terça-feira, novembro 02, 2010

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na linha verde do metropolitano, um leitor lia "A Tale of Two Cities". O facto de se tratar da versão original, e de estar de pé, dá direito a 40 pontos de bónus, como não o ignoram os seguidores fiéis desta rubrica, tão numerosos que já justificavam uma flash mob.
TAMBÉM QUERO: Eu também quero ter um mandatário digital.

segunda-feira, novembro 01, 2010

PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO: Aquela que se pode designar como a personagem principal de "Le Mauvais Lieu", de Julien Green (1977), é Louise, uma órfã pré-adolescente que vive com a tia. Rapidamente se torna claro que Louise funciona como receptáculo e ecrã para os desejos, pulsões e frustrações dos que a rodeiam. Ao longo da totalidade do romance, assiste-se ao aniquilamento de Louise como personagem e à sua ascensão ao patamar de símbolo da inocência em risco de ser conspurcada, e neste processo o autor demonstra uma perversidade, no plano simbólico e subtextual, de que nem as mais vis de entre as suas personagens, confinadas ao texto e à existência burguesa, seriam capazes. Como estratagema literário - e é talvez isto que mais custa perdoar - é previsível, denunciado e ineficaz.
PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO: Um grande, grande livro. Uma busca de felicidade na Londres do pós-WW2, guiada por um imperativo ético em registo semicómico: muito do que sucede à narradora, em termos pessoais e profissionais, decorre da sua obstinação em chamar "pisseur de copie" a um mau escritor protegido por uma autora influente e famosa. O excelente prefácio de Ali Smith elucida a subtileza e o profundo alcance moral deste romance, o décimo oitavo de Muriel Spark, publicado em 1988. "A Far Cry From Kensington" narra uma odisseia da autonomia do espírito e da coragem. A felicidade não surge como um prémio, tão pouco como um caprichoso efeito colateral: antes, como uma radiosa faceta da ordem natural das coisas. O registo, falsamente menor e ligeiro, serve admiravelmente o enredo e a intenção da autora. A ostentação e o excesso de gravidade tê-lo-iam arruinado. Poucas vezes, nos últimos tempos, simpatizei tanto com uma personagem como com a Mrs. Hawkins que engendra esta história, no meio das suas noites de insónia.

quarta-feira, outubro 27, 2010

MAIS PÉROLAS DA "PARIS REVIEW": INTERVIEWER: Is Jorge Luis Borges the only other contemporary poet of note who is also a librarian, by the way? Are you aware of any others? PHILIP LARKIN: Who is Jorge Luis Borges? (...) PHILIP LARKIN: I met Auden once at Stephen Spender's house, which was very kind of Spender, and in a sense he was more frightening than Eliot. I remember he said, Do you like living in Hull? and I said, I don't suppose I'm unhappier there than I should be anywhere else. To which he replied , Naughty, naughty. I thought that was very funny. ("The Paris Review Interviews, vol.2")
O MEU CORAÇÃO SÓ TEM UMA COR, VERMELHO E NEGRO: No meio do caos, quase deixava passar em claro o regresso milagroso do blog do melhorio "O Vermelho e o Negro". De finado a ressuscitado: isto sim, é um percurso meritório, e a segunda lei da termodinâmica que se vá encher de moscas.
MAGISTRATURA DE INFLUÊNCIA: Neste blog, acreditamos nos poderes da magistratura de influência. E não só por constatação empírica das suas virtudes, mas também por convicção moral solidamente ancorada.

quarta-feira, outubro 20, 2010

BALANÇO DO NOBEL: O Vaticano criticou o prémio Nobel da medicina. O PCP criticou o prémio Nobel da paz. A isto chamo eu um excelente balanço. O único aspecto negativo foi a desconsideração da Academia Sueca pelos numerosos bloggers portugueses que, ano após ano, proclamam alto e bom som a parcialidade das escolhas do Nobel da literatura e a sua submissão a agendas terceiro-mundistas, politicamente correctas, esquerdizantes, feministas, altermundialistas, etc. Vargas Llosa foi um erro de casting. Para 2011, espera-se uma escolha mais compatível com as edificações mentais deste respeitado sector da opinião pública portuguesa.
APENAS UMA SUGESTÃO: INTERVIEWER: Some people say they can't understand your writing, even after they have read it two or three times. What approach would you suggest for them? WILLIAM FAULKNER: Read it four times. ("The Paris Review Interviews, vol.2")
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Um cavalheiro, no metropolitano (não me recordo em que linha), lia "Um Rapaz da Geórgia", de Erskine Caldwell. (Seria a tradução de Jorge de Sena?) Estava de pé. A menos de um metro dele, um outro cavalheiro, este sentado, lia "The Wrench", tradução inglesa do excelente livro de Primo Levi "La Chiave a Stella". Cheguei a recear que estes dois leitores em lugares públicos, ao tocarem-se, se aniquilassem numa tremenda explosão de energia, mas isso não aconteceu.

terça-feira, outubro 05, 2010

O MEU FAVORITO PESSOAL PARA O NOBEL DA LITERATURA:
Não consultei a sua cotação nas principais casas de apostas, mas duvido que paguem menos do que 1 para 10 000. Fica feita a promessa soleníssima de que, caso o prémio seja atribuído a Michel Butor, irei pagar uma rodada de imperiais (ou uma alternativa não alcoólica) às primeiras doze pessoas que escreverem para este blog, desde que tenham o cuidado de inserir uma citação do autor no assunto da mensagem.
PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO: O Processo continua, contra tudo e contra todos, gozando já de uma adesão popular que ninguém pode ignorar. Provavelmente teria deixado passar este livro, não fossem os ecos que ele teve na blogosfera mais atenta. Falo, em particular, das recensões do João Paulo Sousa e do José Mário Silva, decisivas para aguçar a minha curiosidade relativamente ao romance de Dag Solstad. Uma das coisas que achei mais bem conseguidas neste livro foi a escolha do factor responsável pela crise que abala a vida da personagem principal, um professor norueguês do ensino secundário. Em plena aula, ele julga descobrir uma perspectiva nova sobre uma peça de Ibsen, capaz de iluminar a obra e de revelar significados até aí ocultos; algo, enfim, a meio caminho entre o grandioso e o banal. Uma crise pode nascer de um abalo ou de uma acumulação de anos de nulidade; atribuí-la a um evento que mal sobressai de um fundo de mediocridade, a um pequeno novelo de heterodoxia invisível para os demais, revela coragem e clarividência notáveis. Por coincidência, vi pela segunda vez "Coitado do Jorge", de Jorge Silva Melo, enquanto estava a ler "Pudor e Dignidade". No filme, a crise vivida pela personagem de Jerzy Radziwilowicz parece fruto de geração espontânea, isenta de motivo ou de foco. É um processo com vida própria que parece ocupar os interstícios, cada vez maiores, entre os vários planos da realidade, e que suga energia das fricções, dos movimentos dos corpos, dos sons desencontrados. Tudo isto é admiravelmente concretizado pela realização e pelos actores, pelos planos que funcionam como organismos dotados de dinâmica, propósito, contradições. A origem da crise, da ruptura, do conflito é um dos aspectos onde mais limpidamente se revelam a ousadia e a inteligência narrativa do autor. Pena é que, na grande maioria dos casos, a solução adoptada redunde em cedências a psicologia de fascículo.
VIVA A REPÚBLICA!:

1910-2010

Uma homenagem a todos aqueles que a tornaram possível.

