontos de bónus, merece ser mencionado.

domingo, outubro 16, 2011

FESTA DO CINEMA FRANCÊS: Na noite do Dinamarca-Portugal, fui à Festa do Cinema Francês ver um filme de uma realizadora com ascendência dinamarquesa, ("Un Amour de Jeunesse", Mia Hansen-Løve). O filme era interessante, sem ser uma obra-prima. Já vira recentemente, na Cinemateca, uma outra longa-metragem da realizadora ("Tout Est Pardonné"), de que também gostei moderadamente, embora fosse copiosamente fustigada por Antonio Rodrigues na folha que acompanhava o filme.

Tendo em conta os relatos que ouvi sobre a exibição de Paulo Bento y sus muchachos, não me arrependo da escolha.

Sebastian Urzendowsky e Lola Créton em "Un Amour de Jeunesse"

quinta-feira, outubro 06, 2011

EUROPEAN BOOK COMPANY: Será que já prestei a devida homenagem à livraria "European Book Company", em San Francisco?

Acho que não prestei. Limitei-me, aquando da visita que a ela fiz, a registar uma nota mental para o fazer, que me anda a roer o juízo desde então.

A EBC é uma livraria muito especial. Fica situada num bairro de San Francisco (próximo do infame "Tenderloin") que, de forma gentil, poderia ser descrito como "pouco recomendável". O tipo de lugar onde o instinto e o bom senso mandam vigiar os pertences, estugar o passo e evitar contacto visual. Uma livraria independente especializada em livros franceses, como a EBC, seria um dos estabelecimentos que menos se esperaria encontrar neste sítio. Neste caso, a violação da lei das probabilidade é motivo de regozijo.

A EBC é uma livraria de dimensão média. Pouco deve à arrumação; a primeira impressão é de algum desmazelo. Domina a literatura francesa, incluindo uma selecção muito substancial de livros de bolso usados. Livros noutras línguas, em particular alemão, também se encontram. A representação de géneros é muito generosa, da filosofia à culinária. O atendimento não me pareceu um primor de simpatia, e o facto de os preços não estarem marcados nos livros é claramente um ponto contra. Mas não apetece perder tempo com estas ninharias, perante um diamante do tamanho do Ritz como é a EBC.

Acabei por me limitar a comprar 3 livros:


"Le Chaos et la Nuit", de Henry de Montherlant,




"L'Envers de l'Histoire Contemporaine" (grande título), de Honoré de Balzac (mas não foi esta a edição que comprei),




"Poèmes à Lou suivi de Il y a", de Guillaume Apollinaire.



Se ainda não está convencido, leia algumas reacções de clientes.


quarta-feira, outubro 05, 2011

5 DE OUTUBRO: Há quem se entretenha, talvez por ausência de outras maneiras mais produtivas de ocupar o seu tempo, a discutir a legitimidade histórica da República. Raras vezes faltam, nessas virtuosas argumentações, referências à representatividade parlamentar do Partido Republicano nos anos que precederam a Instauração, ao carácter bondoso de El-Rei D. Carlos, à natureza facínora do regicídio, aos 7 ou 8 séculos de história que fizeram de Portugal aquilo que é (ou aquilo que era circa 1910), aos egrégios avós, e à aleivosia suprema, que perdura até hoje, de a Constituição republicana negar a possibilidade de referendar a natureza do regime.

Nutro um interesse muito ténue por tais debates. A legitimidade da República não depende de acidentes históricos. A monarquia portuguesa e todas as restantes monarquias configuram uma usurpação do poder por uma família, perpetuada por linhas dinásticas mais ou menos tortuosas. Por maior que tenha sido a grandeza de vistas, os feitos, a sapiência dos monarcas, esse lastro histórico perdurou, intacto. A tendência das sociedades tem sido a da restituição do poder às populações e a da perda de confiança em soberanos legitimados pelo sangue, pela tradição ou por qualquer variante patusca da "graça divina". O percurso seguido por esse processo de restituição, o número de avanços e recuos, a quantidade de sangue vertido, são detalhes relevantes para o discurso histórico, é certo. Porém, fazer depender desses detalhes uma eventual discussão sobre a razão de ser da República implica cair numa armadilha; implica a possibilidade de uma República manca, diminuída, condicionada eternamente pela natureza dos eventos que a ela conduziram.

Esquecer a história da República é um erro tão grave como nela esgravatar incessantemente, em busca de legitimidade ou de um eventual "pecado original" que a debilite. Hoje, a República é um facto consumado. É o regime em que vivemos, um contexto de cidadania, um sistema de valores. É o presente e o futuro.