quinta-feira, setembro 30, 2010

E AGORA, UM POST QUE REFLECTE A CONDIÇÃO DO MUNDO EM QUE VIVEMOS, A MINHA WELTANSCHAUUNG ACTUAL, E MUITAS OUTRAS COISAS MAIS: O padre Borga deixa cair o microfone:
OLIMPÍADAS: Estão a decorrer em Khanty-Mansiysk, na Rússia, as Olimpíadas de xadrez. A 2 rondas do final, lideram a Ucrânia, na prova absoluta, e a Rússia na prova feminina. As equipas portuguesas (FORÇA PORTUGAL!!!) vão fazendo pela vida, e estão neste momento numa posição pouco mais ou menos correspondente ao que era esperado. Destaque ainda para o meu herói, Vassily Ivanchuk, que alinhou 6 vitórias consecutivas (incluindo esta partida de antologia, frente ao georgiano Jobava), antes de ceder um empate e, ainda hoje, uma derrota face ao azeri Mamedyarov. O Xadrez64 está a realizar uma excelente cobertura do evento. Costumo queixar-me da paucidade de sites portugueses de xadrez dignos de interesse, mas o Xadrez64 tem tudo o que se poderia pedir: é bem concebido, informativo e actualizado com regularidade. Mais informação sobre as Olimpíadas:
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: O jovem que lia "Daisy Miller" na linha verde do metropolitano faria bem em meditar nas seguintes palavras de James Thurber: I have the reputation for having read all of Henry James. Which would argue a misspent youth and middle age. ("The Paris Review Interviews", vol.2)

sexta-feira, setembro 10, 2010

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS:
  1. Na esplanada do Palácio de Cristal, no Porto, uma senhora lia "Cartas a Sandra", de Vergílio Ferreira.
  2. No Alfa Pendular, sentido Porto-Lisboa, um cavalheiro lia "Once There Was a War" (reportagens de guerra de John Steinbeck), e uma senhora a seu lado lia "Wuthering Heights".
AD HOMINEM: Correm rumores segundo os quais eu seria desfavorável ao desregramento dos sentidos. É uma calúnia suja.

sexta-feira, julho 30, 2010

DO USO DAS ADVERSATIVAS: Penélope Cruz casou-se no princípio do mês com Javier Bardem e já se fala que está grávida do actor. Ainda assim, a actriz espanhola não abdica de dizer o que pensa: «Por mim fechava todas as revistas de adolescentes que encorajam as miúdas a fazer dieta. A sua influência nas raparigas novas é horrenda.» ("Metro" de 29/7/2010. Sublinhado meu.) Trocado por miúdos:
  1. Casou-se.
  2. Está grávida.
  3. Ainda assim, diz o que pensa.
  4. A mulher passou-se!
UMA CERVEJA, SEM INFERNO: Samuel Smith's Imperial Stout. The "liquid Christmas pudding" character (raisins and burnt fruit) found in traditional imperial stouts shows very well in this spicy example. It is also very rich, despite being less strong than some counterparts. (Michael Jackson, "Great Beer Guide") Advertência aos paladares aventureiros: esta cerveja está disponível no restaurante junto aos cinemas Monumental Saldanha. (Como diria Homer Simpson: «Hmm, raisins and burnt fruit».)

sábado, julho 24, 2010

AINDA OS ANÉIS ATIRADOS À ÁGUA: E que dizer da letra da canção "A-Punk", dos Vampire Weekend? I saw Johanna down in the subway She took an apartment in Washington Heights Half of the ring lies here with me But the other half's at the bottom of the sea
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS:
  1. Com a devida vénia ao Eduardo: senhora avistada na linha verde do metropolitano, concentrada na leitura de "Cidade Proibida".
  2. Na cafetaria do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, cavalheiro observado a folhear "Na Cova dos Leões", marco do anticlericalismo português da autoria de Tomás da Fonseca.

terça-feira, julho 20, 2010

DIÁLOGOS SIM, MAS SÓ COM LEUCÒ: «Uma coisa é uma companhia de teatro que vai representar Beckett a Aljustrel, outra é o «criador» que nunca saiu do Bairro Alto e que reclama a mensalidade para espalhar cascas de ovo partidas no chão da galeria com uma legenda a dizer «A CRIAÇÃO DO MUNDO». A «cultura», como tudo, não pode ficar refém dos caprichos daqueles que a produzem, tem de existir, em algum momento, um diálogo qualquer com o resto do mundo. A ideia não é acabar de vez com tudo o que não dê lucro, é acabar de vez com tudo o que não agradece a atenção.» Um diálogo com o mundo... Mal por mal, prefiro o critério do lucro, que tem a vantagem de ser limpo de ambiguidades, claro e quantificável. Dialogar com o mundo... Será que era à louvável disposição de dialogar com o mundo que se entregavam Straub e Huillet quando filmaram "Quei Loro Incontri", Barnett Newman quando pintou as "Stations of the Cross", Leonard Cohen quando compôs "Hallelujah", Pascal Quignard quando escreveu os "Petits Traités"? Tenho as minhas dúvidas. E de que mundo estamos a falar? Da "opinião publica", esse conceito nebuloso do qual cada um faz o que lhe convém? Da constelação de vozes, opiniões, convenções, preconceitos e grunhices que afogam tudo o resto com o seu alarido, seja na praça pública, no ar que respiramos ou em todos os magníficos instrumentos que a Web 2.0 coloca à nossa disposição, a começar pelas caixas de comentários dos blogs? Prefiro o monólogo, o ensimesmamento, a não reconciliação. Prefiro os artistas que não agradecem. (Ver também este excelente post do Jorge.)

ANÉIS ATIRADOS À ÁGUA: Obrigado aos numerosos leitores que responderam a este apelo. Dos milhares de mensagens recebidas, selecciono aleatoriamente três:

  • No romance "Mau Tempo no Canal", Margarida arremessa ao mar o seu anel decorado com uma serpente, depois de se casar com André Barreto.
  • Em "O Silmarillion" de Tolkien, o anel originalmente criado por Sauron, e que confere o poder da invisibilidade ao seu portador, solta-se do dedo do rei Isildur e cai a um rio. Subitamente visível, Isildur é morto pelos Orcs.
  • No filme "Match Point", a personagem de Jonathan Rhys Meyers arremessa ao Tamisa o anel da mulher que assassinou. O anel ressalta num parapeito e cai fora de água, o que acabará por livrar a personagem de uma provável condenação.
PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO: "Novelas do Defunto Ivan Petróvitch Bélkin", de Aleksandr Púchkin. De quando em quando, um tipo sente uma vontade irreprimível de ler prosa onde entrem samovares, verstas e fidalgos russos roídos pelo tedium vitae.

quarta-feira, julho 14, 2010

NAS MARGENS DA BARATA SALGUEIRO EU SENTEI E CHOREI: O programa da Cinemateca de Junho anunciava, para o mês seguinte, "Jacques Rozier". Afinal vai-se a ver a programação de Julho e nada de Rozier. E eu que antecipava já o imenso prazer que seria rever o glorioso "Du Côté d'Orouët". Nem vale a pena escrever sobre este filme, porque a exaltação que este filme transmite não se explica; é preciso vê-lo, de preferência vê-lo de novo, e só então soltar a verborreia e dizer tudo o que de bom e disparatado nos passa pela cabeça e que tenha a ver, ou não, com a praia de Saint-Gilles-Croix-de-Vie, com o sol a pôr-se no Atlântico, com o vento, a água salgada e o sono, o tempo, a festa e a mágoa. Outros desabafos avulsos sobre a Cinemateca:
  • Para quando um segundo secador de mãos na casa-de-banho dos homens?
  • Mais poltronas!
  • O que será de nós quando a vetusta impressora de agulhas que imprime os bilhetes entregar a alma ao criador?

( AVISO IMPORTANTE: "Orouët" rima com "pirouette".)

14 DE JULHO: A tomada da Bastilha foi há 221 anos. Há quem ache que o mundo era um sítio melhor para se viver em 1789 do que em 2010. Há quem pense que a Revolução Francesa não passou de um acto de arruaça, uma erupção de perversidade jacobina e sans-culottista sem antecedentes nem consequências de maior. Há quem defenda que os antigos regimes, com cambiantes de tirania mais ou menos acentuados, acabariam por cair de podres sem precisar de revoluções nem rupturas. Há até quem considere que esses mesmos antigos regimes não eram tão maus quanto os pintam. Não me incluindo em nenhum destes subconjuntos, resta-me celebrar, ano após ano, a data que simboliza um evento que dividiu em dois a história da humanidade, e que, mau grado todos os desvios e circunvoluções, contribuiu, mais do que qualquer outro, para consolidar os conceitos de cidadania e liberdade e fazer destes a fundação para todas as sociedades actuais com razões para se reclamarem decentes.

quinta-feira, julho 08, 2010

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: "Confissões de Uma Máscara", de Mishima, lidas por um jovem no cais da estação do Campo Grande, direcção (a sempre bela, viçosa e surpreendente) Telheiras.
PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO:
Decidi lê-lo acima de tudo porque se passa em Barcelona. Este foi o romance que revelou o futuro autor de "A Cidade dos Prodígios". É interessante enquanto retrato político e social da época que coincidiu com o final da 1ª Grande Guerra. Do ponto de vista literário, perde-se com demasiada frequência em soluções narrativas algo frouxas e previsíveis, e as personagens não são convincentes. Assinale-se a ousadia da pluralidade de registos (depoimento em tribunal, artigo de jornal, primeira pessoa, terceira pessoa, texto epistolar...).

segunda-feira, julho 05, 2010

PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO: "La Tempestad", de Juan Manuel de Prada. Prémio Planeta de 1997. Logo nas primeiras páginas deste romance, um anel é lançado à água. Por coincidência (uma das duas tetas de que se nutre o PLEC, sendo a outra a premeditação), o livro que foi lido antes deste acabava literalmente com um anel arremessado à água. No caso do último opus da saga Ripley, tratava-se do anel de Murchison, um americano demasiado curioso que Ripley fora obrigado a suprimir, anos antes. O seu cadáver fora lançado a um dos afluentes do Sena, e repousara debaixo de água até que um outro americano, não menos curioso, o descobriu e trouxe novamente à superfície. O anel, uma das últimas provas que poderia ajudar a incriminar Ripley, é por este devolvido às profundezas, com um sangue-frio totalmente digno da personagem. Quanto ao livro de Prada, a água é a de um canal veneziano, e o anel foi retirado do dedo de um falsificador e ladrão de arte que acaba de ser alvejado, e que irá morrer nos braços do narrador, um obscuro investigador universitário espanhol obcecado com um famoso quadro de Giorgione. Haverá por aí mais romances nos quais anéis são atirados à água? Leitores, caso vos ocorra algum sabeis para onde escrever.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: No cais da estação de metropolitano da Baixa-Chiado (linha verde, direcção Telheiras), um cavalheiro lia "Temor e Tremor", de Kierkegaard. A sua indumentária (sobretudo as sandálias de praia com a bandeira do Brasil) mais depressa evocavam o estádio estético da vida do que o ético ou o religioso. Mas desde quando a leitura requer dress code?
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Um jovem lia "A Fisiologia do Gosto", de Brillat-Savarin, em plena sala Dr. Félix Ribeiro da Cinemateca. Cruel ironia! Há muito tempo que a Cinemateca abandonou qualquer pretensão à excelência gastronómica. Há tempos, não tão distantes quanto isso, o restaurante sito no piso superior do recinto da Rua Barata Salgueiro reservava aos cinéfilos com larica especialidades como os espinafres à 39 degraus e os peixinhos da horta. Agora, a pobreza da ementa é tamanha que já me levou a saciar-me no McDonald's da Rua Rodrigo da Fonseca, entre umas curtas do Griffith e um Godard (autêntico). Nem só de Daney vive um homem.

terça-feira, junho 29, 2010

PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO: Não há mais livros da série Tom Ripley para ler. Este foi o último. Isso deixa-me triste. Era bom que houvesse mais. Queria que houvesse tantos livros de Tom Ripley como de Pepe Carvalho, ou da colecção "Uma Aventura". Mas a realidade que temos é esta, e nenhuma outra.

segunda-feira, junho 28, 2010

PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO:
Leitura motivada em parte por ter tombado, um pouco por acaso, no relato do encontro de Iris Murdoch com Raymond Queneau, e em parte por ser Queneau, de há muitas décadas a esta parte, um dos meus autores de língua francesa favoritos. O PLEC faz-se de acasos e de convicções arreigadas, em garrida e sonora sinergia!
Murdoch referiu-se a Queneau como um "charming ex-surrealist", designação tão curiosa como esta frase sua: «Part of me wants to be Raymond Queneau, another wants to be Thomas Mann» (Peter J. Conradi, "Iris Murdoch - a Life", HarperCollins).
(Ver também isto.)
CLUBE DOS BLOGS MORTOS CADA VEZ MAIS BEM FREQUENTADO: Já se passaram meses, mas ainda não me conformei com o suicídio do "Vermelho e o Negro". Pode ser impressão minha, ou falta de atenção às novidades primavera-verão, mas quer-me parecer que ganha volume a tendência para se calarem as vozes mais originais da blogosfera, e para eclodirem, ocupando canhestramente o espaço deixado vazio, cada vez mais polemistas papagueantes, insonsos e falsamente ousados.
OS TÍTULOS SÃO IMPORTANTES: Acontece-me pelo menos uma vez por ano relembrar uma convicção antiga: "A Hora da Sensação Verdadeira" (Peter Handke) é um dos mais belos e profundos títulos de toda a literatura. Há o paradoxo, ou simulacro de paradoxo (pode uma sensação ser verdadeira)? Há a discreta transição de centro de gravidade, da "sensação" para a "hora", sugerindo que a vivência temporal (balizada por imensidões, antes e depois) é mais importante que a sensação propriamente dita. Há, por fim, a persistência do elemento de autenticidade, dessa "verdade" que é e foi ponto de fuga último de tantos percursos pessoais e tantas narrativas trágicas.

terça-feira, junho 15, 2010

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS, DELEGAÇÃO DA CATALUNHA: No metropolitano de Barcelona lê-se muito mais do que em qualquer lugar público de Lisboa. Por exemplo, na linha 3 (Zona Universitaria - Trinitat Nova) uma senhora lia "The Great Gatsby" em versão original.

quarta-feira, maio 26, 2010

NEIL HANNON BÁLTICO: Q. encontrou semelhanças entre os concorrentes estónios da Eurovisão e os Divine Comedy. E o leitor o que acha?
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Um cavalheiro lia "The Legacy of Lord Trenchard". Lord Trenchard foi considerado o pai da Royal Air Force. Tudo isto na linha verde do metropolitano, por uma grande margem a mais esplendorosa e desconcertante de todas.

segunda-feira, maio 17, 2010

FAZ-TE UM HOMEM! QUEIMA UM BOTTICELLI!: «tenho de ver se qualquer dia escrevo qq coisa de jeito sobre o imenso Girolamo [Savonarola]. Pelo menos, era homem: queimava arte, ia directo ao assunto – não lhe escapavam os Botticellis desta vida» (Carlos Vidal) Só nas caixas de comentários do "Cinco Dias" é que se lêem estas coisas.
NOTAS AVULSAS SOBRE A VISITA DO PAPA (4): Aulas canceladas, exames adiados, consultas que não se realizaram, desvios no trânsito, atrasos, escolas fechadas, lixo por recolher. Por mais difíceis de contabilizar que sejam, vale a pena pensar um bocadinho na multiplicidade de transtornos humanos que resultaram da incursão papal de um monarca absoluto pelo território de uma República livre, e destas tolerâncias de ponto ridículas, lamentáveis, incompreensíveis e impopulares.

quinta-feira, maio 13, 2010

CLUBE DO REGIME, CINEASTA DO REGIME: No espaço de poucos dias, ficámos todos a saber que o clube de futebol preferido do Presidente da República é o Olhanense, e que o seu filme da vida, pelos vistos, é "O Pianista" (ver rubrica "Os Filmes dos Presidentes"). Acto contínuo, o Olhanense garantiu a permanência na 1ª divisão (já estou velho para lhe chamar "Liga Sagres", ou seja qual for o patrocinador vigente). Será isto um prenúncio auspicioso para os imbróglios judiciais de Roman Polanski?
NOTAS AVULSAS SOBRE A VISITA DO PAPA (3): Quem tomou a decisão de, dentro da Carris, do Pingo Doce, do Diário de Notícias, de outras empresas e serviços, manifestar apoio explícito à visita do papa, saudar Joseph Ratzinger por meio de bandeirolas, dizeres ou qualquer outro meio, julgou talvez estar a homenagear uma figura consensual, um paladino da paz e da concórdia, uma fonte de onde nada pode jorrar senão o Bem. Mas esta visão é ingénua. O papa representa uma religião, uma agenda, uma mundividência. A sua acção e as suas palavras não são universalmente justas nem imunes à contestação. A nenhuma das suas visitas, discursos, atitudes é alheio o objectivo supremo de servir a causa de uma confissão religiosa, e dos valores a esta associados. Concorde-se ou não com o que Joseph Ratzinger diz e faz, apoiá-lo e celebrar a sua presença de forma incondicional e acrítica, por vezes no limite da vassalagem, como o têm feito tantos e com tanto alarido nos últimos dias, implica tomar partido. Haja consciência disso.