VIVA A REPÚBLICA!

domingo, outubro 02, 2011

O SANEAMENTO LAICO É UMA CENA QUE NÃO ME ASSISTE:

«(...) Desta autoria tripartida nascerá este acto de higiene espiritual numa altura em que os fantasmas de Richard Dawkins ou Christopher Hitchens assomam aos altares da vida pública e onde o simples facto de se dizer Deus abertamente e com maiúscula nos pode pôr no limbo do saneamento laico. Este espectáculo é uma oração. Este espectáculo é um acto militante. Este espectáculo devia ser uma leve brisa.» Miguel Loureiro, direcção.

(Excerto do texto de apresentação do espectáculo "A Vida de Maria", de Rainer Maria Rilke, Teatro São Luiz, 16-22 Dezembro.)

A minha primeira pergunta, ao ler este texto, foi: «Quem escreveu isto?» A segunda pergunta foi: «De que nação ou planeta aterrou ele?»

Valorizo muito o intercâmbio de culturas, pelo que teria o maior prazer em trocar dois dedos de conversa com este emissário de uma civilização distante. Nessa conversa, o director deste espectáculo (espectáculo que, aliás parece supremamente recomendável) poderia testemunhar sobre essas paragens remotas onde os fantasmas de Dawkins e Hitchens pairam, mais ameaçadores do que erínias, e onde "dizer Deus abertamente e com maiúscula" expõe o imprudente ao "limbo do saneamento laico", que eu ignoro o que seja mas que parece ser um destino consideravelmente pior do que a morte.

Pelo meu lado, eu poderia descrever a situação do país onde vivo, não muito diferente, mais cambiante menos cambiante, da que vigora na maior parte dos países limítrofes: uma sociedade onde, durante séculos, o laicismo, a luta pela separação Igreja/Estado e o ateísmo foram quase universalmente pretexto para o ostracismo, a incompreensão e a perseguição; e onde as últimas gerações puderam por fim (mas muito a custo, e não em toda a parte) pôr abertamente em causa os totalitarismos clericais, as conivências entre o poder público e a religião, o dogmatismo.

O meu interlocutor ficaria certamente encantado ao saber que as ruas deste país onde vivo não são patrulhadas por milícias sanguinárias de laicistas e ateístas, prontas a sanear quem se atreva a "dizer Deus", com ou sem maiúscula; e que, muito pelo contrário, são ainda aqueles que se atrevem a fazer sugestões tão sensatas e razoáveis como respeitar a lei no que toca à presença de crucifixos nas escolas públicas, deixar de remunerar os capelães pelo erário público ou fazer reflectir a neutralidade confessional do Estado no protocolo das cerimónias oficiais, que se expõem às acusações de intolerância e de "militância laicista".

Uma vez escalpelizadas estas interessantes clivagens culturais, poderíamos então falar sobre Rilke e Hindemith.
O EXCESSO DE DOUTORES, ESSA CHAGA NACIONAL: Este blog tem vivido num estado de agradável e puríssima letargia, mas isso não é desculpa para deixar de saudar exemplos de prosa bem escrita e certeira. Este post do Rui é um portento, e uma das melhores desmontagens que alguma vez li do velho mito de que Portugal tem licenciados a mais, independentemente de se tratar da versão medinista ou de outro flavor, mais ou menos requentado.

Hesito, porém, em insistir na crítica a Medina Carreira. A partir do momento em que a comunicação social se desunha para garantir o exclusivo das suas inanidades e lhe oferece uma tribuna, em horário nobre e com pouco mais do que uma amostra de contraditório, seria cruel negar-lhe esta satisfação. A tentação de atribuir às suas opiniões uma importância proporcional ao tempo de antena que lhe concedem é demasiado forte.

domingo, setembro 18, 2011

A LITTLE FAITH:

You have to have a little faith in people.

São as últimas palavras do filme "Manhattan", de Woody Allen (1979).

Já não me lembrava.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS (À MANEIRA DE COLE PORTER):

Bees do it
Birds do it
I do it
Publishing nerds in New York do it
They do with covers
And short descriptions of the readers they spot
And that's nice
La la la
Let's do it... 
NAMING: O metropolitano de Lisboa mudou o "naming" (é assim que se diz?) da estação "Baixa-Chiado". Houve quem se revoltasse. Estou certo de que esta mudança será rapidamente assimilada pela população lisboeta, pouco interessada em polémicas estéreis. Diálogos como «Vais até ao Cais do Sodré? Não, desço já aqui na Baixa-Chiado PT Bluestore.» irão em breve tornar-se corriqueiros.