terça-feira, maio 11, 2010

NOTAS AVULSAS SOBRE A VISITA DO PAPA (2): Compreendo que um católico anseie por ver o papa porque é o papa, o herdeiro do trono de S. Pedro, o símbolo da sua fé, independentemente do homem, das suas limitações e defeitos, das suas palavras, dos seus antecedentes. Não compreendo que uma comunicação social que se desejaria crítica, lúcida e imparcial, as hierarquias mais elevadas de um país soberano e laico, participem desse êxtase colectivo e abdiquem, em nome do protocolo ou da deferência, da faculdade de julgar, do sentido da proporção, do contraditório a que não deixaria de estar sujeita qualquer outra personalidade.
NOTAS AVULSAS SOBRE A VISITA DO PAPA (1): Uma cidade inteira pára para acolher um padre alemão que nunca na vida, que se visse, fez alguma coisa por essa cidade. Um pedido de desculpas pelo incómodo teria sido oportuno.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Uma senhora lia "O Vermelho e o Negro" na linha verde do metropolitano. Haveria aqui pasto para trocadilhos cromáticos, indignos de um blog que se pauta pela sobriedade. Mas digam lá se Stendhal, de manhãzinha, num transporte público, não é uma coisa linda. Também na linha verde, outra senhora lia Sartre: "Pena Suspensa".

quinta-feira, maio 06, 2010

MORANGOS COM AÇÚCAR: Por uma razão que me ultrapassa, nos "Morangos com Açúcar" escolhem sempre os piores actores para representar polícias e outros agentes de autoridade. Há figurantes que conseguem ser mais eloquentes, ainda que relegados ao segundo plano, a bebericar um Sumol.
TEATROÀPARTE APRESENTA "APESAR DE TUDO É UMA MÚSICA": O Teatroàparte apresenta a peça "Apesar de Tudo É Uma Música", a partir de Jacques Prévert, com encenação de Bruno Bravo. «Partindo do imaginário de Jacques Prévert para a construção de um espectáculo que visita as diversas linguagens do autor, desde a poesia ironicamente pedagógica aos textos dramáticos plenos de uma fantasia amarga, o teatroàparte fabrica um diálogo entre as palavras e a música, os sons e os silêncios. Um trabalho que pretende ser uma aproximação aos anseios de Jacques Prévert, colocando em palco as figuras maiores e menores que sussurram na sua obra. Um espectáculo com música mas sem ser musical, onde se cantará Prévert e a sua canção.» No Auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras 13 Maio 22h 14 Maio 22h 15 Maio 22h 20 Maio 22h 21 Maio 22h 22 Maio 22h 27 Maio 22h 28 Maio 22h 29 Maio 16h e 22h
PETIÇÃO "CIDADÃOS PELA LAICIDADE": Porque Portugal ainda não é, que me conste, um anexo da Santa Sé. Assinar aqui.

sábado, maio 01, 2010

RETRATO DO ARTISTA ENQUANTO ESTOUVADO: «Je réfléchis quelques instants à l'asile que je choisirais pour la nuit, et j'allai demander l'hospitalité à une personne de vertu moyenne que j'avais connue au commencement de l'hiver.» (Benjamin Constant, Le Cahier Rouge) Considero soberba a expressão "personne de vertu moyenne". "Le Cahier Rouge" (ou "Ma Vie") é um curto texto de cariz autobiográfico que abrange a primeira vintena de anos do autor, e que integra a minha edição de "Adolphe". O destaque vai para os numerosos disparates de juventude (dívidas, paixonetas) que Constant relata com imperturbável candura. Por exemplo, quando o pai o tenta recambiar de Paris para Bois-le-Duc, onde se encontra o regimento a que pertencia, Constant decide fugir para Inglaterra, via Calais. Quando chega a Londres, apesar do capital limitado de que dispõe e da angústia perante as previsíveis consequências do seu gesto, a primeira coisa que faz depois de resolver a questão do alojamento é comprar dois cães e um macaco. A incompatibilidade de feitios com o macaco persuade-o a devolvê-lo, trocando-o por um terceiro cão.
LET'S IGNORE THE TRAILA: Nunca vi um book trailer, nem faço planos para, seja a curto, médio ou longo prazo, colmatar essa lacuna na minha formação cultural. A perda, sem dúvida, é toda minha. Basta olhar para os sorrisos de orelha a orelha que arvoram os consumidores vorazes de book trailers com quem me cruzo na via pública.

terça-feira, abril 27, 2010

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Uma senhora lia contos de Flannery O'Connor, em versão original, na linha verde do metropolitano.
MORANGOS COM AÇÚCAR: «Sabes qual é o problema das palavras? É que não são actos.» (Paulinha para o João Pedro, em episódio de há algumas semanas.) Diálogos como este confirmam que certas tendências da filosofia analítica começam a exercer um domínio sufocante sobre os enredos dos "Morangos". Entretanto, a Paulinha e o João Pedro caminham rapidamente para a condição de unha com carne, algo que era enfadonhamente previsível mesmo para os enfadonhos padrões desta série.

sexta-feira, abril 23, 2010

LANÇAMENTO: O cartaz diz tudo. Tudo, excepto o prazer que é para mim saber que vai sair um livro da Margarida.

quinta-feira, abril 22, 2010

PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO: "Adolphe", de Benjamin Constant. Tão distante das maquinações de Laclos como da espontaneidade sentimental de Stendhal, "Adolphe" pode ser descrito como um case-study sobre a ética da relação amorosa, narrado por uma das partes interessadas, sucessivamente criatura amante, amada, e calculista a seu pesar. Vamos ver no que isto dá! Faltou-me a sorte para encontrar uma imagem igual à da capa da minha edição, e a paciência para a digitalizar. Não faz mal. Outras prioridades me reclamam, e a marcha do PLEC não se compadece com obstáculos comezinhos.
RECOMENDO: Há um muito bom artigo sobre "A Serious Man" no blog Only the Cinema. Tenho andado para escrever há que tempos acerca deste filme, que, depois do brilhante "No Country for Old Men", confirmou a minha reconciliação com os manos Coen.
PARA QUEM NÃO TOLERA A TOLERÂNCIA: Dois grupos no Facebook: "Eu trabalho e não quero tolerância de ponto no dia 13 de maio" e "Trabalho para o Estado e não quero tolerância de ponto no dia 13 de Maio!". Aderi a ambos. Enfim, caturrices de ateístas militantes.