Antecipo com prazer o dia em que uma das minhas entradas sobre leituras em lugares públicos rezará assim:

«Um leitor foi avistado a ler as "Metamorforses" de Ovídio na estação Telheiras Salsichas Nobre.»

segunda-feira, setembro 05, 2011

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Sentada à minha frente no metropolitano, uma leitora trazia a "Antologia de Páginas Íntimas" de Kafka no regaço, mas preferiu ler o jornal "Metro". A nossa vida é feita de escolhas. Zero pontos de bónus.

domingo, setembro 04, 2011

CONTÉM REFERÊNCIA A PRODUTO (MAS UM PRODUTO MUITO BOM): Que ninguém duvide: se o Power Coffee da Delta Q já existisse no tempo de Balzac, romances previstos para a "Comédie Humaine" e nunca concretizados, como "Un pensionnat de demoiselles", "Une actrice en voyage", "Jacques de Metz", "La garde consulaire" ou "La plaine de Wagram" não teriam ficado por escrever.

São 2 "shots" de café, mais extracto de ginseng e de guaraná.

terça-feira, agosto 30, 2011

ROHMER PARA SEMPRE: O seguinte texto da minha autoria esteve na base de um trabalho apresentado na exposição "Histórias do Cinema", organizado pelo clube de cinema 8 e meio, da Escola Secundária Eça de Queirós, Póvoa de Varzim.


Este conto moral é também um conto de fadas. Conduz-nos um fio nítido, através dos penhascos da moral até uma clareira de felicidade onde os dilemas se resolvem aparentemente por si só, onde as inclinações e a ética coincidem. Tanto melhor se esse lugar for luminoso e idílico como as margens do lago de Annecy no princípio do verão.


Jérôme a viver o acontecimento.


Jérôme fala num desejo puro, mas até mesmo os desejos puros são afligidos pela necessidade desgraciosa de um objecto, nem que esse objecto seja a parte mais neutra do corpo humano. O joelho de Claire reduz-se à condição de testemunho, superfície orgânica que sanciona o gesto – mau grado a demora e intensidade do afago, no abrigo solitário batido pela chuva.


Jérôme a contar o acontecimento.


As personagens de Rohmer confundem destino, vontade e acaso – quase sempre por ignorância ou inconsciência, quase nunca por malícia. Acreditam-se senhores da sua sorte, julgam produzir o seu próprio enredo e felicitam-se pelo seu engenho, ainda que o desfecho seja óbvio ou enfadonho. Preocupam-se com o efeito dos seus actos (inócuos) em terceiros. Preocupação vã... Todas as personagens desta história porfiam nas trajectórias que já eram as suas no começo. O gesto puro de Jérôme (a pele da mão contra a pele do joelho) consumiu-se a si próprio, vergado ao peso do significado que o seu autor lhe atribuiu. O antes e o depois do gesto assemelharam-se fielmente.

Este conto moral é também um conto de trevas. Jérôme apodera-se de um discurso alheio (as teorias e devaneios literários da sua cúmplice Aurora) e torna-o seu instrumento, projecção ficcional que ele concretiza ao mesmo tempo que a descreve, cobaia de si mesmo. O seu propósito não é menos condenável por ser inofensivo. Coloca-se na posição de quem se pode dar ao luxo de fazer o gesto que convém ao seu apetite, por ser o único gesto correcto. Côncavo da mão surpreendentemente ajustado ao convexo do joelho. A moral tornada redundante.



«O Joelho de Claire» («Le Genou de Claire»). Argumento e realização: Éric Rohmer. Interpretação: Jean-Claude Brialy, Aurora Cornu, Béatrice Romand, Laurence de Monaghan. França, 1970.


domingo, agosto 28, 2011

BARTHELMISMO: Em plena silly season, um excelente artigo de Rogério Casanova sobre Donald Barthelme. O que é de saudar, sobretudo nestes malfadados tempos em que a percentagem de artigos na imprensa portuguesa que não são sobre Donald Barthelme atinge níveis historicamente altos.
AS MINHAS FÉRIAS EM CAPAS:







quarta-feira, agosto 03, 2011

LONGA MARCHA: Esta é uma verdade que permanece convenientemente oculta: a longa odisseia que foi a criação da Internet, os esforços de Vint Cerf, Tim Berners-Lee e tantos outros, a Arpanet, o desenvolvimento de protocolos como o TCP/IP, a manutenção da vastíssima infraestrutura de servidores, tiveram como fim supremo a possibilidade de todo e qualquer cidadão poder escutar, quando bem entender, a interpretação que Magdalena Kožená faz de "Erbarme dich" (J.S. Bach, "Paixão segundo S. Mateus").