segunda-feira, abril 19, 2010

PAVLOV HOJE: Um dos mais edificantes (e previsíveis) efeitos colaterais do escândalo dos abusos sexuais de menores por parte de sacerdotes católicos é o coro de vozes que se ergue contra uma suposta tribo de "ateístas militantes" (variante fenotípica: "laicistas militantes"), culpada das maiores ignomínias, entre as quais a de criticar padres, exigir a sua imputabilidade jurídica, expor a incoerência moral da Igreja católica, exprimir indignação perante dilações e encobrimentos, e outras aleivosias de semelhante calibre. Conheço muitos ateus, mas nunca tive o prazer de me cruzar com um membro dessa espécie de ateístas militantes que tantos cronistas denunciam. Não me consta que milícias de ateus percorram os caminhos de Portugal com o objectivo de extirpar a fé dos crentes à força de varapau. O limiar de indignação destes cronistas é rasteiro; o rótulo de "ateísta militante" é atribuído com desconcertante ligeireza a todo aquele que assinala violações da laicidade do Estado, a todo aquele que aponta o dedo a desmandos eclesiásticos. Valorosos profissionais da opinião como João Pereira Coutinho, Henrique Raposo, Alberto Gonçalves, seriam condescendentes com ateístas e laicistas mansos e amigos do compromisso, que se soubessem manter no seu lugar, que falassem em surdina, que criticassem a Igreja como quem admoesta um sobrinho birrento mas, lá no fundo, excelente rapaz. Face a vozes que chamam os bois pelos nomes, que denunciam alto e bom som situações aberrantes e/ou ilegais (crucifixos nas salas de aula, capelães pagos pelos contribuintes, membros do clero no protocolo do Estado), sentem-se moralmente obrigados a agitar o espantalho do "ateísmo militante", e a descrever os seus adversários como nostálgicos dos sans-culottes, prontos a acusar de pedofilia qualquer criatura que use sotaina. Desculpa-se e aceita-se; é uma questão de status, trata-se de não perder a face no concorrido recreio dos inimigos do politicamente correcto. O que custa um pouco mais a aceitar é a falta de honestidade intelectual. Quando Henrique Raposo acusa os "ateus de serviço" de criticarem sempre a Igreja católica, e nunca o Islão radical, está a ignorar as centenas de posts, por sinal publicados nalguns dos blogs mais lidos e amiúde rotulados como "jacobinos", que atacam ferozmente as monstruosidades do Islão. (Cito apenas este, este e este. Poderia citar outros.) Quando Alberto Gonçalves, que parece comprazer-se na exibição semanal da sua indigência argumentativa, fala em "padres homossexuais que abusam de criancinhas" está a deixar fugir o pé para chinela da homofobia, com uma displicência que ele decerto toma por subtileza, e a baralhar os dados do problema. Turvar as águas não dá trabalho; se o vigor colocado na acção for suficiente, a próxima crónica chegará antes que o lodo assente.
VASSILY SMYSLOV 1921-2010: Vassily Smyslov foi o 7º campeão do mundo de xadrez, estatuto que alcançou ao bater Mikhail Botvinnik em 1957. Perdeu o título no ano seguinte, aquando do match de desforra com o mesmo Botvinnik, o que fez dele um dos campeões do mundo com reinado mais curto. Apesar de nunca ter recuperado o título, manteve-se durante muitos anos como um dos melhores jogadores do mundo. Caso raro de longevidade, atingiu a final do torneio de candidatos ao título mundial em 1982, aos 61 anos, tendo sido derrotado por um jovem Garry Kasparov na sua trajectória irresistível rumo ao topo. Smyslov não tinha a fogosidade de Mikhail Tal, nem o rigor científico de Botvinnik, nem a versatilidade de Boris Spassky, para mencionar apenas alguns dos seus contemporâneos. Dele se afirmou que o seu estilo era tão natural que as jogadas pareciam fluir da própria mão que deslocava as peças, em vez de ter origem algures na massa cerebral. Para além da sua carreira como xadrezista, Smyslov ficou conhecido como barítono, tendo chegado a fazer uma audição no teatro Bolshoi. No entanto, ao contrário do seu compatriota Mark Taimanov (que desenvolveu em paralelo as carreiras de pianista e grande-mestre), dedicou-se em exclusivo ao xadrez em detrimento da música. Assim como a melhor maneira de homenagear um realizador de cinema é revendo os seus filmes, o melhor tributo que se pode prestar a esta figura máxima do xadrez do século XX é a revisitação das suas partidas. (Obituário no Chessbase.)

segunda-feira, abril 12, 2010

"ANTICRISTO" AINDA, ESPERO QUE PELA ÚLTIMA VEZ: Devo dizer que o afastamento relativo aos princípios do "Dogma 95" não me faz perder um minuto de sono. Foi um movimento que teve o mérito de agitar algumas águas e de servir de pretexto para um filme excelente ("Os Idiotas") e outro bastante bom, embora sobrevalorizado ("Festen"). Custa-me a acreditar que os seus subscritores se tenham levado minimamente a sério, e não me surpreenderia que, no momento em que assinaram este manifesto pseudo-rigorista, as respectivas línguas estivessem plantadas nas bochechas contraídas por um sorriso de malícia. O "Dogma 95" foi algo entre a arte conceptual e o calembour. Passados mais de 10 anos, o que me interessa é se um filme é bom ou não é. E "Anticristo" é um filme pavoroso, independentemente de qualquer contextualização ou genealogia. Sustento ser quase impossível que tudo numa longa-metragem suscite repulsa ou indiferença. Em "Anticristo", gostei de:
  • as bolotas a cair
  • a cena em que Willem Dafoe pede a Charlotte Gainsbourg que imagine a chegada à cabana
  • a ária da ópera "Rinaldo" Lascia ch'io pianga, para lá do sublime.
LOTTO: Sucedeu-me já por duas vezes atrair comentários de parceiros de xadrez online por causa do meu nick alusivo a Lorenzo Lotto. A minha admiração por este veneziano desterrado vem de longe e não apresenta tendência para perder pungência com o tempo. Obrigado pela ligação ao excelente artigo de Colm Toíbín, um homem que até já esteve na Casa Branca. E aqui está o meu retrato preferido deste pintor.
É DISTO QUE O MEU POVO GOSTA: João César das Neves, "alegria do povo", parece empenhado num mano-a-mano com Lionel Messi do qual não é garantido que saia derrotado. Bem pode o astro argentino do Barcelona protagonizar exibições brilhantes ao fim-de-semana, no Camp Nou ou noutro estádio: invariavelmente, JCN supera-o com as fintas argumentativas que polvilham as suas crónicas de segunda-feira no "DN". Na semana passada saiu-se com esta "revienga": as críticas à Igreja católica motivadas pelo encobrimento de casos de pedofilia inserem-se numa "guerra cultural" e visam «a promoção do aborto, eutanásia, divórcio, promiscuidade». Nem mais. Às segundas-feiras, no espacinho que as sucessivas direcções do "DN" insistem em atribuir a JCN, a suspensão da incredulidade ganha foros de lei e só raramente as coisas são aquilo que parecem. A sua prestação de hoje não foi menos estonteante: «Ninguém atropelou mais o rigor científico que os iluministas. Ninguém foi mais sangrento que os jacobinos.» Conto debruçar-me sobre esta nova adição ao argumentário nevesiano durante esta semana, antes que o Luís Freitas Lobo ou o António Tadeia se antecipem.

sexta-feira, abril 02, 2010

ISABELLA FALLS IN LOVE: No teatro isabelino existia um vasto e reconhecível repertório de gestos convencionados, aos quais os actores recorriam para representar estados emocionais complexos na certeza de que iriam ser correctamente interpretados pelos espectadores. Este arsenal de maneirismos facilitava a assimilação de papéis novos numa altura em que os tempos de ensaio eram limitados, e permitia a inserção de didascálias de uma concisão fascinante, como «Isabella falls in love». (Fonte: Stephen Coote, "The Penguin Short History of English Literature".)
ESCRITA CRIATIVA: Uma das personagens do romance (ou o que quiserem) "Ilusão (ou o que quiserem)", de Luísa Costa Gomes, propõe uma ideia para peça em que as personagens principais são dois amantes com SIDA, sendo um deles um cinquentão fadista, adepto do Belenenses, cabelos grisalhos, ar distinto, bom nome de família, simpático, galante, bom cavaleiro e bissexual. Um fadista do Belenenses com SIDA e bissexual possui um potencial dramático no mínimo igual ao mítico pasteleiro trotskista que Nanni Moretti menciona em "Caro Diario". O que não é dizer pouco.
PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO:

O "Daily Mail" descreveu-o como "a page-turner of a masterpiece", o "Guardian" qualificou-o de "stunningly accomplished". Perante isto, como hesitar em confiá-lo às mãos de um dos numerosos comités que protagoniza o glorioso Processo de Leitura Em Curso?

Joseph O'Connor é o irmão de Sinéad O'Connor, que outrora ganhou modesta fama como imitadora da portuguesa Inês Santos.

quinta-feira, março 25, 2010

RATING: Ao contrário do que sucede com Portugal, o rating du umblogsobrekleist permance firme e hirto em AA+, melhor do que muitos frigoríficos. Especuladores, ide bater a outra freguesia!

segunda-feira, março 22, 2010

PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO:
"El Lado de la Sombra", contos de Adolfo Bioy Casares. As primeiras impressões são francamente boas. Graças ao contacto prévio com Cortázar, já sei que quando uma personagem fala em "comprar erva" está a referir-se a chá mate. O PLEC é também um percurso, que se constrói (adivinharam?) caminhando.

domingo, março 21, 2010

UMA CERTA TENDÊNCIA DE ANTÓNIO-PEDRO VASCONCELOS: Cada país e cada época têm as controvérsias cinéfilas que merecem. Em França, nos anos 50, Truffaut incendiou os ânimos com o artigo "Une Certaine Tendance du Cinéma Français". Mais de 50 anos depois, em Portugal, António-Pedro Vasconcelos proclama-se "dissidente do cinema europeu" (presumo que sem largar às gargalhadas), e atira um calhau imaginário a um não menos imaginário charco. Não contente, puxa do que ele acredita serem os seus galões para responder a um crítico, Vasco Câmara, que desancou o seu último ópus "A Bela e o Paparazzo". Não comento as opinões de VC, uma vez que não vi o filme (a vida é curta, a pilha de DVDs e livros em lista de espera cresce em vez de minguar, e ainda não vi nenhuma das sete novas maravilhas do mundo), limito-me a constatar que APV é um polemista sofrível, embora não lhe faltem algumas qualidades, como a ausência de receio de cair no ridículo. Há que saudar devidamente, por exemplo, tiradas como «Onde é que isso está, hoje (a emoção), no cinema que ele [Jean-Luc Godard] faz e VC defende?». O leitor fica na dúvida sobre se APV se está a referir ao mesmo Godard, ou se está a recorrer a um inaudito nível de ironia. Claro que o teor emocional de uma obra de arte dependerá sempre do receptor e das suas vivências pessoais, mas custa-me a acreditar que alguém possa ver "Nouvelle Vague", "Éloge de l'Amour" (sobretudo este), "Hélas pour Moi", "JLG/JLG" sem sentir como vibram de emoção e humanidade. Existe toda uma indústria em torno da história alternativa: romances, contos, filmes e ensaios que tentam responder a questões como: que aspecto teria hoje a Europa se Hitler tivesse ganho a guerra? APV é, que eu saiba, o único a dedicar-se à história alternativa do cinema. Infelizmente, parece revelar dificuldades em distinguir a realidade dos seus cenários alternativos favoritos, em particular aquele em que Godard e a estética da Nouvelle Vague teriam triunfado em toda a linha, alienando o público ao longo das décadas, e contribuindo para a condição moribunda do cinema europeu. Se é certo que a ruptura, por volta de 1960, foi real e irreversível, Godard não deixou seguidores nem tradição, os seus émulos directos são poucos e pouco interessantes, e não arrastou o cinema europeu para o abismo à custa de ensimesmamento e obstinação experimentalista. Procurem-se outros culpados, se for caso disso, e deixe-se Godard cumprir em paz o seu papel de interrogar o real e a História por meio de imagens e palavras, num exercício de lucidez que o leva a extremos por vezes incómodos. Se falharem o bom senso e a clarividência, que sejam a simples consideração e a decência a evitar que um autor que deu tanto ao cinema seja reduzido ao papel de profeta inconsciente que puxa o tapete por debaixo dos pés dos discípulos.

Éloge de l'Amour (2001)

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Um jovem lia Pessoa, "The Book of Disquiet", na linha amarela do metropolitano.

terça-feira, março 16, 2010

PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO:

Dos escaparates da Fnac para o topo da minha lista de espera, em menos tempo do que leva a dizer «O joy! O rapture!».

quarta-feira, março 10, 2010

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: A circulação estava suspensa na linha verde do metropolitano. De pé, junto das bilheteiras automáticas da estação de Telheiras, um jovem lia "Diário Remendado", de Luiz Pacheco. Ou como transformar uma vicissitude do quotidiano numa oportunidade de desfrutar da literatura portuguesa.

sábado, março 06, 2010

PARIS JE T'AIME: Amanhã (domingo), no suplemento do jornal "Público", será publicado um conto meu. A acção do conto decorre no injustamente esquecido bairro de Ménilmontant, em Paris. Amanhã nas bancas, em todo o país.

quarta-feira, março 03, 2010

CINEMA, AINDA "ANTICRISTO": Há uma frase do artigo da Wikipedia sobre o filme de Lars von Trier que me deixa boquiaberto: To get into the right mood before filming started, both Dafoe and Gainsbourg were shown Andrei Tarkovsky's The Mirror from 1975. "O Espelho", de Tarkovsky (por acaso um dos filmes da minha vida) e "Anticristo" parecem-me irreconciliavelmente opostos em todos os aspectos, do estilo ao argumento, do acidente à essência. "O Espelho" é um filme tão profundo e inimitável que expor-se a ele como fonte de inspiração pode dar lugar a resultados catastróficos e embaraçosos - parece ser esse o ensinamento a retirar daqui. Deixando de parte o sarcasmo, este foi o segundo filme de Lars von Trier que detestei, depois de "Dancer in the Dark". A sua misoginia atinge patamares patológicos e nauseabundos, a tal ponto que a motivação para a analisar e contextualizar se evapora. O cinema, assim como outras artes, é pródigo em casos clínicos. Só vejo nisso um problema quando a minha reacção perante um filme é o desejo de que o realizador faça uma pausa sabática para se tratar, em vez da esperança de que realize em breve um novo filme. Por enquanto, o balanço da obra de von Trier continua a ser positivo, muito graças a "Os Idiotas", "Dogville" e "Breaking the Waves". Mas o declive da encosta é, neste momento, abrupto e descendente.
PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO:
Quem tem medo do PLEC? Não há que ter medo. Como qualquer processo, o PLEC é um meio, e não o fim. Um processo que nos conduzirá, assim o esperamos, a um Amanhã Melhor, Risonho e Ameno.
Neste momento, o último romance (ou o que quiserem) de uma das minhas autoras preferidas de língua portuguesa.
A seguir, quem sabe?

segunda-feira, março 01, 2010

PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO: Da influência da traça urbana lisboeta na história de Portugal.
À VOLTA DE KLEIST: Assinale-se o ciclo "À Volta de Kleist", na cinemateca. Começa já no dia 4, com "A Marquesa de O..." de Rohmer, mas as restantes sessões terão lugar só a partir do dia 15.
CINEMA: Saúde-se o inesperado momento de refinadíssimo humor que ocorre no final do filme "Anticristo", de Lars von Trier. Falo, como é óbvio, da dedicatória a Tarkovsky.
SETE ANOS: Este blog existe há 7 anos, cumpridos hoje. Desde o primeiro dia que este blog é um blog onde se defendem os valores republicanos e da laicidade, francófilo assumido, bibliófilo e cinéfilo. Foi com o correr do tempo que surgiu e se instalou a empatia por todos aqueles que, kafkianamente, falham na vida real mas têm razão na metáfora.

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO:

Estou a tentar pensar num comentário sobre este livro que seja ao mesmo tempo mordaz, sofisticado, irónico e profundo, mas o meu gato não me deixa em paz e é impossível concentrar-me.

(Como não dar razão, perante isto, a José Manuel Fernandes?)

DESCONFIANÇA: José Manuel Fernandes desconfia de mim! Isto não é paranóia. Está escrito, com todas as letras e vírgulas, no simpático blog "Blasfémias". JMF afirma ter uma desconfiança de princípio relativamente a todos aqueles que preferem ter gatos em vez de cães - um subconjunto da humanidade onde, notoriamente, me insiro. Se alguma vez os nossos caminhos se cruzarem terei o cuidado de confessar esta minha fraqueza, por uma questão de delicadeza.

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

JOÃO CÉSAR DAS NEVES, ALEGRIA DO POVO: Mané Garrincha foi uma das maiores estrelas do futebol brasileiro dos anos 60. Em 1962 o cineasta Joaquim Pedro de Andrade rodou um documentário sobre ele, intitulado "Garrincha, Alegria do Povo". Dizia-se de Garrincha que todos os espectadores, quando o viam receber a bola no flanco direito, sabiam perfeitamente que finta ele iria fazer. Aquilo que ninguém sabia e que a todos deixava na expectativa, a começar pelo adversário directo, era quando Garrincha iria fazer a finta. João César das Neves é o Garrincha do jornalismo de opinião português. Quando o leitor enceta uma das suas crónicas (em vez de fazer algo de mais salutar, como tocar com os dedos na ponta dos pés ou ir passear o cão) sabe perfeitamente que os cavalos de batalha cesarianos hão-de aparecer, mais cedo ou mais tarde. (Exceptuam-se as crónicas de cariz exclusivamente económico, claramente as menos interessantes.) A grande incógnita, capaz de transmitir um mínimo de emotividade ao exercício, é a altura em que JCN se deixa de rodeios, aproximações e metáforas para enfim espetar a sua farpa, romba e gasta devida ao uso. Veja-se, por exemplo, a sua última intervenção hebdomadária: transita-se do caso das escutas para o Watergate, deste para a natureza humana, desta para o terror revolucionário e o Nasdaq, e eis que, para gáudio da torcida, surge o golpe de rins: JCN cumpre a estocada e instala-se nos terrenos da moral, da homossexualidade e da decadência dos costumes, onde ele se movimenta com reconhecida desenvoltura - nem sempre acompanhada pela clarividência, mas tudo se perdoa a um homem de causas.
PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO:

Há uns dias cometi uma proeza. Numa só noite, revi o magnífico filme "La Chinoise", de Godard, e não vi "A Bela e o Paparazzo", de António-Pedro Vasconcelos, auto-proclamado dissidente do cinema europeu. Mas seria ir longe demais reivindicar que decidi ler um romance de François Mauriac por ele ser avô de uma das actrizes do filme (Anne Wiazemsky). Os motivos foram outros: o livro estava a 1 euro nos últimos saldos da Buchholz, e tenho um fraco por romances que se passam no meio moralmente corrupto e hipócrita de uma certa burguesia francesa.

segunda-feira, fevereiro 08, 2010

ROHMER, UM HOMEM LIVRE: "Um homem livre." Parece-me ser esta a maneira mais sucinta e, ao mesmo tempo, artisticamente mais justa para designar Éric Rohmer. Conheço poucas personalidades (e não estou a cingir-me ao domínio artístico) a quem o epíteto de "livre" se aplique com maior propriedade. Ao longo de uma carreira de mais de meio século, Rohmer concretizou os seus pressupostos teóricos sob a forma de obras de arte perenes e únicas. Fê-lo com pleno domínio dos seus recursos, com toda a deliberação e ponderação. É tarefa inglória esquadrinhar toda a sua filmografia, fotograma a fotograma, em busca de uma cedência, por minúscula que seja, às modas e às imposições alheias. Nada disto seria relevante, nem digno de especial admiração, se a sensibilidade do homem por detrás da câmara fosse medíocre, se a sua ambição fosse mesquinha. Mas a ambição de Rohmer era desmesurada, a sua sensibilidade era aguda e poderosa. Rohmer nunca deixou de se situar na delicadíssima encruzilhada da vontade, do desejo e do comportamento social e moral. Todas as suas personagens atravessam essa zona, tão misteriosa e paradoxal como a que Tarkovsky sugeriu em "Stalker"; todas elas revelam o seu lado absurdo e profundamente humano no preciso instante em que o livre arbítrio, o acaso e uma versão profana e corriqueira do destino se equivalem e determinam o desfecho. Foi essa a maior de todas as ousadias: em vez de se conformar com receitas e aproximações, Rohmer mostrou-nos mulheres e homens que agem (com diferentes gradações de consciência dos próprios actos) e que sofrem, sozinhos no mundo nesse momento da decisão, que tanto pode ser activa como redundar num abandono à sorte e à concidência (Melvil Poupaud em "Conte d'Été", Charlotte Véry em "Conte d'Hiver", Marie Rivière em "Le Rayon Vert"...). Acima de tudo, os filmes de Rohmer são obras dotadas de uma coerência e intensidade estéticas singulares. Rohmer filmou, ao longo das décadas, como se o amor, o desgosto, a solidão e o desejo fossem os únicos temas dignos. Filmou com a convicção de que o mundo, as paisagens, as ruas, os apartamentos eram cenário suficientemente nobre para conter a gravidade palavrosa dos seres humanos, e que a linguagem viva do cinema, que ele ajudou a criar, era um instrumento privilegiado para a transmitir. Todos lhe devemos muito. Cabe-nos a todos merecer os filmes de Rohmer, e nunca deixar esmorecer, por comodismo ou inércia, a urgência de os rever. (Há cerca de 5 anos e meio, escrevi sobre Rohmer com a abundância própria de um proselitista com demasiado tempo livre entre mãos. O leitor ocioso poderá encontrar esses artigos aqui, aqui e aqui.)

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

I BEG TO DIFFER: Alguém se deu ao trabalho de compilar os piores versos da história da pop. Todas as escolhas são subjectivas - assim o garantem a semântica e a vox populi. Seria um exercício de futilidade contestar a composição desta galeria de horrores. Sucede que nunca ninguém viu este blog fugir da futilidade. Faço questão de assinalar que o autor do artigo parece insensível ao humor deadpan que, claramente, presidiu à redacção destas linhas magníficas And I met a girl / She asked me my name / I told her what it was (Razorlight, "Somewhere Else") e que se inserem na mesma linha estética destas I took her to a supermarket/I don't know why but I had to start it somewhere/So it started there (Pulp, "Common People") prova, entre miríades de outras, do génio de Jarvis Cocker.
ROHMER MAIS FORTE DO QUE AS AGÊNCIAS DE RATING: Tem-me faltado a vontade de escrever, por causa da preocupação com os veredictos das agências de rating sobre a dívida pública portuguesa. Mas deixar passar em claro este excelente artigo sobre "Quatre Aventures de Reinette et Mirabelle" (um dos meus filmes preferidos de Rohmer, e um dos mais ignorados) seria vergonhoso, incoerente e rasteiro, para não falar de criminoso.
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Na linha amarela do metropolitano, uma jovem lia "Dom Casmurro", de Machado de Assis. A sua expressão era a de quem cisma acerca do verdadeiro carácter da enigmática Capitu.

terça-feira, janeiro 19, 2010

LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: Ainda não avistei uma única pessoa a ler Roberto Bolaño em lugares públicos. Que conclusões se podem retirar daqui? Rigorosamente nenhumas.
DIZ QUE DISSE: Pelos vistos, o fact-checking não é actividade muito prezada nos selectos clubes ingleses que João Carlos Espada frequenta. Nesta crónica, o homem que semanalmente explica Popper e Hayek (o Friedrich, não a Salma) às criancinhas e às massas baseia a sua argumentação sobre a liberdade e os seus inimigos numa citação atribuída a Afonso Costa, que teria proclamado alto e bom som a sua intenção de acabar com a religião católica em Portugal em duas gerações. Este é um dos mitos mais fortemente enraizados na história da 1ª República. Chamo-lhe "mito" porque nunca li qualquer confirmação, devidamente fundamentada, desta suposta afirmação. O mito encontra-se desmontado aqui. Não sou historiador; ignoro se existem teses alternativas. Mas acho sintomático que nunca os críticos da 1ª República se dêem ao trabalho de conspurcar os seus imaculados artigos de opinião com uma referenciazita bibliográfica, uma migalha de legitimidade historiográfica que transmitisse ao leitor a impressão de estar perante factos, em vez de meras ideias feitas com um grau de veracidade comensurável com o milagre de Ourique. Como toda a crónica do Prof. Espada se servia como alicerce dessa alegada intenção de aniquilar o catolicismo, a sua validade sofre um certo abalo. O que é pena: os devaneios sobre Isaiah Berlin, liberdade positiva e liberdade negativa merecem ser seguidos, quanto mais não seja para aferir até onde pode ir uma retórica em roda livre, singularmente refractária à realidade. As conclusões, essas, não surpreenderão os leitores habituais do Prof. Espada, entre os quais, bem entendido, tenho a honra de me contar: só na Inglaterra e nos Estados Unidos se vive bem. Aliás, a Inglaterra é amiúde apontada pelo Prof. Espada como exemplo, embora as descrições que dela faz mais depressa evoquem uma nação imaginária (onde imperam o bom senso e a benevolência, onde gregos e troianos convivem pacificamente sob o olhar amável dos bobbies, e onde todos vivem e deixam viver) do que a Inglaterra real, um país que vem no mapa, que tem 51 milhões de habitantes, cuja capital é Londres e onde sucedem coisas como esta. (Francisco Sarsfield Cabral também se juntou ao número dos que atribuíram a Afonso Costa o mesmo propósito explicitamente catolicida. Foi no Público, penso - não tenho o link.)

quinta-feira, janeiro 14, 2010

"RAYUELA", NOTAS DE LEITURA: Ao contrário do que seria de esperar, gostei mais da parte do livro que se passa na Argentina, depois do regresso de Oliveira do exílio parisiense. O convívio com o amigo Traveler e com Talita, a mulher deste, dá origem a páginas de uma profundidade de observação e de uma invenção cómica desconcertantes. É particularmente notável o capítulo 41 (ao que parece, aquele que Cortázar escreveu em primeiro lugar), todo ele um prodígio de burlesco e absurdo, onde Talita se empoleira numa ponte improvisada entre duas janelas de terceiro andar, apenas para entregar a Oliveira um pacote de erva-mate, e onde se aprende mais do que em qualquer outro lugar acerca dos complexos laços que unem o triângulo e do desespero sobre o qual se recortam todas as acções de Oliveira. Gekrepten, a noiva de Oliveira que por ele esperou durante o exílio, poderia ser o vértice que faltava para o triângulo se transformar em quadrado, decerto mais estável e menos atravessado por tensões. Mas Gekrepten é uma personagem insípida, deliberadamente menorizada. Gostaria imenso de saber a origem deste nome, tão invulgar, aparentemente tão pouco devedor da eufonia, e que contudo tanto gosto de repetir. Gekrepten, Gekrepten. O Google, por uma vez, não ajudou.
SOMETIMES IT'S WISER TO BE TRUTHFUL THAN TO LIE, SO YOU WON'T BE BELIEVED. DON'T YOU BELIEVE ME?: Ainda não consegui reunir a coragem para escrever sobre Rohmer, por isso fico-me por esta chamada para um artigo brilhante sobre os paralelismos entre "Triple Agent" e um conto de Nabokov. Outra vez o paradoxo do bluffer sincero, outra vez esta frase, uma das minhas preferidas de toda a obra de Rohmer. Já não me lembrava da cena do jogo de xadrez.

quarta-feira, janeiro 13, 2010

E OUTROS POSTS: Há também "Léah e outras histórias", do sempre recomendável José Rodrigues Miguéis. Claro que o cúmulo do refinamento seria um livro intitulado "Esta História e outras histórias". Sonhar não custa. E a propósito, deixa-me completar a frase que, decerto por culpa de compromissos inadiáveis, ou de um visitante de Porlock, foste compelido a truncar. «Os melhores autores de contos de todos os tempos foram o Isaac Babel e o Leonard Michaels, sem contar com a Katherine Mansfield, está bem de ver Era isto, não era?
MORTE AOS MITOS!: Um estudo recente colocou em causa a existência do ponto G. Eu sou a favor dos esforços de contestação das verdades adquiridas, desde que alicerçados no rigor e na objectividade. Por exemplo, dentro do mesmo espírito, estaria na altura de se averiguar, de uma vez por todas, se existe o famigerado "petit pan de mur jaune" a que o escritor Bergotte, na obra magistral de Marcel Proust, dedicava tão profunda admiração, . Tenho examinado longamente o quadro de Vermeer, e "petit pan de mur jaune" é coisa que não distingo, nem com a minha lendária boa vontade. Desconfio que o "petit pan de mur jaune" nunca existiu, e sinto-me aliviado por verificar que consigo viver com essa hipótese. Não sou eu o único a nutrir estas dúvidas cruéis, semelhantes a vermes em maçã Granny Smith.
PLEC = PROCESSO DE LEITURA EM CURSO: Continua a onda sul-americana.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

ÉRIC ROHMER (1920-2010): Um dos maiores, um dos maiores de sempre, um dos maiores em tudo. Ainda não tenho palavras. Só o desgosto.

sexta-feira, janeiro 08, 2010

LHASA DE SELA (1972-2010): Nunca fui fã. Porém, circunstâncias da minha vida obrigaram-me, a dada altura, a reservar-lhe um pequeno nicho no meu imaginário e no meu disco rígido. De entre as suas canções, a minha preferida é "My Name" (de "The Living Road").
E PRONTO: E pronto, já está. E eu, a quem a ideia de ter "orgulho em ser português" provoca algo de semelhante à náusea, e que só toco na locução "dia histórico" com uma vara de 5 metros, vejo-me à míngua de expressões que não sejam essas, para dar conta do que sinto. Foi um dia histórico. E sinto orgulho em ser português. Por uma vez. «...pour un instant. Pour un instant seulement» como dizia o Brel.

quarta-feira, janeiro 06, 2010

BALANÇO DO ANO (LIVROS): Os livros lidos em 2009 de que mais gostei. Por ordem cronológica de leitura.
  • Antigos Mestres (Thomas Bernhard)
  • The Matisse Stories (A.S. Byatt)
  • Dream of Fair to Middling Women (Samuel Beckett)
  • Armance (Stendhal)
  • Fanny Owen (Agustina Bessa-Luís)
  • Dom Casmurro (Machado de Assis)
  • Bleak House (Charles Dickens)
  • La Princesse de Clèves (Madame de Lafayette)
  • Anatomy of Restlessness (Bruce Chatwin)
  • Les Plaisirs et les Jours (Marcel Proust)
  • Jacobo e outras histórias (Teresa Veiga)
Quanto à poesia, as minhas leituras foram menos sistemáticas e mais escassas, mas não queria deixar de salientar Blaise Cendrars e Rui Coias ("A Ordem do Mundo").
BALANÇO DO ANO (CINEMA): Os melhores filmes que vi em 2009, por ordem cronológica de visionamento: Estreias:
  • El Cant dels Ocells (A. Serra)
  • La Mujer Sin Cabeza (L. Martel) (talvez o melhor do ano)
  • Les Plages d'Agnès (A. Varda)
  • The Limits of Control (J. Jarmusch)
  • 35 Rhums (C. Denis) (não vi este filme belíssimo em nenhum top anual, shame, shame)
Festivais, cinemateca, etc.:
  • filmes de Angela Schanelec (Schöne Gelbe Farbe, Ich Bin den Sommer Über in Berlin Geblieben, Plätze in Städten)
  • Quatre Nuits d'Un Rêveur (R. Bresson)
  • I Clowns (F. Fellini)
  • Ashes of Time Redux (Wong Kar-Wai)
  • Comment Je Me Suis Disputé... (Ma Vie Sexuelle) (A. Desplechin)
  • Die Marquise von O... (E. Rohmer)
  • Ensayo de un Crimen (L. Buñuel)
  • Shirin (A. Kiarostami)
  • Partie de Campagne (J. Renoir)
  • L'Annonce Faite à Marie (A. Cuny)
  • Na Presença de Um Palhaço (I. Bergman)
LEITURAS EM LUGARES PÚBLICOS: No Alfa Pendular, entre Porto e Lisboa, uma senhora lia um livro de Günter Grass. Infelizmente, não consegui descobrir qual era o livro.
VAMOS A VOTOS: O 1bsk deseja a todos os seus leitores, amigos, conhecidos, assinantes, benfeitores, mecenas, colaboradores, pessoal administrativo, antigos alunos e agentes inflitrados um ano novo cheio de bolos de arroz, boas leituras, cinema de qualidade e a cores, boa comida, amor e carinhos vários, música do melhor que há, tudo sempre a abrir e sempre a bombar. Pelo que nos toca, continuaremos a dedicar-nos de corpo e alma à missão que nos propusemos há quase sete anos: escrever uns posts de vez em quando e publicá-los neste blog.